agosto de 2011

ELLEN OLÉRIA: OSSO DURO DE ROER

Christiane Gomes

 

 

 

 

 

A carne mais barata do mercado é a carne negra/
que fez e faz história segurando esse país no braço/

 

Cheia de razão, a letra da música A Carne, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Capellette (trecho a cima), famosa na voz de Elza Soares (álbum do Coccix ao Pescoço/ 2002), engrossa o coro da importância que os descendentes de africanos tiveram – e tem – na formação e construção da identidade cultural brasileira, ainda que esse fato não seja valorizado como deveria.

 

Indigesto ao paladar de uma minoria retrógada, a carne negra é, se bem pensarmos, o filet mignon do caldeirão multicultural que é a produção artística nacional moderna, mas em alguns casos engasga e pode até queimar. “Sou carne dura, e dou conta de fazer o meu, segurar minha onda”, dispara a cantora, compositora, instrumentista e atriz Ellen Oléria, de 28 anos. Carne de primeira. Osso duro de roer!

 

“As pessoas me veem apenas como uma cor. Eu sou isso, mas também outras coisas. A nossa geração tá vivendo outra realidade racial no país. Não dá pra gente ficar fingindo que nada aconteceu, porque muito sangue foi derramado pra que hoje eu pudesse cantar o que eu canto, ocupar os espaços onde estou, ter a minha grana”.

 

Nascida e criada no Chaparral, região entre Taguatinga e Ceilândia, cidades satélites de Brasília, Ellen, dona de uma voz potente e de um carisma acima de qualquer suspeita (características que podem ser facilmente identificadas em suas performances ao vivo), faz uma bem sucedida mistura de diferentes nuances da música negra, indo do samba ao rap, passando pelo jazz, afoxés e soul.

 

 

No último mês de abril, em rápida turnê por São Paulo, ela lotou a choperia do SESC Pompéia. O público, vidrado com a figura e a voz daquela mulher de presença forte e sorriso largo, cantou em coro as músicas da artista. Ellen, definitivamente, é o tipo de cantora que muito mais do que ser ouvida, precisa ser vista. Sentir a intensa vibração que acontece em suas apresentações é algo fundamental para quem deseja de fato, conhecê-la.

 

A desenvoltura com que canta, toca e interage em seus shows vem de berço. “Quando criança, meu pai atacava na sanfona e eu e meus irmãos brincávamos de fazer ganzá com arroz, batendo nas tampas nas panelas”, lembra. Apesar da forte influência paterna, a música não foi a sua primeira opção profissional na vida. A instabilidade de viver da arte no Brasil era algo que a assombrava. Até concurso para policial pensou em fazer.

 

Mas o amor pela arte falou mais alto. A entrada definitiva no mundo da música aconteceu, porém, por outra via. Durante o curso de Artes Cênicas na Universidade de Brasília, entre os anos de 2003 e 2007, Ellen foi convidada a substituir um ator em um grupo teatral universitário chamado A Companhia dos Sonhos, que rodou o norte e o nordeste do Brasil, em 2004. Nesse período, entre uma apresentação e outra, para relaxar, os membros do grupo costumavam ir aos bares da região onde estavam se apresentando, e não raramente havia uma banda tocando. Era nesses lugares que Ellen dava suas palhinhas. “Rolaram coisas muito cabulosas nessas canjas. Comecei a sentir que algo tava acontecendo e de fato entendi que eu gostava muito de fazer aquilo porque eu me conectava com a minha arte de uma forma muito direta. Voltei pra Brasília decidida a cantar. Comecei então a procurar uma banda”.

 

 

E ela a encontrou ainda na universidade: a banda Pret.utu. “Essa galera é meu chão. Principalmente quando falo de origens, de como comecei. È por causa da Paulinha (Paula Zimbres, contrabaixista da Pret.utu) que toco minhas próprias músicas. Essa banda me deu mais experiência e segurança. Sou muito sortuda, porque as cantoras ficam a vida procurando bandas e eu tenho duas”. A outra banda no caso é o grupo Soatá do Pará, que mistura carimbó, funk e rock. O resultado desta miscelânea musical poderá ser ouvido no segundo trabalho de Ellen (o primeiro, intitulado Peça, foi lançado em 2009), previsto para sair ainda este ano. Um prato cheio, com carne de primeira. Um banquete afrobrasileiro as margens do Lago Paranoá.

 

 

 

 

 

Christiane Gomes

CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela USP e coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilú Obá de Min.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.