dezembro de 2020
***
Ana Lira
O meu corpo não foi meu nos últimos anos.
Ele foi dos processos
das intensidades
do que materializei quando assentava os resultados das ventanias
redemoinhos
danças e vidas
e das mortes que me enviaram sem que eu pedisse | quisesse.
O meu corpo não foi meu em plenitude…
ou foi
porque plenitude é um estado de presença –
e sinto que foi ela quem acionou as forças
os lugares
as permissões
Vejam bem.
Estamos em novembro de 2020
e recebo este convite para escrever uma observação crítica sobre o IMS Convida.
Eu olhei para o meu corpo atravessado de marés altas
e me perguntei como encaminhar um gesto que respeitasse o meu momento de reconexão com as sensibilidades cotidianas
e a confiança do convite…
discutindo relações de poder
– uma questão tão simbólica para mim,
que atravessou a minha produção
como artista, curadora, articuladora…
pessoa existente nesse mundo –
e conversar sobre estas relações no âmbito da amplitude do programa.
Fechei os olhos e senti que isso poderia envolver muitas possibilidades:
curadoria
relações
obras
criação
redes
financiamentos
territorialidades
geopolíticas
; pensei, até, se me debruçaria em palavras escritas
ou faria um programa de rádio para esta conversa.
Mas, era um convite-texto…
então, vamos seguir as curvas de vento das escrituras.
Curadoria pode ser – entre outras coisas –
uma vastidão de intenções.
Deixo este espaço vazio entre páginas para que trafeguemos entre as coisas possíveis…
liberemos nem que seja para si mesmes outras formas de_
entrega curatorial.
E digo isso porque a curadoria do IMS Convida me deixou contente,
mas inquieta.
Ela recebe muitas sensibilidades cotidianas
acolhe práticas artísticas amplas, dentro do possível pandêmico
– ainda que a institucionalidade deixe claro
(para os investidores? Circuitos das artes? Quem?)
que as obras não representam a opinião da instituição
(este capítulo nós conhecemos) – mas…
manteve mais de cinquenta por cento dos recursos
de suas três etapas
em projetos de artistes baseados no sudeste
| entre residentes fixos e em trânsito-covid |
Olhando com mais cautela as listas de artistes
e seus embrenhamentos intra-plataforma
| porque isso é importante |
meu corpo nota que muitos estados do norte/nordeste
sul/centro-oeste
continuam espectros
na geolocalização dos financiamentos. Mesmo na pandemia.
Fiquei me perguntando: como se constrói a curadoria do IMS Convida, na prática?
Por que ela não consegue chegar com profundidade em Tocantins
Roraima Espírito Santo
Rondônia
Amazonas Acre
Amapá
Alagoas
Rio Grande do Norte Sergipe
Piauí
Paraíba
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Goiás
Paraná
Santa Catarina
?
Estou falando de estados que meu contar
– entre listas e embrenhamentos –
não conseguiu identificar mais de 5 nomes envolvidos.
É a pandemia.
Não, gente!
Há internet [ainda que básica] em todos os estados.
Que esforços podem ser feitos para que esta produção chegue?
Estados, como Tocantins,
[se meu contar não se perdeu]
não apareceu com nenhum nome.
Até eu – que apenas senti vestígios do cheiro do Tocantins
pelos relatos dos povos Kalunga, em Goiás –
sei que tem uma produção potente naquele lugar.
Então, meu povo, ampliem a direção dos apoios.
E, digo isso, entre a vontade de ver o Tocantins bombando
– e toda aquela lista ali citada;
incluindo os estados-meio-de-caminho
[como o meu, Pernambuco] –
e o medo das práticas coloniais da arte
que mantêm as produções de certos estados do Brasil
como time de base de campeonato de futebol
(aquele que é lembrado na biografia do craque,
quando este segue à risca a jornada do herói
mas nunca
nunca recebeu o incentivo devido).
A pandemia deveria nos levar a lugares outros,
assim sinto.
E desmontar a jornada do herói
do mito
deveria ser a principal delas.
[porque transformação coletiva é
sobre isso também].
Quero dizer, todavia,
que as produções – até então apoiadas –
continuem sendo apoiadas. Sim!!!
Estou em estado de amor por diversas delas
Dijuena Tikuna
Lumena Aleluia
Ana Pi
Panteras Negras
…
minha lista de desejos é intensa
como as marés que me moveram
olhem, colegues
olhem!
os versos das obras
de Amanda Falcão
contra-narrativa é isso
[que histórias dos vencidos, que nada…]
Por sinal
Por sinal
vencidos – minorias
são palavras que deveríamos nos despedir.
Elas não nos permitem um caminho-potência.
leio [escuto] lembro
daquele instrumento de tortura
perdido no meio do canavial
ou do cafezal
ou do pantanal
ou dos pampas
ou da Amazônia
sem pororoca.
E uma trafegada em estado de entrega
pela produção racializada na plataforma
nos mostra que podemos ter pouco financiamento
mas não a preguiça-cômoda
da obra-qualquercoisa-pandemia
Ainda somos corpos-macaréu
apesar dos modelos (in)sustentáveis
espalhados pelo Brasil
o que não significa mantê-los.
Vou repetir:
apesar da nossa produção in/tensa
não devemos manter
os modelos (in)sustentáveis
espalhados pelo Brasil
Para entender o que estou escrevendo
descrevendo
insistindo
debruce atenção cautelosa
sobre cenários
temas
práticas
estruturas
apresentadas pelas listas de artistes na própria plataforma
As assimetrias
| há quem chame de diversidade |
estão todas apontadas de A-Z
O espaço de pesquisa
e deleite [que eu me dei o direito de viver, é claro]
é, também, é também, atalaia
lugar de observação-redesenho
de uma política pública de cultura
que nos respeite.
E ouso falar em política pública de cultura
porque o incentivo privado à cultura, no Brasil,
na verdade, é público.
Em boa parte…
via leis de incentivo, isenção fiscal e seus afins.
E somos privados
do que é privado-nosso.
Olho para a produção que ainda
nem aportou neste espaço-quarentena
e em outros em andamento pelo país
e sinto que a pandemia
ainda nos oferece tempo de [re]compartilhar poderes
e nos assentar
em terras de segurança criativa
e dignidade financeira
na perspectiva do respeito à integridade
e não da caridade
(que sempre nivela por baixo –
e pelo entendimento de quem oferece
– as necessidades de quem recebe).
E isso, meu bem, eu dispenso.
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[quando o vento desloca em chamados
oceanos espraiam suas
fronteiras]
* Conteúdo originalmente produzido para o “IMS Quarentena – Programa Convida 2020”.