setembro de 2013

NAUFRÁGIO, ASSUNÇÃO E FESTA NO NOVO DISCO DE SALLOMA SALOMÃO

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

 

Chega com força e água corrente o quinto álbum do músico afro mineiro Salloma Salomão – abrindo múltiplas searas para as estéticas e poéticas da diáspora negra no sudeste do Brasil e iluminando universos musicais e simbólicos relacionados às tradições dos Congos, Moçambiques, Lundus, Batuques, Fandangos entre outros teares onde se borda, com linhas requintadas, trajetos centenários da presença negra no Brasil.

 

A tradição é fio condutor do disco AURORA NEGRA – CANTOS E BATUQUES DE FORÇA, FÉ E DIMINUTAS FOLIAS, mas se torna arejada e porosa a partir de uma abordagem fundada na pesquisa histórica e estética do músico que, não por acaso, é também historiador, com fértil trajetória de pesquisa em história da África e culturas afro-brasileiras.

 

No álbum, observarmos composições repletas de narrativas que rememoram naufrágios e perdas, vozes de força e histórias de festejos. Com elas navegamos em experiências muito caras às tradições negras, tristezas ensolaradas e corações acesos na proa de navios e irmandades – tudo amalgamado em paisagens sonoras apuradas durante um ano e meio na companhia de um mosaico de jovens talentos da cena musical paulistana e do admirado veterano Carlos Caçapava, no chão do Mocambo Digital, estúdio construído por Salloma na suada estrada da produção independente.

 

Linguagem musical, escrita poética e crítica histórica bailam com lirismo e realidade em AURORA NEGRA, nos atirando em memórias atlanticamente afro-brasileiras. As letras, assinadas em maioria por Salloma, extrapolam o mero narrar, apresentando um discurso poético refinado, crítico e cortante que nos transporta para paisagens muito vivas e nos fazem refletir sobre corpos e espíritos que não se domesticaram, e proclamaram autonomias guardando os segredos necessários para o encantamento e para a sobrevivência.

 

Não trata-se apenas de um discurso sobre a escravidão e seus revezes, mas sobre o ser negro hoje – em carne, osso e transcendência.

 

Tal qual a história da diáspora, AURORA NEGRA é fruto de sanha e resistência. Tecnologias digitais e samplers visitam faixas como Pipoca Contemporânea e Cinema Novo, que o autor dedica aos Pífanos de Caruaru, Caetano e Gil. Já em Medo de Amar, traz marcantes as cordas do ngoni e da kora, instrumentos da África do Oeste; enquanto Viola D´Angola casa a marimba com a viola caipira. Vale ouvir essas e as outras 11 faixas com o corpo atento.

 

Pra gostar, estranhar ou simplesmente sacar que “coisa de preto” é ciência, poética e erudição.

 

 

 

 

 

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.