setembro de 2013

HOMEM BOMBA: O RAP, A POESIA E A MILITÂNCIA NEGRA DE BÁ KIMBUTA

Lau Francisco

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

 

 

Uma das virtudes mais admiradas dentro do movimento Hip Hop é a humildade. Todos, ou boa parte dos personagens que integram esse universo têm a consciência de que o respeito mútuo nasce a partir dessa qualidade (artigo tão raro nos dias de hoje), capaz de produzir não apenas fortes parcerias e amizades, como também verdadeiros laços familiares: algo que não envolve sangue, mas sim a química para a unicidade de ideias e ideais.

 

Nos primeiros minutos de conversa com o rapper, percussionista, compositor e militante social Bá Kimbuta (seu nome de batismo é Luciano da Rosa), saltam aos olhos e ouvidos essa humildade. Natural da cidade de Santo André, região do Grande ABC paulista, Kimbuta despertou para música por intermédio das cantigas de sua mãe, que ecoavam pela casa enquanto lavava roupa, e também por suas experiências no terreiro de Candomblé, onde ela o levava quando ainda pequeno.

 

Influências essas que fincaram o pé de Kimbuta nas matrizes culturais negras e, mais tarde, apuraram o olhar do menino para as mazelas do Estado, as injustiças sociais e o preconceito racial, até seu encontro definitivo com rap, que aconteceu com a criação do grupo Uafro, em 1996.

 

Poesia, denúncia, musicalidade, questões de classe, raça e gênero são os combustíveis da sua produção, e que fervem faixa após faixa no caldeirão musical de seu primeiro e muito bem recebido trabalho solo Universo Preto Paralelo (2012), rico não só pelas letras com temática política – que estimulam a reflexão entre negros, brancos, homens e mulheres a cerca das condições socioculturais do Brasil contemporâneo, mas também pela riqueza instrumental dispensada especialmente em faixas como Convulsão e Reflexo Cru.

 

Nosso encontro com Bá Kimbuta se deu em meio ao vai vem da estação de trem Rio Grande da Serra, interligada à estação Brás do Metro, e por onde o músico, que mora em Mauá, passa todos os dias quando volta do trabalho.

 

Próxima estação: Realidade das ruas.

 

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O MENELICK 2ºATO – QUEM É BÁ KIMBUTA?
BÁ KIMBUTA – Antes de ser músico, eu me considero um ativista, um militante. Sempre fui um militante.,. da questão racial, social e política. Assuntos raciais são mais fortes porque sinto na pele, percebo nos atos, nos olhares. É difícil dizer isso, mas foi pelo racismo que eu tive que criar forças para me ver, assim como vários pretos neste país. Existe toda uma ideia de racismo velado, o Brasil é o país que desenvolveu o pior tipo de racismo, onde as pessoas dizem que está tudo bem, mas quando você entrega os currículos a gente sabe o de quem vai ser rasgado.

 

 

OM2ºATO – Vivemos em uma época onde um deputado federal chamado Marco Feliciano (PSC – SP), que possui evidentes influências homofóbicas e racistas no seu discurso – chegando a afirmar inclusive que a cultura africana é maldita – preside a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), na Câmara dos Deputados. Como você observa a sua música dentro desse contraditório contexto político?
BK – O Brasil passa por momentos onde percebemos um puro retrocesso. Ter um cara como esse sendo legitimado como pessoa de Direitos Humanos é um retrocesso. Assim como a internação compulsória, os massacres que a polícia vem fazendo nas quebradas e nos cantos escuros da cidade. Quando pensamos que estamos avançando, começamos a retroceder. Isso é ruim, porque foi uma grande luta a gente desmascarar que a situação que a gente vive não é uma democracia racial. Os brancos e os pretos neste país não vivem bem, não vivem amorosamente como é dito. É ruim porque dizem que o racismo não existe, a mulher ainda ganha menos, sofre mais, são violentadas…. Enfim, isso tudo é um grande retrocesso. E tem também o conservadorismo religioso, um fanatismo pesado e brusco, que acaba legitimando essas pessoas como nossos representantes. Isso não é uma novidade, na verdade, é uma coisa histórica. Nossa religião, nossa história, conteúdo e tudo que a gente trouxe enquanto africanos foi amaldiçoado por eles, a burguesia, os brancos, pela classe dominante. Tudo isso é retrocesso porque muita gente lutou para dizer que existe sim o racismo, a homofobia e o machismo, onde as mulheres vivem em uma condição de inferioridade e de abuso. Eu vejo minha música como um cumpridor do papel de denúncia para dizer que não está nada bem, nada anestesiado ou legal, que continuamos morrendo na mão dos policiais e que todos os dias temos que provar quem a gente é, nossa força, nossa capacidade, assim como fazem vários outro músicos e rappers. Vejo minha arte como fator para dialogar com a realidade.

 

 

OM2ºATO – Quando começaram os questionamentos que o levaram à militância? Quando sentiu na necessidade de botar o dedo na ferida?
BK – Passamos por atos racistas cotidianamente, mas não temos um “estralo” enquanto não passamos por uma coisa que doa mais. Tive essa percepção quando eu entrei para o rap, quando ia para os bailes negros e comecei a me ver como negro. Percebi que as músicas que minha mãe cantava tinham haver como minha história. Quando começamos a nos descobrir, percebemos a importância de ter voz, de poder falar, denunciar, porque senão, seremos sempre mais um na multidão. O sistema capitalista está organizado dessa forma. Você sai para trabalhar, chega em casa, liga sua televisão, dorme e fica contente com isso. Essa descoberta faz com que tenhamos um choque, proporcionando a quebra de valores que fazem você perceber que aquele Deus pode não ser o seu Deus, que esse espaço também é meu, que eu posso transitar em outros ambientes, posso ter o meu cabelo crespo, posso ter orgulho da religião de matriz africana. Por que não nos vemos? Pelo medo. Essa descoberta veio pelo Hip Hop, assim como para outros vários jovens negros.

 

 

OM2ºATO – Como você observa os partidos de esquerda no Brasil.
BK – No meu ponto de vista, acho que não temos mais uma esquerda no Brasil consolidada. Para mim os movimentos sociais foram abafados pela política de um governo neoliberal. Na medida que várias organizações se tornam ONG, fica difícil baterem de frente com o governo, enquanto movimento. O racha está aí. Isso enfraqueceu os movimentos políticos e respigou no movimento Hip Hop também, que é um movimento político, apesar de cultural, que tem um posicionamento. Mas é o momento histórico que estamos vivendo. Não posso negar que temos avançado em alguns momentos, como na discussão das políticas raciais, das cotas, benefícios que a direita não faz questão de olhar.

 

 

 

OM2ºATO – Como é viver de arte no Brasil? Qual o papel das redes e dos coletivos dentro deste contexto?
BK – As parcerias fortalecem, de fato. Temos por exemplo os Saraus, que são espaços onde o rapper consegue divulgar suas ideais. As parcerias fortalecem demais para quem não tem recurso, para quem precisa trabalhar fora e fazer arte e não sobreviver dela. Isso é muito foda no Brasil. É uma divisão que faz com que muitas pessoas parem no meio do caminho por conta disso. As idéias e o fôlego vão sendo minados. São experiências difíceis que temos que passar para dizer o que nós somos, o que acreditamos, a forma como é produzido nosso trabalho sem precisar “abaixar as calças”, sem fazer de qualquer forma. Tenho muitos parceiros que fortalecem e que possibilitam o trabalho, como o Kilombagem (organização negra que perspectiva a revolução social e a superação do racismo) que nos fortalece na parte ideológica, de literatura e conhecimento, verdadeira fonte de construção. Tem também o Samba de Terreiro, o Usina Preta, o Fórum de Hip Hop do ABC, o Kimbutana, a Helen, minha companheira, o Danilo, o Choco, o Leko e o Thiago, além do Coletivo Audácia, o próprio Raphão Alaafin, Rincon Sapiência, o Estúdio Casa, onde nós finalizamos o disco, o DJ Crick, entre muitos e muitos outros.

 

 

OM2ºATO – Ninguém discute a importância da Internet para formação de público, redes e coletivos, além de ser uma poderosa ferramenta na divulgação de conteúdos e conhecimento. Apesar disso, tem reservas para esse assunto?
BK – Todo o universo virtual formado hoje é importante, inclusive para a divulgação de discos, um benefício para quem não tem grana para distribuição, um dos grandes problemas dos músicos do rap e para a música em um geral. Hoje as pessoas se conectam e conhecem trabalhos de pessoas do outro lado do mundo, o que há um tempo atrás seria impossível acontecer. Mas é preciso cautela na relação com a tecnologia, pois pode distanciar as pessoas. Hoje, mais do que nunca, precisamos ficar mais próximos uns dos outros.

 

 

OM2ºATO – Para finalizarmos. Conte um pouco sobre a concepção do disco “Universo Preto Paralelo”
BK – O álbum é uma tentativa de dar uma continuidade na história da Banda Uafro, onde desde 1996 trabalhamos dentro do contexto de luta, arte e militância. Chegou um determinado momento que produtor Raphão Alaafin, um parceiro nosso, começou a estimular a ideia de fazermos um trabalho de autoria própria. Começamos então pelas músicas que eu já tinha e tentamos trazer elementos que já trabalhávamos no Uafro. O “Universo Preto Paralelo” é um universo que vem sendo redescoberto. Antes não tínhamos a informação enquanto homem negro, mulher negra, enquanto concepção de mundo. A ideia de trazer esse outro mundo no disco vem a partir de uma construção ideológica, uma construção de descoberta, de quem nós somos, de onde nós viemos e qual nossa missão nesse local. A missão é justamente essa: conseguir fazer arte que sensibilize as pessoas, mas traga-as para a reflexão. Para mim este é o início do Hip Hop, que, no Brasil, entra com o contexto de luta, do protesto, que foi sempre minha linha de atuação. O disco traz essa efervescência da luta de classe, da luta de gêneros e a luta racial. E tento trazer os três eixos de luta, porém com musicalidade e poesia, para não abordarmos somente questões crônicas, da denúncia pesada, perdendo a poesia e a sensibilidade. É a descoberta da minha essência. Kimbuta significa a busca pela maturidade, porque, para viver em um país capitalista é preciso ter esse equilíbrio.

 

 

 

 

 

 

 

 

**Nota do repórter

Antes de iniciarmos a entrevista, Bá Kimbuta comentou sobre o procedimento parcial da polícia nas abordagens nas ruas da cidade, onde os negros sempre são suspeitos. Momentos antes de terminar a entrevista, a segurança da CPTM abordou este repórter e o rapper. Perguntaram o que estava acontecendo ali, pois estávamos há muito tempo parados no mesmo lugar. A pergunta que ficou no ar entre os dois personagens do fato é: foi somente um procedimento de segurança mesmo, ou a abordagem aconteceu pelo simples fato de serem dois homens negros (e suspeitos, na concepção deles). Após nos despedirmos fomos embora com a certeza de que a segunda possibilidade era a mais viável, como sempre. Mas antes de sairmos de perto da segurança, Kimbuta, com a acidez que lhe é pertinente, não foi embora sem deixar seu lado irônico proporcionar certo desconforto. Disse ao agente: “Nós já estamos indo embora, mas cuidado, deixamos uma bomba logo ali”…

 

 

 

 

 

Lau Francisco

LAU FRANCISCO é produtor e jornalista.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.