maio de 2019

O ROCK’N’ROLL, O ROCK E OS NEGROS

Jun Alcantara.

 

 

 

 

 

Chuck Berry, em 1968, e sua mágica performance.
(Michael Ochs/Getty Images)

 

 

 

 

 

 

 

Muito se fala sobre a origem negra do Rock. O que é a mais pura e incontestável verdade. Mas poucos sabem dizer o que é o Rock’n’Roll, como nasceu e o que aconteceu em seu surgimento e desenvolvimento. Reparem que começo o parágrafo dizendo “Rock” e posteriormente digo “Rock’n’Roll”. Não foi acaso, viu? Esse texto pretende ser um pequeno e resumido guia sobre esse capítulo do grande livro da música negra criada no século XX.

 

Antes do Rock’n’Roll

Costumo dizer que o Blues é a essência de toda a música negra norte-americana criada nos séculos XX e XXI. O Blues, até o final da década de 1930, era basicamente rural, feito com violão acústico e instrumentos percussivos. Às vezes tocado no piano. Com o êxodo dos negros – à procura de empregos – para os grandes centros urbanos, a vida ganhou outro ritmo. A cidade era mais barulhenta, mais rápida e exigia dos músicos equipamentos como microfones e amplificadores em suas guitarras elétricas (os violões ficaram de lado) para serem ouvidos. O cotidiano mudou e a música também. Desse novo ritmo de vida, da necessidade de novos equipamentos e, principalmente, a partir de um desejo de criação insaciável desses jovens negros surgia um novo gênero: o Rhythm & Blues (hoje simplificadamente chamado de R&B). Durante a década de 1940, esse novo gênero se desenvolveu e produziu novas vertentes, também conhecidos como subgêneros, ou seja, diferentes tipos de R&B foram criados ao longo dos anos seguintes.

 

 

O Rock’n’Roll…

…é um desses subgêneros, e nada mais é do que uma vertente do Rhythm & Blues. Simples assim: é sua faceta mais veloz e frenética, desenvolvida e consolidada a partir da segunda metade da década de 1940. Seriam Chuck Berry, Little Richard e Fats Domino, certamente alguns dos seus maiores nomes. Mas respondendo às perguntas que iniciam o artigo: o Rock’n’Roll não foi criado por uma pessoa só. Nem por duas. Ele é resultado de diversas experimentações musicais feitas dentro comunidade negra, por inúmeros músicos e bandas. Nomes menos conhecidos como Ike Turner, Wynone Harris, Jackie Wilson, The Coasters etc não são menos importantes do que a trindade formada por Chuck, Richard e Domino. Embora não possa ser caracterizada como Rock’n’Roll, certas músicas de Sister Rosetta Tharpe – repletas de riffs de guitarra bastante característicos – ainda no início dos anos 1940, também influenciariam o que se consolidou musicalmente como o Rock’n’Roll.

 

Pré-Rock’n’Roll: a influência dos riffs de Sister Rosetta Tharpe. (Chris Ware/Getty Images)

 

 

Diferente do que se costumava ver no Blues, as performances ousadas eram uma obrigação para os rock’n’rollers. Com apresentações absurdamente performáticas, sexys e dançantes, essa vertente do Rhythm & Blues acabou por dificultar a vida de bluesmen mais “tradicionais” como, por exemplo, BB King, que não tinham como elemento em seus shows o uso de sua própria corporeidade de forma dançante e contagiante. Dançar, ajoelhar, se deitar, abrir espacates e abusar dos movimentos dos quadris era algo comum para qualquer um desses rock’n’rollers. A canção “Rocket 88” é comumente referida como o primeiro Rock’n’Roll gravado, por conter todos os elementos que caracterizariam o estilo.

 

 

Os Brancos no Rock’n’Roll

No início dos anos 1950, donos de rádios e executivos de gravadoras percebiam um vertiginoso crescimento do interesse de jovens brancos pelo Rhythm & Blues e, mais especificamente, pela vertente Rock’n’Roll do gênero. Os shows dos músicos negros, além da enorme plateia negra, começaram a contar com a presença sempre crescente de jovens brancos. Isso preocupava cada vez mais a sociedade branca. Autoridades como políticos, chefes de polícia, além de associações de pais e outras personalidades influentes na comunidade branca, se manifestaram explicitamente contra o Rock’n’Roll. Em palavras deles mesmos, a música dos “niggers” (expressão usada para ofender negros) era “animalesca e vulgar, claramente uma forma de fazer os homens brancos e seus filhos descerem ao nível dos negros”.

 

 

“Embora não possa ser caracterizada como Rock’n’Roll, certas músicas de Sister Rosetta Tharpe – repletas de riffs de guitarra bastante característicos – ainda no início dos anos 1940, também influenciariam o que se consolidou musicalmente como Rock’n’Roll”.

O desespero cresceu ainda mais com o surgimento de figuras como Elvis Presley e Bill Haley, homens brancos fazendo música negra e com apresentações inspiradas no estilo de performance dos rock’n’rollers negros, que difundiram esse som para um público branco ainda maior (público que os artistas negros ainda não eram capazes de alcançar, por conta do racismo). Obviamente, fizeram muito mais sucesso, ganharam muito mais dinheiro e prestígio com a música negra do que os próprios artistas negros do período. Para além disso, a sociedade branca sofreu um fenômeno inédito. Pela primeira vez, os jovens brancos não ouviam a mesma música que seus pais ouviam e não se vestiam do jeito que seus pais se vestiam. Esse tipo de “má-influência” que os negros exerciam gerou proibições de shows e da execução do Rock’n’Roll em muitas rádios.

 

 

 

 

Rock Music

Rock’n’Roll e Rock são coisas diferentes. Como disse anteriormente, o Rock’n’Roll é uma vertente do Rhythm & Blues. O Rock seria o que se seguiu ao passar dos anos, já desvinculado do papel de subgênero e se tornando um gênero próprio, com suas próprias vertentes/subgêneros. Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones, no documentário “Keith Richards: Under The Influence”, sobre sua vida, confirma essa teoria. Segundo ele, o Rock seria uma decorrência da transformação que o Rock’n’Roll sofreu quando jovens brancos o adotaram como música deles. Muitos outros estudiosos da cultura musical pensam da mesma maneira. O Rock tem sua origem no Rock’n’Roll, mas já não seriam sinônimos.

 

Na década de 1960, bandas como The Beatles fariam sua própria interpretação de artistas e bandas negras como Fats Domino e The Isley Brothers. Enquanto isso, as também inglesas The Rolling Stones e The Yardbirds buscariam suas inspirações no Blues elétrico de Muddy Waters e Howlin’ Wolf, chegando até ao resgate do Blues feito nos anos 1930, de nomes como Skip James e Robert Johnson. Esses jovens consolidariam o Rock como um gênero amplo, que a cada ano ganhava mais e mais ramificações. Além de toda a raiz e base firmada nos conceitos musicais do Rock’n’Roll, o Rock continuava bebendo na fonte da música negra.

 

 

Nos anos 1960, o fenômeno Jimi Hendrix

James Marshall Hendrix foi um dos divisores de água na música. Sua carreira como artista e frontman durou apenas entre os anos de 1966 e 1970. Sua genial habilidade como compositor, instrumentista e experimentador de inúmeras sonoridades e texturas musicais – de alto teor psicodélico – foi definitiva para a música mundial. No Rock, gerou padrões estéticos seguidos até hoje. Nos gêneros negros contemporâneos a ele, como o Funk, o Jazz Fusion e o Soul, foi igualmente influente. É impossível pensar o que seria o trabalho de Sly & The Family Stone e Parliament sem sua influência. Assim como é impossível imaginar o rumo que as carreiras do veterano do jazz Miles Davis e do prodígio Stevie Wonder, de 1969 pra frente, teriam tomado sem as influências de Hendrix.

 

Jimi Hendrix foi um divisor de águas na música, moda e comportamento. Aqui ele se apresenta no Royal Albert Hall, em 1969. (David Redfern/Redferns)

 

 

Para além da música, o estilo impecável do artista também impactou profundamente toda a forma de se vestir dos artistas da música pop norte-americana e inglesa (consequentemente, influenciando o mundo todo, já que eram influenciados pela a cena musical dos Estados Unidos e Inglaterra). O que muitos não sabem é que, antes de sua carreira autoral, Jimi Hendrix foi um conhecido guitarrista do circuito de R&B e posteriormente de Soul Music. Emprestou seu talento às gravações e apresentações ao vivo de nomes como Little Richard e The Isley Brothers. Sua essência e amplo conhecimento nesse tipo de sonoridade traçou as novas direções do Rock, confirmando que a influência abundante e direta da comunidade negra nesse gênero continuava fortíssima.

 

 

O Hard Rock e o Punk nos anos 1970

Uma das bandas mais importantes da história da Irlanda, Thin Lizzy, teve como líder, principal compositor e frontman um homem negro. Improvável, mas real. Naquele tempo, era um dos pouquíssimos negros vivendo no país. À frente da banda, Phil Lynott teve importante papel na formação do Hard Rock e também do Heavy Metal no início dos anos 1970. Inspirado por Jimi Hendrix, viu que era possível para um negro entrar nesse gênero, que na época já era completamente dominado por brancos.

 

O Thin Lizzy, banda irlandesa liderado por um homem negro – na época um dos pouquissimos negros nascidos na Irlanda. (Michael Putland/Getty Images)

 

 

Também diretamente influenciados por Hendrix e sua psicodelia, a banda Black Merda (a última palavra é um trocadilho para “murder”, em referência ao assassinato de jovens negros nas ruas) gravou dois discos e alguns singles, mas não teve muito sucesso. Já Love, banda aclamada no underground do Rock e liderada por Arthur Lee, alcançou um destaque maior, fazendo um Folk Rock tipicamente sessentista e, posteriormente, ficando mais psicodélica, sendo mais influenciada pela Soul e Funk Music, na primeira metade da década de 1970.

 

“…é impossível imaginar o rumo que as carreiras do veterano do jazz Miles Davis e do prodígio Stevie Wonder, de 1969 pra frente, teriam tomado sem as influências de Jimi Hendrix”.

 

Já a agressividade e crueza do Punk, que se consolidou em 1976, antecipadas por três irmãos negros (Bobby, David e Dannis Hackney) de Detroit, e sua banda Death, ainda em 1974. Há cerca de 10 anos foram redescobertos, tiveram suas músicas relançadas e ganharam o status de visionários, que enxergaram de forma muito precisa a estética musical que futuramente seria chamada de Punk Rock.

 

 

 

 

O Hardcore Punk e o Glamour dos anos 1980

Quatro caras de pele escura e dreadlocks tocando o Punk Rock mais agressivo possível. Bad Brains foi uma das bandas fundadoras do Hardcore Punk e uma das mais influentes de toda a cena do Rock durante essa década. Som cru e de formato desconstruído, do Hardcore aos Reggaes – eles eram Rastafari, sim! Convertidos após assistirem a um show de Bob Marley em sua passagem pelos Estados Unidos. Lançaram discos com sonoridade incrível, tendo participação não só na criação do Hardcore Punk, mas também na criação de uma nova tendência, que ganhou a alcunha de Metal Alternativo. Na Inglaterra, a dupla AR Kane, apesar de pouco conhecida, é pioneira na criação do Shoegaze, uma ramificação do Indie Rock.

 

Os super astros Michael Jackson e Prince também gravaram canções de Rock ao longo de seus trabalhos nos anos 1980, deixando sua marca pela música mundial. Bebendo dessa fonte, surge também o talentoso Terence Trent D’Arby, já no final da década.

 

Agora, vamos voltar um pouquinho? Observe o quanto a androginia de Little Richard nos anos 1950 teve impacto numa geração inteira de artistas negros nos anos 1980, incluindo os citados Michael, Prince e Terence.

 

 

As Cores e o Retrô dos anos 1990

Andando pela estrada percorrida pelos Bad Brains, outros quatro jovens negros de dreadlocks aparecem, mas dessa vez usando roupas coloridas ao estilo The Fresh Prince. Eram os Living Colour, com um discurso contundente e direto sobre negritude. Numa comparação conveniente, foram uma espécie de Public Enemy do Rock. Em sua excelência técnica instrumental, que os permitia misturar muita coisa do Jazz às diferentes sonoridades do Hard Rock e Metal, também trouxeram colaborações com rappers e artistas de outros cenários.

 

Fazendo a ponte entre o Rock e as formas modernas e antigas da música negra, Living Colour. (Mick Hutson/Redferns)

 

 

No mesmo período, emerge o sujeito que se transformaria no único negro no Rock a conseguir uma posição no mainstream da indústria musical por um longo período e a faturar tanto dinheiro quanto as estrelas brancas. Esse sujeito é Lenny Kravitz, que trouxe a psicodelia e baladas de Rock dos anos 1970 com o Soul e o Funk do mesmo período. Como multi-instrumentista, compositor, cantor e produtor, ganhou status de estrela da música (além de sua atuação no cinema, vale lembrar). Hoje, merecidamente, permanece consagrado. Mas, infelizmente, ainda é o único.

 

Com sucesso estrondoso, principalmente na segunda metade dos anos 1990, as bandas de New Metal misturavam a sonoridade pesada e distorcida com o Rap, não nos deixando esquecer que a música negra paralela ao Rock continuaria a ser fonte de inspiração para várias das inovações no gênero.

 

 

Dos anos 2000 até hoje

A modernidade do Ho99o9, unindo o Hardcore Punk, Trap e o que mais quiserem. (Will Ireland)

 

 

Se para alguns a influência negra na criação do Rock só poderia ser dar dentro de um contexto de protesto e contestação, a realidade segue nos mostrando que os negros imprimem na música um sentido de mundo único. Artistas como Benjamin Booker, Gary Clark Jr. e Curtis Harding, além de bandas como Algiers (liderada por Franklin James Fisher) e Ho99o9, mostram que não só a raiz do gênero é negra, como também a comunidade negra está envolvida no desenvolvimento do Rock até os dias de hoje.

 

 

E o Brasil nessa história?

O Manguebeat de Chico Science e sua Nação Zumbi. (Fred Jordão)

 

 

Apesar de não fazer parte da linha cronológica de desenvolvimento do gênero, o Rock brasileiro existe e tem muita importância em nosso país. Importantes também foram os negros que fizeram parte dessa história. Em menções honrosas, podemos citar alguns fenômenos: no final dos anos 1960, tivemos o Rock psicodélico, brasileiro e peculiar da banda Os Brazões. Já no final dos anos 1970 forma-se a Restos de Nada, primeira banda de Punk Rock do Brasil, metade negra e metade branca. Clemente, membro fundador da banda, posteriormente integrou os Inocentes, que fez sucesso em meados da década seguinte. Nos anos 1990, Chico Science & Nação Zumbi criaram uma nova estética musical, sendo um dos fenômenos mais impactantes da história da música brasileira. Com grande destaque no mainstream da década seguinte, a musicalidade e a discografia cheia de hits da banda O Rappa reafirma a indissociável negritude do gênero.

 

 

 

 

 

 

 

 

Jun Alcantara.

Jun Alcantara é músico, produtor musical e dono do selo Pyz.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.