setembro de 2011

O CANTO AFRO-PERUANO DE SUSANA BACA

Danielle Almeida

 

 

 

 

 

ilustração João Paulo Cruz

 

 

 

 

 

 

Maria Lando. Lembro como se tivesse acontecido agora. Foi no final de uma manhã com sol ainda tímido que ouvi os versos dessa canção pela primeira vez:

 

 

“Maria no tiene tiempo (Maria Lando)
de alzar los ojos
Maria de alzar los ojos (Maria Lando)
rotos de sueño
Maria rotos de sueño (Maria Lando)
de andar sufriendo
Maria de andar sufriendo (Maria Lando)
sólo trabaja…”.

 

 

Ainda não entendia bem esses sonidos e “pescava” os sentidos das palavras que não eram familiares. Contudo, o que me arrebatou verdadeiramente foi aquela voz que entrou pelos meus poros junto com o som da guitarra[1] que a acompanhava. Um tanto confusa e excitada pela novidade, mesmo sem entender o que dizia boa parte da letra, me chega a segunda canção, ainda mais avassaladora, ainda mais penetrante, ainda mais…

 

 

“Negra, negra que te quiero,
Goza, negra presuntuosa,
Mira, que me estoy muriendo,
Dame, vida de tu boca…”

 

 

Eu nunca tinha ouvido nada igual. Aqueles ritmos e melodias me tomaram e me levaram ao encontro da obra de Susana Baca, a grande cantora afro-peruana. Susana Esther Baca de La Colina nasceu em 1944, em Chorrilos, bairro negro situado no entorno da capital Lima. De família pobre, desde muito cedo Susana Baca foi rodeada por artistas. Filha de um violonista e de uma bailarina, com ambos aprendeu seus primeiros versos de canção e seus primeiros passos de dança, fatores determinantes para a construção da artista que é.

 

Herdeira da tradição de uma das mais importantes famílias negras do Peru, os de la Colina (conhecidos por dar à cultura nacional excelentes músicos e bailarinos, como o grande percussionista Caitro Soto, entre outros), desde o início da carreira Susana optou por interpretar um repertório marginalizado e em processo de invisibilidade e esquecimento, indo totalmente contra a corrente do mercado fonográfico peruano. Sobre essa escolha, em entrevistas concedidas a diversos meios de comunicação nacionais e internacionais, Susana relembra a quantidade de oportunidades que lhe foram negadas:

 

“Ninguém me abria uma só porta. Eu batia nelas e sempre me respondiam que poesia não vendia”. As gravadoras diziam que não havia público para as suas canções e que a ninguém interessaria aquele repertório baseado em temas afro e em poesias musicadas. Entretanto, precisamente o poema Maria Lando de César Calvo, musicado por Chabuca Granda, foi a válvula propulsora de sua brilhante carreira.

 

Em 1986, foi apresentado ao músico britânico David Byrne, dono do selo Lauka Bop, filiado a Warner Bros, o vídeo de um concerto em que uma das principais atrações era Susana Baca interpretando Maria Lando. Byrne se encantou tanto por aquela voz tão singular, que alguns anos depois, Susana foi surpreendida pela visita de David, nascendo assim uma profícua parceria.

 

 

 

 

Em 1992, após 11 anos de trabalho investigativo com seu companheiro e empresário, o sociólogo Ricardo Pereira, Susana Baca lança o disco/livro “Del Fuego y Água”, resultado da coleta de canções e testemunhos encontrados nas cidades costeiras do Peru, região onde permanecem o maior contingente de afrodescendentes e as mais antigas famílias negras do país que, segundo censos demográficos, correspondem a 3% da população total. Ainda como resultado desse trabalho, em 1995, funda o Instituto Negro Continuo, um centro de pesquisa e manutenção da memória afro-peruana, voltado para o ensino de música e outros saberes às crianças e aos jovens da comunidade de Lima.

 

Ironicamente e apesar de todos os trabalhos desenvolvidos por Susana em prol de um povo e de sua história, o reconhecimento de seus compatriotas só chegou com a conquista do Grammy, na categoria The Best Folk Album, por seu disco Lamento Negro. Muito embora o prêmio tenha chegado no ano de 2002, segundo consta na imprensa nacional peruana, o disco foi editado em 1986 sem autorização da cantora,  após ter sido gravado em Havana (Cuba), curiosamente, no mesmo estúdio onde foram reunidos os músicos do projeto Buena Vista Social Club.  Passados mais de 26 anos, o brilhantismo do trabalho continua o mesmo, Lamento Negro nos apresenta música e poesia, nos apresenta história e arte. É uma reunião de poemas musicados de grandes nomes como Pablo Neruda (Chile), César Calvo e Chabuca Granda (Peru), entre outros.

 

Para a felicidade dos apreciadores de sua obra, Susana Baca acaba de lançar o disco Afrodiaspora, sugestivamente no ano decretado pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Ano Internacional dos Afrodescendentes. Nesse disco o repertório escolhido presta homenagens à herança musical afroamericana, onde, entre outras homenageadas estão as cantoras Celia Cruz (Cuba) e Amparo Ochoa (México). Nós brasileiros também fomos contemplados e temos a oportunidade de ouvir um pout-porri de canções nordestinas, denominado Coco y Forro. Uma das canções é a “No balanço da Canoa”, do compositor Toinho de Alagoas, difundidas na voz de Alceu Valença e do Trio Sabiá.

 

 

 

 

Assim, já se vão mais de dez anos desde que ouvi Susana Baca pela primeira vez. Como cantora, me impressiono com a delicadeza e qualidade técnica do repertório apresentado a cada disco. Todavia a admiro para além de uma exímia artista, compositora e dona de uma voz de cores e calores incomparáveis. A admiro pelo grande esforço de pesquisa ao qual tem se dedicado e pelo compromisso que assumiu com a herança negra em seu país, compromisso esse reconhecido pela mais alta esfera da política peruana. No dia 28 de julho deste ano, Susana Baca foi nomeada ministra da cultura pelo recém-eleito presidente Ollanta Humala. Susana Baca é a primeira ministra negra do Peru desde sua independência em 1821. Emocionada, em entrevista após os atos de nomeação, Susana Baca declarou que os afro-peruanos têm que participar da política e que trabalhará para que a cultura não seja somente para aqueles que possuem meios econômicos par adquiri-la, mas que seja democrática.

 

Graças ao trabalho de Susana Baca e outros grandes nomes da cultura afro-peruana, como os Santa Cruz e os de La Colina, nós, outros filhos da diáspora, temos podido compartilhar e apreender com um dos mais ricos resultados da produção músico-cultural e histórico-social do negro nas Américas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NOTA DE RODAPÉ

[1] Guitarra é a denominação que se dá ao violão nos países de língua espanhola.

 

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DISCOGRAFIA

Color de Rosa Poesía y Canto Negro (1987)

Vestida de Vida, Canto Negro de las Américas! (1991)

Fuego y Agua (1992)

Susana Baca (1997)

Eco de Sombras (2000)

Lamento Negro (2001)

Espíritu Vivo (2002)

Lo Mejor de Susana Baca (2004)

Travesías (2006)

Seis Poemas (2009)

Mama (2010)

Cantos de adoración (2010)

Afrodiaspora (2011)

 

 

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AFRO-PERUANOS NOTÁVEIS

Arturo “Zambo” Cavero (cantor)

Nicomedes Santa Cruz (poeta, musicólogo e folclorista peruano)

Caitro Soto (compositor, percussionista e co-fundador do grupo Peru Negro)

Victoria Santa Cruz Gamarra (Coreógrafa e Folclorista)

 

 

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MUSEU AFROPERUANO
www.museoafroperuano.com

 

 

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INFO
www.susanabaca.com

 

Danielle Almeida

DANIELLE ALMEIDA é graduada em música pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), tutora do Curso de Aperfeiçoamento UNIAFRO IVe membro do Núcleo de Apoio Pedagógico da Casa das Áfricas (SP).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.