outubro de 2022

PERPLEXOS, REDISCUTIMOS A DEMOCRACIA NO BRASIL

Margot Luyckfasseel

 

 

 

 

 

 

 

 

entrevista Margot Luyckfasseel
introdução
O Menelick 2 Ato
capa 
Cara-Pintada, 1992 / foto Luiz Paulo Lima

 

 

 

 

 

 

O livro Rediscutindo a mestiçagem no Brasil – Identidade Nacional versus Identidade Negra, do professor Kabengele Munanga, ganhou em 2020 uma edição atualizada, onde o autor contribui com novas análises, considerando especialmente o período de pouco mais de 20 anos que separam a primeira publicação, de 1999, desta edição mais recente. Além da adição de um novo capítulo e da ampliação das conclusões finais, o livro conta também com um texto de apresentação à quinta edição assinado pela professora mineira Nilma Lino Gomes. Nele, chama a atenção o trecho em que a intelectual – primeira mulher negra do Brasil a comandar uma universidade pública federal no país – faz a seguinte constatação: “…vivemos tempos de perplexidade e retrocessos na nossa sociedade desde as eleições de 2018. Instaurou-se, no país, um governo autoritário, que caminha na contramão da implementação de políticas sociais e de ações afirmativas”. 

 

A análise precisa de Lino Gomes do então prenúncio da derrocada da nossa democracia não apenas se concretizou pelos anos seguintes da administração federal – em um movimento previsto por muitos ainda em 2018, como pode ser observado, com certa tristeza, no primeiro turno das eleições gerais no Brasil neste ano de 2022. Considerando todas as cadeiras em disputa (Presidente, Governadores, Congresso Nacional, Senado e Assembleias Legislativas Estaduais), o resultado do pleito eleitoral foi catastrófico. Se por um lado foram eleitos nomes de reconhecido prestígio na cena política brasileira vinculados a partidos da esquerda e centro-esquerda, comprometidos com o Estado Democrático de Direito; bem como foi registrado também um tímido aumento no número de mulheres e negros no congresso e assembleias, por outro, a direita extremista avançou significativamente.

 

Diante da nova configuração político partidária que se avizinha nesses espaços de poder constituídos, o Brasil, que carrega consigo a pecha de ser uma das nações mais desiguais do mundo, saiu enfraquecido no round inicial das eleições. O balanço assustador do primeiro turno, resultado de uma mentalidade conservadora retrógrada, ao que parece, escondida nos intestinos na nação brasileira, era até um pouco previsível, considerando o apoio de parcela da população ao governo da morte. O atual presidente e seus seguidores mais fervorosos, escondendo-se atrás de uma suposta fé religiosa, destilando ódio e fake news, patrocinando políticas patológicas, promovendo a destruição das instituições democráticas e projetando, sem vergonha e nem culpa, violência contra  as populações negras, LGBTQIAP+, mulheres e ao meio ambiente, abriram a caixa de pandora que levou o país ao fundo do poço.

 

Se há dois anos Lino Gomes constatou que a nossa frágil democracia estava em risco, hoje podemos afirmar que ela está por um fio. Necessitaremos de muito espírito palmarino, uma vez que para a população negra brasileira, e para todos aqueles des-semelhantes ao governo, o futuro de nossas vidas e do Brasil enquanto nação estão em jogo no pleito deste dia 30 de outubro.

 

O momento é oportuno, portanto, para rediscutirmos nossa democracia em uma conversa com o professor Kabengele Munanga, intelectual luminoso do nosso tempo.

 

Nascido em 1940 no Congo, Kabengele tornou-se o primeiro antropólogo formado no que é hoje a Universidade de Lumumbashi, em Katanga, na República Democrática do Congo (RDC). Após algum tempo na Bélgica, Kabengele fugiu do regime mobutista no Zaire (como a RDC era conhecida na época) em 1975, e continuou sua carreira na Universidade de São Paulo (USP), onde se dedicou ao estudo da população negra do Brasil. Ainda extremamente ativo em suas contribuições intelectuais, Kabengele segue como uma voz altamente respeitada sobre os assuntos da negritude no país que adotou, como evidenciado por seus muitos textos, prêmios e títulos, incluindo seu reconhecimento com a Ordem Brasileira do Mérito Cultural em 2002.

 

 

 

Kabengele Munanga, 2022. foto Luciane Ramos-Silva

 

 

 

MARGOT LUYCKFASSEEL – Na apresentação da quinta edição de Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, a professora Nilda Lino Gomes identifica o período de 2003 até 2016 – os anos dos governos Lula e Dilma – como uma vitória para o movimento negro no Brasil. Como o senhor avalia esse período e o período que seguiu?

KABENGELE MUNANGA: Nos mandatos do presidente Lula e da presidente Dilma (2003-2016), temos fatos que não deixam dúvidas sobre a vontade política desses dois dirigentes em promover políticas de promoção a equidade e igualdade racial. Vamos aos fatos: (1) A criação em 2003 da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial(SEPPIR) que tinha estatuto de ministério – (2) A promulgação das leis 10.639/03 e 11.645/08 que tornaram obrigatório o ensino da cultura e da história africana, da cultura e história do negro no Brasil e dos povos originários  no ensino fundamental– (3) A promulgação da lei 12.711 de 2012 que tornou obrigatória a reserva de vagas para acesso de  negros e indígenas na Universidade pública Federal – (4) a nomeação do primeiro juiz negro no Supremo Tribunal Federal – (5) pela primeira vez na história do Brasil, cinco negros foram nomeados ministros do Estado (Cultura, Esporte, Meio ambiente, SEPPIR, Ação Social), entre outros. Infelizmente, houve um grande retrocesso depois do golpe da presidente Dilma Rousseff e a situação do negro piorou no governo do presidente Bolsonaro.

 

 

ML – Ainda com base em Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, o senhor escreve que o ditado “a união faz a força” não é acessível ao movimento negro no Brasil porque a elite brasileira instalou uma ideologia racial de branqueamento, entre o fim do século 19 e início do século 20, que separou negros e mestiços. O senhor pode explicar como funciona essa ideologia racial no Brasil até hoje?

KM: Nesse livro “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade negra versus identidade nacional”, minha proposta é trabalhar o uso político-ideológico da mestiçagem, que é um fenômeno natural geneticamente falando e faz parte da história da humanidade. Mas que o Brasil oficial transformou numa característica fundante do Brasil que não existia em outros países do mundo, para escamotear os problemas sociais devidas à discriminação dos não brancos e para construir uma sociedade sem conflitos raciais conhecidos nos Estados Unidos, entre outros. Por outro lado, a elite dominante brasileira tinha uma proposta clara de branquear a sociedade brasileira e esse branqueamento se faria através da mestiçagem e da intensa imigração europeia cujos motivos econômicos estavam embutidos no ideal do branqueamento para evitar os conflitos raciais como nos Estados Unidos e para evitar também que o Brasil se tornasse num país da maioria demográfica negra que poderia levar os negros ao modelo do Haiti que conseguiu sua independência em 1804, derrotando as tropas de Napoleão Bonaparte.

 

Nos mandatos do presidente Lula e da presidente Dilma, temos fatos que não deixam dúvidas sobre a vontade política desses dois dirigentes em promover políticas de promoção a equidade e igualdade racial. 

Ao separar mestiços e negros em vez de uni-los numa mesma categoria de “Black”, como nos Estados Unidos o modelo brasileiro enfraqueceu a união de todos os oprimidos pretos e pardos, fazendo com que os mestiços não se considerassem como negros, mas sim no caminho de branqueamento para escapar à condição reservada aos pretos. Isso dividiu certamente a luta dos oprimidos pretos e mestiços que deveriam ficar no mesmo barco para lutar contra o opressor comum. Hoje se a luta contra o racismo nos últimos vinte ou trinta anos ganhou muita força, é graças à adesão da população mestiça que não se considerava como negra e que hoje assume sua negritude, apesar da consciência de serem também descendentes de pais e mães brancos(as).

 

 

ML – O Brasil tem uma grande força cultural em termos de cultura negra: carnaval, samba, capoeira… que sempre foram núcleos de resistência, mas também de divertimento. Nos Estados Unidos talvez possamos observar fenômeno semelhante com a cultura do hip-hop. É resistência, mas hoje em dia também é mercadoria cultural que pessoas brancas consomem facilmente sem ligar para o aspecto político embutidos nessas manifestações. É possível afirmarmos que estes elementos da cultura negra foram tão facilmente adaptados na “cultura brasileira” que perderam sua força política? Isso contribui para a permanência do mito da democracia racial?

KM: Em todos os países que foram beneficiados pelo tráfico e escravidão dos negros africanos, que considero como países de encontro das culturas e civilizações, casos dos Estados Unidos, do Brasil, de todos os países das américas, das Antilhas inglesas e francesas, apesar das condições históricas diferentes e assimétricas, todos esses povos trouxeram suas contribuições e aportes culturais na construção desses países. Não se trata de influências como dizem algumas pessoas, mas trata-se de participação, contribuições e aportes culturais concretos. Em alguns casos, houve continuidade como a resistência das religiões de matriz africana no Brasil, em outros houve criação de novas culturas de resistência como na música, nas artes visuais e não visuais, na dança, na culinária, no esporte. Algumas culturas foram africanizadas como o Carnaval no Brasil que tem sua origem na idade média ocidental, mas que os negros africanizaram com sua música, ritmo e dança, da mesma maneira que introduziram a jinga na maneira de jogar o futebol que é uma invenção inglesa e não africana. Para se consolidar e tornar-se cada vez mais forte, o mito da democracia brasileira manipula alguns fatos evidenciados na realidade da sociedade brasileira como a mestiçagem, as personalidades míticas os símbolos da resistência cultural negra no Brasil.

O mito vai dizer que que os brasileiros são um povo mestiço, isto é, nem branco, nem negros, nem indígena, mas sim uma nova raça brasileira, uma raça mestiça. Quem vai discriminar quem se somos todos mestiços? Os aspectos da resistência cultural negra que se tornaram símbolos da identidade nacional como a música, a dança, a culinária e, principalmente a religião, são também manipulados pelo mito para afirmar a harmonia entre grupos, a ausência do preconceito e da discriminação racial. Se o Brasil aceita as religiões de origem africana como o Candomblé, todo isso é prova de que não é racista. Se gosta da música negra que já é brasileira, isto é prova de que o Brasil não é racista. As personalidades míticas como Pelé e as estralas de futebol, são sempre citadas para mostrar que basta ter dinheiro para que todas as portas do Brasil estejam abertas. Esses fatos evidentes, mas manipulados, foram também interiorizados e aceitos por alguns negros e por essas personalidades míticas que ascenderam economicamente.

 

 

 

Kabengele Munanga. ilustração Cauã Kamui

 

 

 

ML – Quem se beneficia do fato dessas manifestações culturais de resistência negra terem se tornado mercadorias “nacionais” lucrativas?

KB: Essas culturas de resistências massivamente consumidas por brancos e negros não poderiam deixaram de fazer parte da indústria cultural numa sociedade capitalista. Mas quem ganha mais dinheiro com essa indústria cultural não são negros, mas sim brancos que dominaram todos os setores da economia brasileira. A questão importante que se coloca é saber onde estão os homens e as mulheres negros(as) que produziram essas culturas? Entre os pobres são os mais pobres; entre os analfabetos, eles(as) são mais analfabetos(as); são invisíveis em todos os setores da vida do país: indústria, comércio, político (legislativo, judiciário, executivos); são os mais numerosos no sistema carcerário brasileiro; sobre três jovens vítimas da violência policial dois deles são negros. Graças às políticas de ação afirmativas nos últimos vinte anos, eles começaram a ter acesso à universidade e ensino superior em geral, embora estejam ainda sub-representados.

 

ML – Quais são as consequências desse mito, que nega a existência do racismo no país,  para o Brasil de hoje?

KB: Claro que o mito foi descontruído, mas a sua inercia persiste até hoje e apesar das denúncias constantes do movimento e das entidades negras e das pesquisas científicas, tem gente que acreditam ainda na democracia racial brasileira, pois o racismo brasileiro não foi institucionalizado pelas leis como no sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos, no regime do apartheid e no regime nazista. É um racismo de fato, mas que tem suas manifestações e características diferentes dos demais modelos conhecidos na história recentes da humanidade. Essa inercia do mito de democracia racial prejudica certamente a mobilização de muitos(as) brasileiros(as) na luta de combate ao racismo e em busca da equidade e da igualdade entre brancos e não brancos. Os caminhos clássicos dessa luta são conhecidos: as leis que funcionam, uma educação plural e antirracista e as políticas públicas afirmativas de inclusão dos negros e povos indígenas. Falta uma vontade política e através dela um projeto social para a transformação profunda da sociedade onde hoje os negros, isto é, pretos e pardos constituem demograficamente 56% da população brasileira e, portanto, não representados em todos os setores da vida nacional.

 

ML – Como o senhor observa o futuro da luta antirracista no Brasil?

KM: O futuro vai depender do crescimento da consciência política sobre o racismo entre todos os brasileiros, brancos e negros e da força da pressão que eles exercerão através dos movimentos sociais sobre os dirigentes, os setores públicos e privados que dominam a estrutura do poder na sociedade. Os discurso e retóricas estão crescendo por toda parte, mas não são suficientes para derrubar as práticas racistas e promover políticas de inclusão dos afrodescendentes e povos originários na sociedade brasileira. As leis que funcionam, a educação e as políticas afirmativas são caminhos possíveis para lutar contra um racismo estrutural numa sociedade capitalista.

 

 

 

 

*Esta é uma versão condensada da entrevista originalmente publicada em inglês no site Africa is a Country,  site de opinião, análise e novos escritos sobre e da esquerda africana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Margot Luyckfasseel

MARGOT LUYCKFASSEEL é doutora em Línguas e Culturas Africanas pela Universidade de Ghent, na Bélgica. Atualmente trabalha como pesquisadora pós doc num projeto sobre os raízes da escravidão no leste do Congo, no Departamento de História da Universidade de Ghent, onde ela também leciona. Margot integrou ainda o comitê de especialistas sobre a presença dos símbolos coloniais no espaço público da capital belga, noemado pelo governo de Bruxelas. Em 2010, morou no Brasil como intercambista e, regularmente, visita o país.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.