outubro de 2015
UMA VIAGEM AO BENIN
Luiz Carlos dos Santos
fotos Luiz Carlos dos Santos/ Uyrá Lopes dos Santos
Kauê Lopes dos Santos
De Paris à Cotonou a viagem dura mais ou menos seis horas. A paisagem exterior é formidavelmente desértica. São horas sobrevoando o Saara. Um mar de areia. No interior do avião, o cenário é uma novidade para os nossos brasileiros olhos: os negros são maioria. A língua oficial é o francês. Mas também se fala Fon, Goun, Mina, Yourubá, Dendi, Baribá, Ayizó Adja, Ditamari, Tem e Peul.
A chegada à capital econômica do Benin se dá sem muito atropelo. A suntuosidade dos aeroportos internacionais ainda não chegou lá, embora a burocracia já se faça presente em toda a sua dimensão desagradável, desde os atropelos e confusões da bagagem até a liberação final dos passaportes. Agora os atores da paisagem interna se confundem com o cenário e a plateia que compõem a paisagem externa. No ar da cidade uma névoa clara e quente. Chegamos.
Não fosse a língua e as cores alegres das vestimentas, poderíamos nos sentir em Salvador ou Havana, resguardadas as limitações locais de mobilidade urbana para quem está acostumado à praticidade, nem sempre usual, dos meios de transportes das ainda chamadas metrópoles. Agora era chegar ao hotel, desfazer as malas e conferir o roteiro.
Estamos na cidade de Cotonou, com os seus quase 700 mil habitantes. Estamos bem mais próximos daqueles que voltaram, após a abolição da escravidão no Brasil, para Porto Novo, capital política do país. A memória emociona o corpo e paralisa a razão. Parte dessa população de quase dez milhões de habitantes, tem a ver com o nosso passado, aprisionados e transformados em escravos foram embarcados da cidade de Ouidah para as colônias europeias, na América. A Bahia, entre muitos outros, era o porto do desembarque.
Como provavelmente já ocorrera com aqueles que primeiro retornaram, sentíamos, ainda que de maneira romântica, uma euforia quase infantil, no entanto, reveladora de estar de volta, ainda que fosse pela primeira vez, na terra de nossos antepassados. Sem dúvida, ser ou não ser negro, mais uma vez, faz uma imensa diferença. Na memória da pele e da consciência, as imagens e os sons das caras, corpos e comportamentos, desconstroem os enredos românticos inscritos em nossa militância, embora quiséssemos ser surpreendidos.
A manhã do dia seguinte seria e foi repleta. Uma breve visita às praias da cidade trouxe-nos a lembrança daquelas que estariam do outro lado do oceano, com os nossos. Os olhos e a memória forjaram uma ponte imaginária entre as areias e a névoa dali onde estávamos e as costas brasileiras, construída sobre milhares de corpos negros, sequestrados e traficados para a América e Europa assassinados e mortos ainda na travessia, quando não antes. Na praia de Cotonou, alguns jovens corriam e brincavam na areia, próximos a nós. No entorno, canteiros de obras anunciavam novas e exuberantes construções. É a aposta no turismo.
Dando sequência ao roteiro, fomos para a cidade. Motos, centenas de motos trafegavam pelas ruas e vielas locais, não deixando dúvidas sobre qual seria o principal veículo de locomoção da população, convivendo, curiosamente, com os automóveis Mercedes, Renault, Vans e SUVs de diversas marcas que compunham a rede automotiva, todos movidos a petróleo nigeriano. Para nosso espanto, a relação entre os veículos, vias e pessoas, em muitos bairros, não era regulada por sinais de trânsito. Não havia ônibus. Não ouvimos falar e nem vimos acidentes. A maior parte da população, quase 60%, vive no campo, daí as principais riquezas serem o algodão e a pesca.
O comércio local era voltado para a venda de tecidos coloridos e alegres, os automóveis comprados ainda no porto, muita propaganda de serviços e fotos do presidente Obama se destacavam na paisagem urbana da capital. Nos centros de compras, salões de beleza, bares, restaurantes e feiras, a população consumia os bens da chamada civilização ocidental: roupas, pizzas, sorvetes. No fim do dia, ao ligarmos a televisão, nos deparamos na programação com uma atração comum às noites brasileiras: a telenovela, pois é, a população do país assistia O Caminho das Índias, entre diversos outros programas nacionais, de música e entrevistas cujo o foco era a educação.
No correr dos dias, o nosso roteiro foi-se enriquecendo, embora soubéssemos que o ponto alto de nossa viagem fosse o Festival Nacional de Vodu, em Ouidah, pretendíamos conhecer também as cidades de Abomey e a capital do país, Porto Novo. Antecipamos a nossa ida ao local do evento principal para conhecermos mais e melhor a região e mantermos, ainda que precário, um contato mais próximo com a população. Em uma das praças de Ouidah, por onde passamos, ficamos extasiados com um baobá extraordinário ao centro de uma praça, sombreando o espaço repleto de crianças.
Ser negro em Atenas, Londres, Roma, Havana, Paris, Rio, São Paulo ou Salvador, com certeza não muda muito a singularidade do tratamento recebido. A expectativa é ser negro em países africanos, no caso específico, no Benin, seja em Cotonou, Abomey, Ouidah ou Porto Novo, cujo elemento diferenciador imediato não é mais a cor da pele, e sim a língua. E aí aparece a força da herança da colonização, representada pela língua francesa. As línguas Yorubá e Fon são também presenças importantes nos falares locais. A alegria, a espontaneidade e receptividade e, em muitos casos, a precariedade da população lembram o tempo todo o ser negro no Brasil.
Agora era pra valer. Chegou o dia do Festival de Vodu que acontece uma vez por ano na cidade de Ouidah e concentra todas as atenções da população. As estatísticas oficiais indicam que 41% da população do país se dedica às religiões tradicionais, dentre elas o Vodu; os muçulmanos somam 24,4%; os cristãos 38% do beninenses e 0,6% professam outras religiões, o que explica as várias igrejas espalhadas pelas cidades.
Chegamos cedo ao Portão do Não Retorno, marco simbólico de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. Após a sua transposição estava o espaço arenoso e com algumas palmeiras, onde aconteceria o evento. Aos poucos, a população chegava em caravanas ou pequenos grupos, com suas roupas coloridas e marcas simbólicas de sua fé e ia tomando lugar. Impondo-se, numericamente, à presença dos curiosos turistas de vários países. Autoridades políticas e religiosas eram presenças marcantes e algumas celebridades foram anunciadas.
Entre nós, no Brasil, mas não só, o preconceito e o racismo que atingem os negros não deixam escapar também as suas práticas religiosas em toda a sua dimensão. Apesar da resiliência cultural, religiosa e política da maioria negra da população brasileira, somos mais de 51%, o desconhecimento sobre o Vodu, por exemplo, gera situações profundamente incômodas, geralmente identificadas com “feitiçaria”, “magia negra”, aliás, famas e dramas que ainda vive o Candomblé. Há uma familiaridade entre o culto dos orixás e o vodu, a relação homem-natureza expressa através da força vital e transmitida pela tradição oral, evidenciada entre nós pelo tambor de minas, do Maranhão. Os “horrores” ou “barbaridades” dessas religiões são criações culturais das religiões das antigas metrópoles e o Festival Nacional de Vodu, de Ouidah, só confirma a legitimidade espiritual de povo beninense que, entre outras religiões, tem no Vodu sua manifestação religiosa marcante.
Aliás, sobre o tema, o Museu Afro Brasil realizou duas exposições memoráveis e elucidadoras sobre a religião oficial do Benin e do Haiti. A primeira em 2007: Benin está vivo ainda lá, sob a curadoria do artista plástico e diretor do Museu, Emanoel Araujo e do francês André Jolly; e a segunda, em 2010, O Haiti está vivo ainda lá. A arte das bandeiras, dos recortes e das garrafas consagradas ao Vodu, com a curadoria de Emanoel Araujo. As duas exposições e seus catálogos abordam de forma profunda e cuidadosa o significado dessa religião de matriz africana, presente também em Cuba e nos Estados Unidos. No entanto é bom lembrar que mesmo dentro de contexto histórico adverso, afinal foi na Haiti que ocorreu a primeira revolução escrava no mundo. Lá, as palavras de ordem da burguesia francesa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade foram levadas a sério.
Mas, voltemos ao Festival. Ali, como já assinalamos, grupos de pessoas chegavam para ver e viver o evento. Eram crianças, jovens, adultos e idosos, na sua maioria, mulheres, cujos corpos apresentavam evidentes marcas rituais. A chegada das autoridades religiosas deu início ao festival com a apresentação de danças, desfiles reais e a participação simbólica de entidades ligadas ao Vodu. Por horas, a plateia se emocionou com a exuberância dos participantes e até mesmo com as incorporações de entidades do Vodu naquele evento religioso, articulador das manifestações socioculturais do país. Pelo meio da tarde, daquele dia 10 do mês de janeiro, assim como começou, o Festival se encerrou. Não sem antes ouvirmos a participação de uma das maiores celebridades do país, a cantora beninense Angélique Kidjo, falar sobre o papel da escravidão de levar a religiosidade africana para outros cantos do mundo.
Agora iríamos a Porto Novo, capital política do país e também a cidade onde se concentram os Retornados, aqueles africanos escravizados que voltaram para o país africano ao conquistar a liberdade e após a abolição. Ali visitamos as feiras e lojas de artesanato local, passamos por uma mesquita, assistimos uma missa e fotografamos a Igreja da Irmandade Brasileira de Bom Jesus do Bonfim. Após a missa, brincamos e conversamos com as animadas crianças e jovens que encontrávamos pelas ruas. Ser brasileiro e negro em Porto Novo, não fosse a língua, é como se estivéssemos em casa. Um pouco antes, visitamos o Museu de Porto Novo, dono de um acervo que guarda ligações afetivas com o Brasil e também a memória histórica local, representada por fotografias, esculturas em madeira e ferro. A fachada verde e rosa do museu, mais uma vez, nos trouxe alegres lembranças.
ABOMEY E OS PALÁCIOS REAIS
As vésperas da volta, fomos a Abomey, cidade marcada por uma forte poeira vermelha e rica tradição oral que narra as histórias sobre a realeza local.
De Cotonou a Abomey, viajamos algumas horas por uma estrada tortuosa e de uma vegetação rasteira. Ao chegarmos no destino, encontramos uma área extensa com algumas árvores frondosas sobre um terreno avermelhado, tendo ao fundo reconstruções seculares, ladeadas por casas simples. Comércio organizado, escolas e instituições oficiais. Lá, demos uma volta pela cidade e, em seguida, fomos visitar o Museu Real, onde se encontram os palácios de nove reis.
Dentro dos palácios reais, impregnados de poeira e histórias de vida e morte dos seus antigos ocupantes ao longo dos tempos, há objetos pessoais e rituais da realeza que ilustram, silenciosamente, as informações sobre a sua utilidade no cotidiano da população. Essa intimidade simbólica, mostrada pelo acervo não podia ser fotografada.
Caminhamos quase uma hora entre os aposentos reais e as áreas coletivas dos palácios. O acervo do museu é composto pelas indumentárias reais, bancos, armas, leito nupcial. Andamos por aquelas reconstruções feitas pela administração colonial francesa no final do século 19, depois de derrotar o rei do Daomé, Behanzin, que incendiou Abomey, capital do antigo Daomé, e fugiu para o norte. Os palácios reais são classificados como Patrimônio Mundial da Unesco, desde 1985.
De volta a Cotonou, o que chama atenção do visitante é a vila lacustre de Ganvié, também conhecida como Veneza africana, ela abriga milhares de habitações feitas de madeira, apoiadas sobre pilastras, erguidas dentro do lago Nokouê, situado ao norte de Cotonou. Lá vivem cerca de 30 mil habitantes que têm na pesca a base da sua sobrevivência e, mais recentemente, um turismo precário, estimulado por ONGs, objetiva melhorar a situação da população local.
A origem de Ganvié data do século 18 quando serviu de refúgio para os africanos que conseguiam escapar dos traficantes de escravos. A vila lacustre, das três existentes no país, é a mais importante e, guardadas as diferenças, lembra os nossos mocambos.
Embora a nossa curiosidade não coubesse no tempo de que dispúnhamos, percebemos que poucas vezes temos a oportunidade de escrever sobre o continente africano, seus países e seus povos, a partir de uma experiência concreta. As nossas informações sobre a África são geralmente restritas aos seus animais e as consequências danosas da colonização europeia. Esses dois focos de interesse, durante anos, direcionaram o nosso olhar, espalhando cegueira e cristalizando preconceitos.
As histórias em quadrinhos forjaram ainda no início do século 20 a imagem do que seriam os africanos e suas culturas, segundo o ponto de vista europeu. Surgem daí heróis brancos e “de boa vontade” que procuravam naturalizar a colonização aos olhos das novas gerações ocidentais. Tarzan, Fantasma e Mandrake foram os pioneiros da legitimação massiva da colonização, a exemplo do que a indústria cultural faz hoje com os super-heróis como Homem de Ferro, Batman e Capitão América, símbolos descarados da indústria bélica ocidental. Eram os europeus chegando para “civilizar” os africanos.
Entretanto, o que as HQ´s não mostravam era a violência da exploração colonial que, a médio e longo prazo, resultaria na precarização das terras e gentes africanas, agora sim, justificando a expressão diáspora africana, como podemos ver regularmente nas notícias dos jornais.
Conhecemos, por dentro, a história e a cultura do Benin, ainda que seja por duas semanas iniciais do mês de janeiro, há três anos. Transitar pelos espaços urbanos da ex-metrópole é, com certeza, uma das mais instigantes e aviltantes experiências, como já dissemos, dependendo da cor da sua pele. Enriquece, entristece mas, sobretudo, revolta. Ainda assim, profundamente necessário, mesmo com os entraves e abusos de alguns no manuseio desbragado das bagagens e no tratamento daqueles que saem.