outubro de 2014

HAMILTON CARDOSO E SEU TEMPO

Flavio Carrança

 

 

 

foto Ennio Brauns

 

 

 

 

Hamilton Cardoso foi um dos mais talentosos representantes da geração de ativistas do movimento negro brasileiro dos anos 1970 e 1980. Ele esteve no centro de uma série de atividades que deram impulso à luta antirracista no Brasil, como parte do movimento pela redemocratização do país, durante a ditadura imposta pelo golpe militar de 31 de março de 1964. Teve também expressiva participação, tanto na imprensa alternativa quanto na grande imprensa paulista e manteve um constante diálogo com intelectuais negros e não negros dos movimentos sociais e do meio acadêmico. Hamilton viveu intensamente seu tempo, tendo participado da campanha pela anistia, da articulação do movimento Diretas Já, do processo da Constituinte, da reorganização do movimento sindical e da construção do Partido dos Trabalhadores, além de atuar na esfera internacional.

 

Nascido em 10 de julho de 1954, na cidade de Catanduva, noroeste do Estado de São Paulo, foi o segundo filho de uma família composta por mais três irmãos: Airton, o mais velho, Arlete, a terceira e Auriluce, a caçula. O pai, Onofre Cardoso, era músico e a mãe, Deolinda, dona de casa. Hamilton passou a maior parte de sua infância na capital. A família morou primeiro no bairro do Ipiranga, na zona sul, e depois na Casa Verde, na zona norte.

 

Hamilton e Airton fizeram o curso primário (correspondente às quatro primeiras séries do atual ensino fundamental) na Escola Estadual Professor Joaquim Leme do Prado, no bairro do Imirim e, concluído esse ciclo, em 1964, a família decidiu enviá-los para continuar os estudos em um seminário, em Jaú, no interior do estado. Quando retornam à São Paulo, a situação financeira dos Cardoso ainda não era das melhores e Hamilton, durante algum tempo, trabalha como pipoqueiro para ajudar no orçamento da casa. Nessa fase, já havia concluído o ginásio e começava a cursar o colegial no período noturno do Instituto de Educação Caetano de Campos, conceituada escola pública que na época funcionava na Praça da República, no mesmo prédio onde está instalada atualmente a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo.

 

 

TURMA DO FUNDÃO, TEATRO E CONSCIÊNCIA NEGRA

 

O jornalista Gabriel Priolli Netto, antigo editor do Jornal Nacional (TV Globo) conheceu os irmãos Cardoso, em 1971, no Caetano de Campos. Hamilton e Airton logo se tornaram seus parceiros de “esticadas” noturnas. Saíam depois das aulas para conversar em bares ou curtir a programação cultural da cidade, frequentando espaços como o Teatro Vereda, na Rua Frederico Steidel, o Teatro de Arena e o bar Redondo, onde circulavam artistas, intelectuais e boêmios em geral. Junto com um grupo de amigos, assistiam a shows de música e viam filmes em cineclubes e cinemas de arte.

 

A descoberta da luta antirracista aconteceu em 1970, quando Hamilton participou como ator da peça de teatro E agora falamos nós, escrita e montada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926 – 2012) e pela atriz Tereza Santos (1930 – 2012), como parte das atividades do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), entidade criada por ambos em 1969. Os ensaios aconteciam na Casa de Cultura do Negro, instituição beneficente que funcionava no mesmo prédio onde hoje está instalado o Instituto do Negro Padre Batista, na região central de São Paulo.

 

“Uma pessoa foi trazendo outra e assim o Hamilton apareceu no grupo, exatamente porque alguém comentou com ele do trabalho que estávamos fazendo”, afirmara Tereza, lembrando que no período da montagem do espetáculo, Hamilton não tinha informações sobre o negro, sobre a questão racial, e que sua primeira aproximação com esse tema aconteceu ali. “Era uma visão minha e do Eduardo em relação à história do negro no Brasil, mas a gente fazia todo o grupo participar das discussões. Nós escrevíamos as cenas, mas discutíamos com eles, e foi assim exatamente que o Hamilton se descobriu negro.”

 

No início da década de 1970, o Clube Coimbra, localizado na Avenida São João, tornou-se o novo ponto de encontro de uma juventude negra intelectualizada e progressista; outro ponto era a Casa da Cultura e do Progresso (Cacupro), sediada no bairro do Ipiranga e dirigida pelo maestro Estevão Maya Maya e Agnaldo Avelar. Também foi muito importante para os jovens desse período o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (Geteplun), criado na década de 1960, no bairro de Vila Prudente, pela doutora Iracema de Almeida, uma das primeiras médicas negras da cidade. Mas um dos principais palcos desse debate foi o novo Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). A entidade, que tinha sido desativada por Tereza Santos quando de sua ida para Angola, foi reativada em 1976, passando a funcionar na Rua Maria José 450, no Bexiga.

 

 

NA ESCOLA, NAS RUAS…

 

O contato da juventude negra universitária com as correntes de pensamento de esquerda marcou profundamente a fisionomia do movimento negro brasileiro. Como se sabe, o movimento estudantil protagonizou o início da luta pelo fim da ditadura e pela democratização do país. Entre os grupos políticos que atuavam no movimento estudantil nessa época, a Liga Operária, uma corrente trotskista, é o que mais se abre para a reflexão sobre a questão racial.

 

Podemos considerar então duas gerações de militantes negros da Liga. A primeira, que tinha como figuras mais expressivas Milton Barbosa e Rafael Pinto, deixa a organização por volta de 1976, e junto com outros ativistas de posições variadas passa a integrar uma corrente conhecida como Grupo Decisão, de duração relativamente curta e que atuaria principalmente no interior do Cecan. A segunda geração que integrou o Núcleo Negro Socialista da Liga Operária e foi a principal responsável pela elaboração da seção Afro-Latino-América do jornal Versus era formada por Hamilton junto com Wanderlei José Maria, José Adão Oliveira, Marcos Vinícius, Neuza Maria Pereira e outros.

 

 

O QUE FAZER NO 13 DE MAIO?

 

Em São Paulo, o debate político de maior importância entre os jovens militantes que se reuniam no Cecan ocorreu em maio de 1978, e teve como tema justamente as comemorações do 13 de maio. Uma das posições dos participantes era de que na data deveria ser feita uma espécie de anti-manifestação, ou seja, a população deveria ser estimulada a não sair às ruas, em protesto contra a falsa liberdade concedida pela Lei Áurea. A proposta contrária, defendida pelo Núcleo Negro Socialista, de Hamilton, e pelo Grupo Decisão, era sair às ruas para denunciar o mito da princesa Isabel como redentora, uma das bases da ideologia da democracia racial.

 

Esse posicionamento levou a que se organizasse o primeiro ato do movimento negro, no Largo do Paissandu, no dia 13 de maio de 1978. Na concentração inicial, que reuniu cerca de 1.200 pessoas aos pés da escultura da Mãe Preta, vários oradores falaram, denunciando a situação marginal da população negra e a farsa do 13 de maio.

 

O impulso para a mobilização de 13 de maio de 1978 veio, em grande parte, dos acontecimentos envolvendo Robson Silveira da Luz, torturado e assassinado no início daquele mês nas dependências da 14ª Delegacia de Polícia da Capital. Em seguida, a discriminação sofrida por quatro garotos negros, expulsos do time juvenil de basquete do Clube de Regatas Tietê desencadeou novas e fortes reações do interior da comunidade negra. Os dois episódios causaram grande indignação. Em 18 de junho de 1978, grupos e entidades se reúnem na sede do Cecan para deliberar sobre as ações a serem implementadas. Nessa reunião foi fundado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), que seria lançado no dia 7 de julho em um Ato Público Contra o Racismo.

 

No anoitecer de 7 de julho de 1978, cerca de duas mil pessoas, a grande maioria negros e negras, concentraram-se na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. A carta aberta, distribuída à população e lida em coro pelos manifestantes, culminava com o apelo à criação de uma entidade nacional que unificasse as lutas contra a discriminação racial. O tema dominante agora seria o caráter da organização que estava sendo criada. Para Hamilton, a estruturação do movimento estava se dando até aquele momento nos marcos do que havia sido imaginado pelo Núcleo Negro Socialista. Mas justamente na primeira assembleia há uma mudança de rumos, que ele depois classificaria como início da crise do Movimento Negro Unificado.

 

Na leitura de Hamilton e do Núcleo Negro Socialista, o movimento deveria unificar forças sociais contra o racismo e não se restringir a um movimento de negros. Sua intenção era criar uma articulação que abrangesse todos os que estivessem dispostos a lutar contra o racismo. Mas essa ideia acabou sendo derrotada. Em 8 de julho é realizada reunião de avaliação do ato e, no dia 23 de julho, na sede da Associação Cristã de Beneficência, em São Paulo, é realizada a primeira Assembleia de Organização e Estruturação Mínima do Mucdr, com a presença de representantes do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

 

É nesse momento que a palavra “negro” é incluída na sigla que passa de Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) para Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). É Milton Barbosa quem explica: “Ele [Hamilton] queria fazer um movimento do tipo SOS Racismo da França, que junta todo mundo. Já eu e Rafael queríamos construir o embrião de um movimento de libertação nacional. Não estava decidido na nossa cabeça o que seria, mas nós já tínhamos essa noção. A gente estudava muito os movimentos de libertação na África, partidos políticos, e achávamos que se tinha de construir um movimento negro organizado. Quando Abdias (Nascimento) veio com a palavra negro, nós a abraçamos, porque queríamos uma única coisa: organizar o povo negro”.

 

Depois da fase de grande ativismo de 1978, a relação de Hamilton e do Núcleo Negro Socialista com a Liga Operária (agora, Convergência Socialista) foi gradativamente se desgastando. Seu afastamento parece ter sido um processo gradativo e combinado com a busca de novos espaços de realização profissional e de atuação política. Era evidente a necessidade que ele tinha de ampliar seus horizontes. Em 1980, Hamilton passa nove meses na Inglaterra. De volta ao Brasil retoma o estudo de jornalismo e inicia sua carreira profissional. O próximo passo seria a luta para conseguir emprego como jornalista. Nesse mesmo período casa-se com a arquiteta Dulce Pereira, com que tem dois filhos.

 

A GARRA DE UM REPÓRTER

 

O primeiro emprego fixo de Hamilton como jornalista parece ter sido na assessoria de imprensa do então vereador Paulo Ruy de Oliveira, que assumiu a liderança do MDB na Câmara Municipal de São Paulo, em 1979, e que, em 1981, depois de migrar para o PDS, tornou-se o primeiro negro a assumir a presidência daquela casa. Depois disso, Hamilton colaborou com diversas publicações da grande imprensa, mas o maior reconhecimento profissional ocorreria em meados da década de 1980, como repórter especial de política do Diário Popular. Ali, reencontrou Simão Zigband, jornalista que trabalhava SBT e que o convidou para ser repórter de TV. Em 1987, ele se torna o ‘Repórter do Povo’, que discute os problemas da cidade apontados pela população por meio de cartas enviadas à emissora.

 

Além da dedicação ao trabalho de jornalista, Hamilton manteve uma militância política de esquerda e antirracista que, depois da sua saída da Convergência, passou a ser desenvolvida no Partido dos Trabalhadores. Flávio Jorge Rodrigues da Silva, atualmente membro da direção da Coordenação Nacional de Entidade Negras (Conen), afirma que ele fazia uma associação direta da luta da classe trabalhadora no Brasil, na construção de um projeto maior: “Hamilton sempre foi muito coerente com isso a vida toda, ele nunca dissociou da luta contra o racismo, a luta por um projeto de transformação social, a luta pelo socialismo”, afirma. Junto com Milton Barbosa, em São Paulo e Lélia Gonzalez, no Rio de Janeiro, Hamilto Cardoso foi um dos primeiros intelectuais e ativistas negros a participar das discussões que precederam a criação do PT.

 

 

UM LONGO ADEUS

 

No dia 1º de maio de 1988, aos 33 anos de idade, depois de uma festa na Escola de Samba Unidos do Peruche, Hamilton foi atropelado por um automóvel na Rua da Consolação, em frente ao cinema Belas Artes. O acidente o obrigou a ficar internado por mais de um ano na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Submetido a diversas cirurgias, teve a perna imobilizada com um aparelho ortopédico que formava uma espécie de gaiola de metal com hastes que penetravam na carne para sustentar os ossos fraturados. Recuperou-se parcialmente, mas só conseguia caminhar com alguma dificuldade, o que não o impediu de continuar atuando no PT e no movimento negro, mas o afastou da grande imprensa. Foi um divisor de águas na sua vida. O ator, o poeta, o amante, o militante aguerrido, o jornalista em ascensão, o intelectual que acreditava na construção de um futuro melhor cedeu lugar a um homem amargurado.

 

Esse quadro de depressão o levou a repetidas tentativas de suicídio: em 1994 atirou-se do Viaduto Pedroso, no bairro do Bexiga, fraturou as pernas mas sobreviveu. Fez ainda uma segunda tentativa jogando-se nas águas do Rio Tietê, ato que repetiu em 5 de novembro de 1999, quando faleceu.

 

A atuação de Hamilton, ao longo de sua vida, permite classificá-lo como um intelectual orgânico da população negra brasileira, que exerceu significativa influência sobre os intelectuais tradicionais do país. Desde a juventude refletiu sobre os principais temas de interesse para a comunidade negra, procurando elaborar propostas voltadas para a superação dos problemas gerados pelo racismo, com a clareza de que para isso essa população precisa estar representada nas diversas instâncias de poder. Hamilton Cardoso dedicou grande parte de sua vida à tarefa de despertar a atenção para a importância da questão racial como um dos problemas estruturais do país. Nesse sentido, deu continuidade a uma tradição de pensadores negros, como Luiz Gama, Manuel Querino, Lima Barreto, Abdias Nascimento, Eduardo Oliveira e Oliveira, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, ao mesmo tempo em que pensou e atuou politicamente no sentido da construção de um país (creio que ele diria um planeta) mais justo para mulheres e homens de todas as cores.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SOBRE O TEXTO

Este artigo contém informações e trechos retirados do meu ensaio homônimo, parcialmente produzido em colaboração com Fábio Nogueira de Oliveira.  É um texto que integra a coletânea Hamilton Cardoso: militante jornalista intelectual, livro finalizado, mas não publicado. O volume em questão também reúne entrevistas concedidas a acadêmicas que produziram dissertações sobre o movimento negro: Maria Ercília Nascimento, Gevanilda Santos e Miriam Nicolau Ferrara. Ainda fazem parte da coletânea artigos escritos por pessoas que conheceram de perto esse grande militante: Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Maria Ercília do Nascimento, Vera Lúcia Benedito, Marcos Antônio Cardoso e Omar L. de Barros Filho. Fecha o volume uma bibliografia completa elaborada por Fábio Nogueira com a extensa produção teórica, jornalística e literária de Hamilton Cardoso. A ideia inicial era publicar o livro pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o que acabou não acontecendo, entre outros motivos, por uma mudança de orientação interna daquele órgão. Além disso, apesar de uma promessa inicial, não obtive da família de Hamilton a autorização necessária para publicação do documento.

Flavio Carrança

FLAVIO CARRANÇA é jornalista, sócio-diretor da Flama Jornalismo Ltda, editor-chefe da revista Angola Yetu (do Consulado de Angola em São Paulo) e colaborador fixo do site do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.