fevereiro de 2015

HOLOCAUSTO URBANO DOIS PONTO CINCO

Nabor Jr.

 

 

 

foto JAMEL SHABAZZ

 

 

 

 

Em 2015, o seminal Holocausto Urbano, álbum de estreia do grupo paulistano de rap Racionais MC´s, completa 25 anos. Lançado em 1990 em formato EP (Extended Play) – ou seja, um disco com menos faixas e com menor duração do que um LP convencional, o álbum precisou de pouco mais de 29 minutos para abalar as estruturas do hip hop brasileiro e influenciar toda uma efervescente cena rap que já vinha sendo pavimentada por grupos e mc´s como Pepeu, Código 13, Thaíde e Dj Hum, O Credo, MC Jack, Os Metralhas, Geração Rap, Região Abissal, Ndee Rap, entre outros.

 

Primeiro álbum de estúdio dos Racionais MC´s, Holocausto Urbano foi lançado pelo selo independente Zimbabwe Records, uma das facetas da Equipe Zimbabwe, tradicional equipe de bailes blacks da cidade de São Paulo e que ao lado de outras não menos importantes como Chic Show (O Som das Ruas, 1988) e Kaskata´s (A Ousadia do Rap, 1987), teve participação fundamental não apenas da divulgação e propagação do gênero em si – através das festas que promoviam – mas como também na viabilidade da produção fonográfica desta fase inicial do rap brasileiro. A produção do disco ficou a cargo do virtuoso Dj Kl Jay e da dupla santista Marcelo e Alexandre, do Dynamic Duo.

 

Se comparado aos trabalhos posteriores do grupo, Holocausto Urbano possui uma produção mediana – obviamente, não para a sua época – com batidas simples e alguns poucos samples de ícones da música negra norte-americana, como por exemplo: James Brown (samples das músicas The Payback, Mind Power e Funky Drummer em Pânico na Zona Sul), Barry White and The Love Unlimited Orchestra (samples de Strange Games and Things na faixa Beco Sem Saída) e Public Enemy (samples de Don´t Believe the Hype em Hey Boy). A clássica Corpo Fechado, de Thaíde e Dj Hum, também aparece sampleada na música Tempos Difíceis.

 

Mas foi a potência dos versos e da poesia presentes do trabalho o tapa na cara proporcionado pelo álbum. Holocausto Urbano foi o grito entalado na garganta e, até então, a expressão máxima – e mais próxima – das angústias dos jovens e negros das comunidades pobres e das periferias brasileiras. As letras do disco denunciavam de forma direta e sem rodeios o racismo, a vida na periferia, a desigualdade social, a miséria, a violência policial, a hipocrisia e a demagogia burguesa, bem como o abandono do Estado. Veemência e politização estas incomuns para o período, especialmente se analisarmos o que vinha sendo produzido em termos de rap nacional nos anos de 1980. Vale ressaltar, porém, o pioneirismo no embate contra o status quo protagonizado pela hoje famosa Homens da Lei, de Thaíde e Dj Hum, música lançada no disco Hip Hop Cultura de Rua (Gravadora Eldorado, 1988).

 

Com Holocausto Urbano, o Brasil, quase 20 anos depois do surgimento do rap nos Estados Unidos, finalmente se colocava em pé de igualdade e em sintonia com o que de mais inteligente vinha sendo produzido no berço do rap que, através das letras de grupos como KRS-One, NWA e Public Enemy, já vinham balançando as estruturas dominantes do país com mensagens extremamente politizadas que contribuíram para a formação intelectual de toda uma geração de jovens negros e latinos em solos estadunidenses.

 

Holocausto Urbano vendeu cerca de 30 mil cópias. Não demorou muito e as seis faixas do disco: Pânico na Zona Sul, Beco Sem Saída, Hey Boy, Mulheres Vulgares, Racistas Otários e Tempos Difíceis, tornaram-se clássicos para um ainda restrito público que já acompanhava a cena rap de então. Em 1991, como consequência do impacto do disco, o grupo abriu o show dos norte-americanos do Public Enemy, em São Paulo, em uma antológica apresentação do ginásio do Ibirapuera.

 

Podemos dizer que Holocausto Urbano conduziu o rap nacional, de fato, a outro patamar, aprimorando tudo o que se vinha fazendo em termos de rap até então, ditando qual caminho o gênero percorreria nos anos que o sucederam e dando início a hegemonia dos Racionais MC´s como principal grupo de rap do país.

 

Importante destacar a influência intelectual da figura do ativista político-musical Milton Salles dentro deste contexto. Produtor do grupo até 1995, Salles foi responsável por unir Brown, Kl Jay, Ice Blue e Edy Rock e, muito provavelmente, uma das referências que germinou as ideias engajadas relacionadas à consciência política, social e racial cantadas pelo grupo.

 

Mas será que hoje, 25 anos depois do lançamento do disco, o rotineiro Holocausto Urbano, como destacou Brown na letra de Pânico na Zona Sul, ainda persiste? Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos? O preconceito e o desprezo ainda são iguais? As leis ainda são implacáveis com os oprimidos?

 

Buscando refletir sobre as letras do disco, bem como mensurar a potência dos versos, da coerência ideológica e traçar um paralelo entre as aspirações, sonhos e denúncias levantadas pelo grupo na ocasião e atual conjuntura sócio racial do Brasil e do mundo, produzimos uma conversa paraficcionalmusical com os autointitulados quarto pretos mais perigosos do Brasil. Um verdadeiro beco sem saída para eles.

 

 

 

*** ENTREVISTA ***

 

 

OM2ºATO: Salve Racionais! Fazia tempo que queria trocar essa ideia com vocês. Tudo certo?
MANO BROWN: Certo não está né mano. Qual é a mão?

 

OM2ºATO: Como assim! Porque não?
MANO BROWN: …e os inocentes, quem os trará de volta? Quantos terão que sofrer para se tomar providências? Ou vão dar mais algum tempo e assistir a sequência. Eu não serei mais um porque estou esperto. Continua-se o Pânico na Zona Sul.

 

OM2ºATO: Inocentes? Trazer de volta? Você está e referindo a banda de punk rock Inocentes, do Clemente Nascimento e pá? Mas se não me engano, eles não são da Zona Sul…
MANO BROWN: Gostei, gostei….

 

OM2ºATO: Foi só uma brincadeira pra descontrair. Não me levem a mal. Mas gostaria de falar de coisas boas e tal, sobre os 25 anos de Holocausto Urbano, por exemplo. Não queria falar de inocentes, nem culpados, nem polícia, nem de…
EDY ROCK: Aqui é Racionais MC´s. (…) vítimas de uma ingrata herança.

 

OM2ºATO: Pode crê! Vocês que mandam, então. Vamos falar sobre…
MANO BROWN: A realidade das ruas

 

OM2ºATO: Firmeza! Um assunto urgente. O que a rua significa para vocês?
EDY ROCK: As ruas refletem a face oculta. Esse é o meu ponto de vista.

 

OM2ºATO: Oculta seria a realidade, é isso? Você quer dizer que as ruas refletem a verdade?
EDY ROCK: Não pergunte pra mim, tire você a conclusão.

 

OM2ºATO: Bom… minha conclusão é que quase nada mudou nas periferias brasileiras desde Pânico na Zona Sul. Soube através de umas pesquisas divulgadas no ano passado que a morte de jovens negros – maioria nas periferias do país – cresceu 21% em cinco anos. Muito foda isso, não!?¹
MANO BROWN: Se eu fosse citar o nome de todos que se foram. O meu tempo não daria pra falar…

 

OM2ºATO: Vários irmãos, né? A periferia segue sendo um lugar esquecido pela sociedade, não?
MANO BROWN: O abuso é demais. Levam cada vez mais irmãos aos bancos dos réus. Mal te conhecem te consideram inimigo. Espancam negros nas ruas por motivos banais. Então a velha história outra vez se repete.

 

OM2ºATO: O conhecido cotidiano das periferias que vocês cantaram há 25 anos segue atual nos dias de hoje…
MANO BROWN:
Só quem é de lá sabe o que acontece. Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos. O preconceito e o desprezo ainda são iguais. E nossos ancestrais por igualdade lutaram, se rebelaram, morreram…

 

OM2ºATO: E vocês sabem muito bem “quem é de lá”, não!? Já que atualmente 67% dos habitantes das favelas brasileiras são negros?²
EDY ROCK: A burguesia, conhecida como classe nobre, tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres. Por outro lado, adoram nossa pobreza, pois é dela que é feita sua maldita riqueza. E na verdade, de nós estão rindo.

 

OM2ºATO: Forte essa declaração, hein. Parece até que não há luz no fim do túnel.
EDY ROCK: A esperança é a primeira que morre. Tempos difíceis. A saída é essa vida bandida que levam. Roubando, matando, morrendo…. E assim aumenta a violência.

 

OM2ºATO: E porque essa realidade nos acompanha ainda hoje, mano, em pleno século 21?
MANO BROWN: Pois simplesmente é conveniente. No meu país o preconceito é eficaz, te cumprimentam pela frente e te dão um tiro por trás. Para eles tanto faz, não passará de simples fotos nos jornais.

 

OM2ºATO: Falando em jornais. Como analisam o tratamento que a mídia – especialmente as grandes corporações, e os jornalistas de uma maneira geral, dão aos negros, aos pobres e outas minorias aqui no Brasil?
MANO BROWN: O sensacionalismo para eles é o máximo. São pessoas assim que fodem com tudo.

 

OM2ºATO: Vocês tem uma opinião sobre o porquê desta postura por parte da grande mídia, em sua maioria, que tenta tapar o sol com a peneira?
MANO BROWN: Ninguém quer ouvir a nossa voz. E nós estamos sós. E pode crer, a verdade se omite.

 

OM2ºATO: Quando você diz a “nossa voz”, você quer dizer a voz do negro, a voz da periferia, ou de ambos? Pode explicar melhor?
MANO BROWN:
A nossa filosofia é sempre transmitir a realidade em si… mas se analisarmos bem mais, você descobre que negro e branco pobre se parecem mas não são iguais.

 

OM2ºATO: Entendi. Esse seu pensamento, porém vai de encontro aos que são contrários as cotas, ações afirmativas. O que acha do posicionamento dessas pessoas?
MANO BROWN: Ao que me parece prevalece a ignorância.

 

OM2ºATO: (risos). Demagogia pura.
MANO BROWN:
Então que fodam-se eles com sua demagogia.

 

OM2ºATO: O pior é que neste sistema em que vivemos, onde as (poucas) transformações ocorrem pela representação política, nossa esperança é bem baixa para os próximos anos. Isso porque apenas 20% dos 513 deputados federais eleitos no ano passado se autodeclararam negros.ᵌ
MANO BROWN: E porque ajudariam se nos julgam delinquentes. Acabar com delinquentes eles acham ótimo. Quem gosta de você é você mesmo, morô?. Tipo porque ninguém cuidará de você.

 

OM2ºATO: E você Edy Rock, autor de Tempos Difíceis e Beco Sem Saída, letras essas, infelizmente, atemporais, o que acha deste cenário?
EDY ROCK: Porcos, nos querem todos mortos. É dessa forma que eles querem que se proceda. O que se espera de um país decadente? Onde o sistema é duro, cruel, intransigente.

 

OM2ºATO: E tem mais hein, de acordo dados na Anistia Internacional, em 2012, dos 30 mil jovens (entre 15 e 29 anos) assassinados no Brasil, 77% eram negros. A maioria dos homicídios foi praticada por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegaram a ser julgados.4
EDY ROCK: Enquanto homens de poder fingem não ver… Se algo não fizermos, estaremos acabados.

 

OM2ºATO: Então a nossa cara é dar as caras, chutar a porta, financiar o próprio sonho?
EDY ROCK:
É difícil, mas não custa nada tentar. O dia de amanhã te espera, morô?

 

OM2ºATO: Sim, sim. Mas nosso tempo está acabando e gostaria de parabenizá-los pelos 25 anos do grupo. Como vocês definem essa trajetória?
ICE BLUE:
O sistema é a causa e nós somos a consequência.

 

OM2ºATO: E como receberam as críticas, especialmente dos fãs das antigas, direcionadas ao álbum Cores e Valores?
KL JAY:
Normal. Só falamos a verdade e a nossa parte você sabe de côr.

 

OM2ºATO: Acontece que muitas pessoas que ouviram o novo disco disseram que o velho Racionais morreu. O que vocês têm a dizer sobre isso?
MANO BROWN:
Sua moral não se ganha, se faz. E tem mais…

 

– NESTE MOMENTO MANO BROWN INTERROMPE ABRUPTAMENTE SUA FALA AO IDENTIFICAR O CANTOR LOBÃO, SEU DESAFETO PESSOAL, ENTRANDO NO BAR ONDE ESTAMOS REALIZANDO A ENTREVISTA, LOCALIZADO NA REGIÃO CENTRAL DA CIDADE DE SÃO PAULO.

 

MANO BROWN: Que esse otário esta fazendo aqui?

 

OM2ºATO: Ei pessoal, segura a peruca aí. Vamos continuar aqui com a nossa entrevista que já esta quase acabando….

 

– MAL TERMINO A FRASE E MANO BROWN LEVANTA-SE DA MESA ONDE ESTAMOS, APONTA O DEDO PARA LOBÃO E DISPARA:

 

MANO BROWN: Ai dá um tempo ai, chegai…

 

OM2ºATO: Brown, desencana mano. Deixa ele pra lá. Já passou!

 

– BROWN NÃO ME OUVE, E SEGUE INTERPELANDO O CANTOR, ENQUANTO LOBÃO, ENCOSTADO NO BALCÃO DO BAR E DE COSTAS PARA NÓS CONVERSA COM UM ATENDENTE E FINGE QUE A CONVERSA NÃO É COM ELE.

 

MANO BROWN: Lembra de mim mano?
LOBÃO: Não.
MANO BROWN: Então vamo trocar uma ideia nós dois agora….

 

– VISIVELMENTE INCOMODADO COM A SITUAÇÃO, LOBÃO E UM AMIGO QUE LHE FAZ COMPANHIA DÃO MEIA VOLTA, E COM PASSOS RÁPIDOS SE DIRIGEM A PORTA DE SAÍDA DO BAR. NESTE MOMENTO BROWN VOLTA A PROVOCÁ-LO:

 

MANO BROWN: Aí boy sai andando ai certo…
ICE BLUE: Não tem nada pra você aqui não, seu otário!
ICE BLUE: Vai caminha mano!
ICE BLUE: Vai embora!
ICE BLUE: Sai fora!
MANO BROWN: E não pisa mais aqui hein!

 

OM2ºATO: Bom, gente, o clima esquentou por aqui. Todos ficaram de cabeça quente (Brown e Blue principalmente), levantaram de suas cadeiras, quiseram partir o Lobão ao meio e por isso vamos encerrar nossos trabalhos por hoje! Até a próxima. Obrigado família Racionais! Vida longa!

 

 

FIM

 

 

 

* Entrevista ficcional com respostas retiradas das faixas Pânico na Zona Sul, Beco Sem Saída, Hey Boy, Mulheres Vulgares, Racistas Otários e Tempos Difíceis. Todas canções integram o álbum Holocausto Urbano (1990), do grupo paulistano de rap Racionais MC´s. Trabalho livremente inspirado no texto Entrevista Póstuma com Noel Rosa, do jornalista Sérgio Cabral, publicado no jornal O Pasquim, em 1973.

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

 

¹ Segundo o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade (IVJ) 2014, a morte de jovens negros em 2012 cresceu 21,3% em relação ao ano de 2007. Só em 2012, foram mortos quase 23 mil jovens negros e pardos de 12 a 29 anos no país. O número é superior à média anual de mortes em conflitos como o da guerra civil de Angola, com 20,3 mil mortos ao ano entre 1975 e 2002.

 

² Dados estatísticos do Data Favela, braço do instituto Data Popular sobre o tema. A informação, entre outras, está presente no livro Um País Chamado Favela (Editora Gente, 2014), de Renato Meirelles e Celso Athayde.

 

Segundo classificação inédita realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral, dos 513 deputados que compõe a atual legislatura (eleitos em 2014), 81 se disseram pardos e 22 pretos. O restante da Câmara (410) afirmou ser branca.

 

4 Dados da Anistia Internacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.