agosto de 2012
QUINTETO ABANÃ: UNINDO O QUE A HISTÓRIA QUIS SEPARAR
Christiane Gomes
Na língua tupi-guarani Abanã significa gente de cabelo forte e duro. Numa adaptação mais livre desta jornalista que vos escreve, a expressão remete também à gente de fibra, corajosa, ousada e criativa. Adjetivos estes, digamos subliminarmente escondidos por trás desta palavra de origem indígena, que casam perfeitamente com o trabalho desenvolvido pelo coletivo paulistano Quinteto Abanã.
Formado há 10 anos na cidade de São Paulo, mas só recentemente com uma agenda de apresentações mais regulares, o grupo vem roubando a cena cultural paulistana por desenvolver uma inovadora pesquisa musical que busca unir a delicadeza da música clássica as pungentes batidas da sonoridade africana e afrobrasileira.
Giovani Di Ganzá (violão), Renato Antunes (violoncelo), João Nascimento (percussão) e nos vocais a bela e lírica Negravat formam o… Sentiu falta de mais alguém para ser um quinteto, não é? Pois bem, o quinto elemento é um posto flutuante ocupado por um artista convidado, e que pode ser um instrumentista, uma dançarina, um cantor, enfim.
Se deixarmos nos levar pelo senso comum, a primeira vista, as músicas lírica e afro podem parecer distantes esteticamente. Algo como água e óleo, que não se misturam. Mas isso é o que a história e também a sociedade nos fizeram acreditar: cada um no seu quadrado, cada produto em sua prateleira. Porém, a pesquisa do Quinteto Abanã mostra que estamos muito, mas muito enganados. A singeleza do trabalho destes jovens artistas nos mostra, em termos práticos e sonoros, que o lirismo de um violão clássico e o afro de uma canção para orixás, estão muito mais próximos do que pode supor nossa vã filosofia.
O Quinteto Abanã, originalmente um duo, nasceu do encontro de Di Ganzá e Negravat, que se conheceram em uma oficina de audiovisual na Universidade Livre de Música (UML), em São Paulo, no ano de 2002. Na época, os dois iniciavam na arte musical. “A gente se interessava por arranjos, transcrições de canções para o piano e violão. Passamos por diversos repertórios. Enquanto isso, fomos nos reconhecendo na questão negra. Como só reproduzíamos canções européias, começamos a pensar que deveríamos fazer algo relacionado à cultura afro. Por questão de identidade mesmo”, conta Negravat.
Foi aí que a ficha caiu. “Somos negros. Vivemos no Brasil. Vamos ficar reproduzindo a técnica européia? Não. A gente queria se identificar, buscar a música negra e indígena. Então começamos a pesquisar”, complementa. Nesse caminho, outras pessoas surgiram atraídas pela proposta do grupo e, claro, com uma pitada de ajuda do universo conspirando a favor.
Numa ensolarada manhã do inverno paulistano, em um prédio de arquitetura seiscentista na região central de São Paulo, encontramos os quatro elementos do Quinteto Abanã para uma conversa sobre o projeto, sua formação, seu processo de pesquisa, repertório. A seguir trechos deste encontro.
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO
Negravat: No início, Di Ganzá e eu formávamos o Duo Abanã, com a proposta de transpor as batidas do ritmo afro para o violão. Mas todo mundo dizia que faltava uma percussão, o próprio Di Ganzá concordava com isso. Quando o Di Ganzá conheceu o João Nascimento, me contou que ele, além de tocar muito bem, também tinha uma aproximação com a pesquisa que fazíamos. Nessa idéia de ter um percussionista, a pessoa que a gente pensou, de cara, foi o João.
Di Ganzá: Fomos convidados, Negravat e eu, a ir na comemoração do aniversário do João. A gente quis dar um presente para ele em forma de musica e lá foi o grande encontro que tivemos.
João: Conheci o Di Ganzá em 2009, durante um trabalho teatral coordenado pelo João das Neves. Foi quando ele me chamou para ensaiar com o Abanã. Tudo aconteceu de uma forma muito orgânica.
Negravat: Nessa mesma época o Di Ganzá estava compondo as canções para a Yorubópera Logun-Edé (1). Inserido neste processo, ele pensou que o Abanã também poderia ter alguém que tocasse violoncelo. Uma pessoa que lesse partituras, dominasse o instrumento, mas que também tivesse abertura para nossa proposta.
Di Ganzá: O Renato foi fazer um teste para entrar como músico na Yorubópera Logun-Edé. Ele passou e ficamos amigos. Logo depois apresentei a proposta do Abanã, ele se adaptou e pronto, já estávamos tocando juntos.
Renato: Quando cheguei, o grupo já tinha uma proposta bem definida e um repertório pronto. Pra mim foi mais fácil.
RUPTURA AFROLÍRICA
Di Ganzá: Nossa proposta nasceu a partir da vontade de nos reconhecermos. Ouvir algo que pudéssemos nos identificar. Eu gosto muito de (Wolfgang Amadeus) Mozart, de (Frédéric François) Chopin, mas tinha o desejo de ouvir algo que fosse erudito e que ao mesmo tempo tivesse características da minha cultura. Foi até uma vontade um pouco ingênua de juntar duas coisas tão diferentes e fazê-las dialogar. Porque a musica clássica sempre foi vista como de excelência e mãe de todas as músicas; já a música étnica foi, e continua sendo, encarada como um simples batuque, ligada à religiosidade.
Renato: Todos nós buscamos nossa identidade cultural. Todos temos essa necessidade. O Di Ganzá, por exemplo, é formado em violão erudito. Por isso, ele não vai se contentar em fazer uma música que remeta à seus ancestrais fazendo, por exemplo, um violão com apenas três acordes. Ele vai transpor isso! É uma forma de aproximar a música clássica das pessoas, entende.
Negravat: A ideia do Abanã é aproximar, e essa proposta está diretamente ligada à minha escolha de fazer esse trabalho. No canto lírico, vemos muitos estereótipos. Em uma ópera de Mozart, por exemplo, nunca a cantora seria uma menina como eu: negra e com dreads no cabelo. Quando comecei a cantar, não tinha muita consciência disso. Á medida que fui estudando, me liguei na coisa do cabelo, da pele e me dei conta de que não me encaixava no que as montagens operísticas tradicionalmente pregavam. Isso foi determinante para que eu escolhesse cantar as canções que fazemos no Abanã. Não sentia vontade de me adaptar a nenhum estereótipo europeu. Seria como se eu me renegasse. A arte para mim está ligada à vida. Mas até eu entender isso, vivi uma grande crise. A minha intenção não é mudar o meio clássico. Ele está aí, consolidado; o respeito, mas tenho minha liberdade.
No Abanã, além da ideologia, temos também a necessidade de fazer algo diferente do que já existe. Fiz minha escolha de dedicar-me à cultura afro, continuando com meu canto lírico, mas seguindo minhas idéias. Não adianta só ser bonito. Tem que ser bonito, criativo e verdadeiro. Me sinto verdadeira fazendo canto lírico dos orixás. Fui descobrindo coisas sobre mim que não saberia fazendo outro repertório. Eu posso até cantar outras canções, mas onde eu me encontro e sinto minha ancestralidade e meu caminho é nesse repertório.
João: O Abanã na verdade propõe uma quebra de paradigma. O que é música clássica? Aprendemos que é Mozart, Beethoven… Mas a África também tem sua música clássica, o Brasil, a Índia, a China, enfim, todos os países, culturas e etnias tem. Quando propomos essa fusão de linguagem e de cultura estamos propondo uma quebra de formatações do que aprendemos desde cedo. Estou estudando história da musica ocidental que, oficialmente, começa com a escrita. Mas e antes disso? E as civilizações antigas? Porque não são consideradas?
Falar de música ocidental a partir de um registro de escrita nos faz pensar se as populações indígenas que viviam aqui não tinham sua música. Os colonizadores portugueses chegaram aqui e não encontraram nada? Todos estes paradigmas estabelecidos nos tentamos quebrar e simplesmente fazer uma música que tenha sentido para nós.
O concerto de câmara, algo que gostamos de fazer por ter uma formação mais acústica, era em sua origem, e ainda hoje continua sendo, feito para uma elite, para os nobres e nunca para o povo. Daí você se liga e percebe porque ainda hoje é grande o número de pessoas que nunca entrou no Teatro Municipal de São Paulo, por exemplo. Por aí entendemos a estrutura de muita coisa.
Através deste pensamento que propõe uma ruptura dos paradigmas impostos a nossa sociedade é que surge o projeto de se fazer uma ópera a cerca da cultura yorubá, a Yorubópera Logun Edé. A primeira reação é se pensar que isso não encaixa muito bem, que pode ficar meio estranho. De repente tem um grupo que faz musica clássica e lírica a partir da mitologia de orixás e de seus cantos sagrados. Isso quebra tudo. A gente está tentando cada vez mais buscar o que faz sentido pra gente. Essa nova composição, essa forma diferente do fazer. A minha música brasileira também é clássica e erudita. O jongo, o samba, a umbigada, que são feitos há tempos, também são clássicos. Assim como Noel Rosa e Pixinguinha.
PROCESSO CRIATIVO
Di Ganzá: Inicialmente, a tarefa de fazer os arranjos do Abanã era minha, mas depois que chegaram o João e o Renato esse trabalho se dividiu. Fazemos juntos. Claro que muitas vezes eu levo propostas, mas tudo é muito aberto e livre. O João faz músicas incríveis, já temos quatro composições dele em nosso repertório.
João: Quando entrei no grupo já havia uma pesquisa e uma proposta bem trabalhada. Um repertório com base nas cantigas para os orixás e composições próprias. Hoje esse repertório vai se renovando. O processo criativo é dessa forma: temos um norte, que são músicas de matriz africana e indígena e em cima disso pesquisamos e experimentamos aquilo que funciona ou não. Teve muita coisa que surgiu do processo da Yorubópera Logun Edé, como a música para Oxum que é composição do Bruno (Gravanic, autor do texto do espetáculo). Depois, esse mesmo núcleo (Di Ganzá, Negravat, Renato e eu) fomos trabalhar com o coletivo Treme Terra no espetáculo Terreiro Urbano (2). Muita coisa do nosso repertório também surgiu ali. A química do grupo na criação é muito boa.
Negravat: Cada um no grupo tem seu jeito, sua forma de trabalhar, de compor, e isso é um grande aprendizado e uma troca constante entre nós.
Renato: Nosso trabalho tem sido muito bem visto e a cada apresentação que fazemos temos um retorno muito bacana e imediato. Acho que isso tem a ver com o processo de criação. Transpor o ijexá, batidas de atabaque, células rítmicas percussivas, em outros instrumentos é demais. Posso tocar um ijexá no meu violoncelo, por exemplo. Assim como o Movimento Armorial fez com a música sertaneja no nordeste do Brasil, estamos nesse caminho de juntar células rítmicas afrobrasileiras em instrumentos clássicos.
JUNTOS E MISTURADOS: REPÚBLICA NEGRA DE SÃO PAULO
João: É legal entender o Abanã não apenas como um grupo musical, estamos preocupados com questões que vão além da estética acústica. Queremos juntar as pessoas. Trabalhar com a comunidade pra gente é fundamental e um estímulo para o nosso processo criativo. Fizemos, por exemplo, um trabalho com o Treme Terra (Di Ganzá e João) onde participamos da peça Orfeu Mestiço (3), eu faço parte da Frente 3 de Fevereiro, a Negravat também canta com o grupo A 4 Quatro Vozes, enfim, fazemos parte de um movimento muito intenso que está acontecendo em São Paulo com a cultura afro. A gente pode contribuir para tornar isso mais forte. Não como únicos, mas nos somando a esse processo. Queremos trazer questões culturais e políticas, em uma de nossas canções, falamos da usina de Belo Monte. Nos preocupamos com o que acontece no mundo hoje.
Renato: Eu já morei em vários estados do Brasil. Agora, que estou em São Paulo, posso dizer que o movimento cultural afro está muito forte na cidade. O Ilú Obá de Min, por exemplo, a cada ano leva mais gente em seu cortejo pelas ruas da cidade no carnaval; o Treme Terra, a dança afro, os DJs que estão usando a música africana, a cultura hip hop. Acho que as coisas estão caminhando. Claro que é um processo lento, mas estamos inseridos nele. Hoje em dia com a internet, as pessoas inquietas estão se encontrando, trocando, se conectando. E esse é um processo histórico do qual fazemos parte.
ENCONTRO COM CARLOS MOORE
João: Mandamos uma música para o Carlos Moore (4) e, na sequência, fomos entrevistá-lo. Mas no encontro, foi ele quem nos perguntou: ‘a música de vocês está a serviço do que e para que?’ Ele nos disse que arte ou é subversão, ou é conformismo, e que cabe ao artista decidir. Ele colocou uma pulga atrás da nossa orelha mesmo. Moore é uma pessoa muito provocativa no melhor sentido que isso pode ter. Ele nos disse que podemos fazer música do jeito que quisermos.
Negravat: Sempre tive uma rigidez muito forte quando cantava. E as coisas que ele disse para a gente me fizeram acessar outros lugares. Até agora estou digerindo o que conversamos. Hoje eu não penso só em ter a técnica, busco mais. Não quero só cantar bonito. Quero despertar sentimentos na pessoa que me ouve: a lágrima que cai, o coração que acelera. A música é uma forma de compartilhar e o individualismo cerca um pouco o artista quando ele está no palco. Mas eu estou aqui para dividir, para trocar. E isso foi muito legal no processo com o Treme Terra. A gente tem que agregar. Eu ganho muito mais quando compartilho.
PRÓXIMOS PASSOS, LONGO CAMINHO
João: Estamos no processo de pensar no nosso primeiro disco. Fazer menos shows para focar na produção desse registro, como escolher repertório, porque tem musica que funciona em show e outras não. Estamos tentando também buscar editais, captar recursos para gravar. Discutimos também quem poderão ser os convidados. A fase é de estabelecer a continuidade do projeto.
1-Escrita por Bruno Gravanic e com direção musical de Di Ganzá, a Yorubópera Logun-Edé conta a história desse orixá, filho de Oxóssi e Oxum. A opereta, destinada ao público infanto-juvenil é acompanhada de batidas de atabaque, instrumentos de percussão, violão, violoncelo e flauta transversal, além de sete atores e atrizes que também cantam.
2-O Treme Terra, grupo que nasceu em 2006, no Morro Do Querosene (bairro paulistano com forte tradição cultural popular), trabalha na valorização e difusão da cultura afro-brasileira por meio de oficinas de formação artística, voltadas para jovens. Em sua sede, hoje localizada no Rio Pequeno, bairro da periferia de São Paulo, são oferecidas oficinas gratuitas para a comunidade local. Em abril de 2012, estreou e espetáculo Terreiro Urbano, que tem como base a sonoridade, a dança e os elementos tradicionais da cultura afro-brasileira, sobretudo extraídos dos rituais dos terreiros de candomblé.
3-Orfeu Mestiço, uma Hip Hópera Brasileira, é a mais recente montagem do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, mistura a ópera com a linguagem popular e urbana do Brasil ao contar a história de um político que retorna ao seu passado.
4-Cubano radicado em Salvador, Carlos Moore é pesquisador especialista em questões de raça, gênero e etnia. Escritor, é autor do livro Fela, essa vida Puta, em que conta a trajetória do nigeriano criador do Afrobeat, Fela Kuti.