novembro de 2013

COLETIVO NEGRO

Renata Felinto

 

 

 

colaboração Christiane Gomes
fotos Crioulla Oliveira

 

 

 

 

 

Segundo definição do dicionário, a palavra coletivo pode ser um adjetivo: que significa compreender e abranger muitas pessoas ou coisas, ou que lhes diga respeito; ou pertencer a um conjunto de pessoas ou de coisas. Pode também ser um substantivo: que exprima a reunião de vários indivíduos da mesma espécie. Os personagens centrais deste texto reúnem, juntos, as duas definições; com o acréscimo de outra palavra forte e cheia de atitude que também pode ser substantiva ou adjetiva: Negro. Porém, mais do que palavras, o Coletivo Negro é feito de ação! Mas o que eles têm a representar? A dizer? A mostrar?

 

O Coletivo Negro é um grupo de teatro cujo embrião surgiu na cidade de Santo André, região do ABC, em São Paulo, em 2007, a partir de uma montagem experimental realizada no curso de direção da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Inquieto com a invisibilidade social do negro, Jé Oliveira, diretor da referida experimentação, começou um projeto de pesquisa com atores afro-brasileiros. Foi quando convidou Jefferson Mathias e Thais Dias a se somar à investigação. Depois, chegou Flávio Rodrigues que trouxe Aisha Nascimento. Por fim, veio Raphael Garcia. Em comum a todos, a vontade de aprofundar o estudo de uma estética teatral e política cuja a invisibilidade da população negra era um dos temas centrais. Experiências que, vividas individualmente, se encontraram e puderam, enfim, ganhar a cena.

 

 

 

 

“Nosso pressuposto enquanto grupo é a pesquisa racial. Não necessariamente que ela seja colocada para a discussão em cena, mas o ponto de vista do negro sobre as questões estará sempre presente. Em todas as questões. É uma escolha política”, coloca Jé Oliveira. O único integrante que se formou pela Escola de Arte Dramática da USP, Raphael Garcia, completa: “Em algum momento da sua vida, o artista tem que se posicionar e fizemos isso diretamente sobre a questão racial. E o Coletivo Negro foi uma chave para isso”. Romper com o papel do negro enquanto objeto é algo que norteia o trabalho destes artistas.

 

E essa opção deixa claro que há muito a representar sobre o assunto com pautas que incluem processos de longas pesquisas envolvendo buscas profundas por biografias e modos de viver de seus ancestrais negros, os primeiros do coletivo (aqui como adjetivo) a se rebelarem em busca da liberdade, como é o caso dos quilombolas. No caso do Coletivo Negro, eles buscam a concretização da liberdade almejada por seus antepassados: a de ir e vir (sozinhos ou na coletividade); a de representarem, enquanto atores e atrizes, os temas que desejarem e julgarem pertinentes (de um texto vermelho sobre o amor a um de pretas dores); de interpretar, denunciar e recontar sua história, enquanto população negra, com dramaticidade, consciência e poesia.

 

 

 

 

Pois bem, perguntamos ao Coletivo Negro e mesmo a vocês, caros leitores da O Menelick 2º Ato, uma questão que não se cala: o que é um teatro negro? É aquele produzido por negros? É o que fala sobre negros? É o que coloca em cena questões negras? E mais: qual seria sua estética, sua forma? “Estamos tentando entender o negro na cena. Existe o personagem negro? Ou ele faz qualquer tipo de personagem? Temos uma forma de narrativa específica? É neste lugar que surgem as questões que temos”, conta Aisha Nascimento. A pouca literatura e pesquisa sobre esta questão é algo que a deixa ainda mais difícil de ser compreendida.

 

“Nosso pressuposto enquanto grupo é a pesquisa racial. Não necessariamente que ela seja colocada para a discussão em cena, mas o ponto de vista do negro sobre as questões estará sempre presente. Em todas as questões. É uma escolha política”.

Mas uma coisa é fato: essa busca empreendida pelo Coletivo Negro está intrinsecamente ligada à herança das preocupações daquela que talvez seja a primeira companhia de atores negros do Brasil: o Teatro Experimental do Negro (TEN), formada em 1944, por Abdias Nascimento (1914 – 2011). “O TEN foi uma contraposição a um outro teatro que não era do negro, senão ele nem precisaria ter este nome. Não levantamos a bandeira de que nós fazemos teatro negro e ponto final, porque ainda não temos clareza se é isso mesmo que fazemos. Há alguns elementos que são comuns nestes trabalhos, como a dança, a presença dos orixás, a capoeira. Eles estão sempre presentes. Mas usar disso é fazer um teatro negro? Ou fazemos teatro e usamos estes elementos? Estamos no caminho de refletir sobre tudo isso”, conta Jé. Flávio Rodrigues complementa: “Acima de tudo, somos atores e atrizes. E negros!”

 

São questões que movem e inquietam a busca destes jovens artistas do Coletivo Negro, que estão refletindo sobre isso em termos estéticos e de conteúdo também. Uma questão complexa como se pode ler até aqui e que está longe de ter respostas fáceis. Melhor que seja assim.

 

 

 

GANHANDO A CENA

 

 

No ano posterior ao seu nascimento, em 2009, o Coletivo Negro foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo, o PROAC, prêmio fundamental para a pesquisa e realização da primeira montagem levada à público, intitulada Movimento Número 1: O Silêncio de Depois, apresentada em vários espaços de São Paulo. Este espetáculo rendeu ao grupo duas indicações para prêmios da Cooperativa Paulista de Teatro, nas categorias Grupo Revelação e Melhor Elenco.

 

O espetáculo conta a história de uma comunidade que teve de ser desapropriada para a construção de uma linha de trem. Uma metáfora da constante desterritorialização enfrentada desde sempre pelos negros no Brasil (ainda persistindo terrivelmente nos dias de hoje, como nos comprovam as recentes histórias do incêndio da Favela do Moinho, em São Paulo e a desapropriação do Pinheirinho, em São José dos Campos). Era necessário ter a questão da cor diretamente tratada no espetáculo, conta Aisha, porque apenas quem tem este tom de pele enfrenta certas coisas em nosso país. “Quem tem este nariz, esta boca, este cabelo, vai passar por problemáticas que outras não passam. E era importante ter isso na peça de forma a tornar esta realidade algo social”.

 

 

 

 

Na construção deste espetáculo, que passeia pelo doce da poesia de um menino empinando sua pipa, ao amargo da realidade social da expulsão e da morte, os artistas tiveram um processo longo, onde viveram diversas experiências antes da criação das personagens do espetáculo. Textos do TEN, vivências de performances, visitas ao quilombo (que despertaram neles questões ancestrais) e pesquisas nas teorias raciais do século 19, que pretendiam embranquecer o país. Os ensaios aconteciam no Tendal da Lapa, espaço que se localiza bem ao lado de uma linha de trem. Durante os ensaios, toda vez que o trem passava, eles tinham que parar e silenciar para retomar o trabalho depois da sua passagem. Sensação que o público do espetáculo também vivencia porque o contratempo acabou por ser incorporado à montagem. O cuidado em mostrar que os universos negros são diferentes, também está presente na peça. Alguns personagens foram inclusive criados para dar conta do discurso que grupo queria passar para seus expectadores. A mulata sambista, o menino que começa a sua vida e a guardiã da memória, são alguns exemplos.

 

O Coletivo Negro foi agraciado com alguns prêmios, sendo um deles uma ocupação artística que lhes rendeu três meses de apresentações no cobiçado (e elitista) Teatro da Universidade de São Paulo, o TUSP. Participaram de festivais e mostras. Entretanto, evidencia-se, face à aceitação de sua produção por uma elite pensante dos estudos de artes cênicas, que eles refletem a imagem de “alguéns”: de negros e negras invisíveis, indagadores, lutadores; de brancos e brancas, amarelos e amarelas, vermelhos e vermelhas, multicoloridos comprometidos e sensíveis à necessidade de um Brasil igualitário e que vêm a arte como caminho possível para transformação de mentes.

 

 

 

 

O Coletivo Negro recebeu uma espécie de selo de qualidade ao ser indicado à prêmios tão representativos e que atestam a qualidade cênica de seu trabalho. “Houve um reconhecimento do oficio por pessoas que possuem notório saber do conhecimento artístico. Para a gente que desenvolve um trabalho político, que abarca esta questão racial é muito importante”, fala Jé. Junto ao chamado Núcleo Duro, também conhecido como Núcleo Artístico, acontece o trabalho de parceria com colaboradores como Julinho Docjar, cenógrafo da primeira montagem e com o grupo cultural Casa da Lapa, de São Paulo, que estão na parceria para a próxima montagem do grupo.

 

Por falar nisso, o enterro simbólico e coletivo que envolve os expectadores de todas as cores no “Movimento 1…”, que acontece no final espetáculo, sinalizava também a continuidade do trabalho e a necessidade de celebrar a racialidade e “virar a chave”. Mas atenção, o Coletivo Negro avisa que celebrar não quer dizer sair por aí feliz e contente cantando a democracia racial em verso e prosa. “A gente sabe que as questões do Movimento 1 ainda estão aí, não foram resolvidas, mas a gente precisava falar sobre elas, mas não queremos ficar só nisso. Por isso, estamos indo para o segundo movimento”, conta Flávio.

 

O segundo movimento já está sendo construído pelo Coletivo Negro: “A Celebrização do Homem Comum”. E o “enrosco” na pesquisa está justamente em saber quem é este homem comum e se existe alguém que preze pela normalidade. E quem torna esse ser comum em alguém diferente? O momento é de perguntas (e pesquisa) para o grupo.

 

 

 

 

As especificidades técnicas, conceituais e temáticas abarcam um leque de respostas que precisam ser dadas ou, ao menos, respondidas para que o próprio Coletivo continue a construção de suas peças. Eles estão firmes no caminho. Entretanto, Flávio, fez uma bela e psicanalítica observação de que o Coletivo “está no mergulho do movimento íntimo de ser negro”.

 

Durante a conversa com os seis integrantes do Coletivo, em uma fria, mas acolhedora noite, numa das salas do Condomínio Cultural, na Rua Mundo Novo (nome sugestivo de muitas boas vibrações!), onde o grupo loca uma excelente sala para ensaios, falávamos sobre como, veja só, em um país que adora se proclamar multirracial, diverso e mestiço, chama a atenção este Coletivo Negro unido, caminhando pelas ruas da cidade, com seus cabelos, bocas, cores e narizes que chamam a atenção por onde passam. Mas, não há de ser nada, pois como canta a música Mundo Negro, do Ile Ayê:

 

“Somos Crioulo Doido somo bem legal/
Temo cabelo duro, somo black power!”

 

 

 

 

 

 

 

Renata Felinto

RENATA FELINTO é professora adjunta de Teoria da Arte da URCA/CE. Doutora e mestra em Artes Visuais pelo IA/UNESP, bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição. Licenciada em Artes Plásticas pelo Centro Belas Artes. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.