novembro de 2012

BATUQUE NA COZINHA

Alexandre Araujo Bispo

 

 

 

Ilustrações JULIANA BRECHT

 

 

 

 

 

 

A polêmica em torno da comercialização do acarajé por ex-filhas de santo do Candomblé, atuais evangélicas pentecostais, e a proibição da venda dos bolinhos por ocasião da Copa do Mundo de 2014, a ser realizada no Brasil, trouxeram à tona preconceitos latentes na cultura nacional em torno das práticas culturais afro-brasileiras. Neste texto apresento algumas ideias sobre a importância da comida no candomblé e sua relação com o sagrado.

 

 

UM MITO BEM CONHECIDO

Diz à história que Deus não gostou nada da cesta de legumes e frutas que lhe dedicou o jovem Caim. Seu irmão Abel, por sua vez, sacrificou à divindade um novilho branco. Entre vegetais e sangue, frutas e carne, entre o agricultor e o pastor, Deus preferiu a oferenda do último. Nesta famosa tragédia bíblica os alimentos aparecem associados à relação entre o humano e o sagrado. Ela nos fala dos gostos de Deus. A justificativa por preferir a carne, o sangue, ao invés da colorida cesta de vegetais, legumes e frutas era por que no coração de Caim havia falsidade, ele não ofertava de verdade, pois tinha inveja do irmão…

 

Essa história vai longe no tempo e, atualmente, não são todas as religiões que oferecem comida, tanto para os deuses, quanto para fiéis e visitantes em dias de celebrações especiais, como o faz o Candomblé. Nesta religião a comida desempenha importante papel na organização das crenças, na relação que se estabelece entre o fiel e seu corpo, entre eles e os orixás. Os orixás são deuses ligados às forças da natureza: vento, terra, fogo, ar, água e vegetação. Como no mito acima descrito, as divindades mantêm relações de troca e reciprocidade com os crentes. A contrapartida de uma boa oferenda alimentar são os cuidados que os orixás dispensam à cabeça dos seus filhos. Cabeças devem ser cuidadas e é importante que os fiéis deem as devidas obrigações evitando sal e dendê para Oxalá (orixá da criação), amassando o feijão para o bolinho frito de Iansã (orixá dos ventos e tempestades), cozinhando bem o quiabo de Xangô, separando o feijão preto para Ogum.

 

Há dois tipos de comida no candomblé, uma para os deuses e outra para os humanos. Há refeições em que ambos participam. Por enquanto retenham a seguinte distinção: os orixás comem o Yanlé, e os homens o Ageum ou o Unjé. Quem faz a comida é a Yabassé, cozinheira, e eu convido você a conhecer um pouco sobre a comida que se come no terreiro, ou Ilê.

 

 

 

CANDOMBLÉ: YANLÉ, AGEUM, YABASSÉ, ILÊ

 

As mais antigas notícias sobre os cultos africanos no Brasil trazem à tona a palavra calundu. O termo de origem banto abrangia até o século 18 danças coletivas, cantos e músicas acompanhadas de percussão. Muitos de seus praticantes foram perseguidos por, segundo o ponto de vista da Santa Inquisição portuguesa, fazerem feitiçarias: curas mágicas, benzimentos, rezas, amarrações, como pedacinhos de pano para conquistar a pessoa amada, banhos de ervas, poções mágicas. Tudo, aliás, super atual se considerarmos que na contemporaneidade pastores evangélicos comercializam água sagrada, toalhas curativas, abraços suados, pedaços de papel e orações mágicas sobre retratos fotográficos e, entre algumas falsas baianas, acarajé de Jesus.

 

Foi no século 19, porém, que surgiu o que hoje conhecemos como terreiros de candomblé. A mais antiga casa conhecida é a Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, Bahia. Desta casa mãe surgiram os célebres terreiros do Gantois, cuja figura mais conhecida foi Mãe Menininha (1894-1986). Segundo Dorival Caymmi (1914-2008) Menininha tinha a “Oxum mais bonita”. Outro templo que surgiu da Casa Branca foi o Ilê Axé Opô Afonjá, que em 2010 completou 100 anos de idade tendo sido tombado pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 28 de julho de 2000, tal qual ocorreu com o acarajé, em 2004. Nesta casa destaca-se sua atual líder Stella de Oxóssi (1925), cujo orixá associado às matas e à fartura alimentar é Odé Kayodé que significa o “Caçador de alegrias”.

 

Nessas três casas tradicionalmente, e em muitas outras que foram e continuam surgindo, há uma figura especial conhecida pelo povo de santo como Yabassé. Ela é a mãe da cozinha e manipula os alimentos que darão de comer aos homens (ageum) e aos deuses (Yanlé). Exú, diferente dos outros orixás come tudo o que a boca come. Sua comida é o Ipadê que consiste nos seguintes ingredientes: água, acaçá (bolinho de milho branco envolvido em folha de bananeira), bebida alcoólica, azeite de dendê e farinha de mandioca. Ogum que na ordem do xirê (festa) é reverenciado logo após seu irmão Exú, já gosta do Oxoxó (milho cozido com pedaços de coco). Oxum, orixá das águas doces recebe como oferenda o Adun, comida feita de milho pilado, azeite de dendê e mel, mas há também o Ipeté: massa de inhame com camarão e, finalmente o omolocum: feijão fradinho e ovos.

 

São estes apenas alguns exemplos de alimentos servidos aos orixás no candomblé, há muitos outros que não comentarei aqui, pois este é apenas um texto introdutório. Lembremos que o candomblé não é uma religião monoteísta, mas cultua vários deuses, daí a variedade de suas preferências. Tais comidas identificam o paladar sagrado, mas há aquelas que fazem a alegria dos frequentadores das festas. Há uma circulação entre gostos divinos e terrenos, e os alimentos participam desse movimento. Come-se aí feijoada, acarajé, inhame, quiabo, cebola, arroz de forno, moqueca de peixe fresco e bolo confeitado. Este como se poderia esperar fica para o fim da festa.  Que fique claro: as comidas de santo não precisam de temperos e a eles são oferecidas certas partes dos animais como patas, cabeças e alguns órgãos.

 

 

CONVERSA DE COZINHA

 

O primeiro intelectual brasileiro que escreveu sobre esses ingredientes na Bahia foi Manuel Raimundo Quirino (1851-1923), já apresentado aos leitores de O Menelick 2° Ato por Valéria Alves (ano II, edição 08). Em seu texto: A arte culinária na Bahia[1], Quirino apresenta receitas a ele descritas por negros baianos mostrando a diversidade dos pratos que surgiram com a presença tanto de mulheres quanto de homens nas cozinhas das elites daquele estado.

Comento a seguir apenas dois pratos bem conhecidos: o acarajé e a feijoada.  O primeiro é preparado com feijão fradinho. Segundo Quirino “o feijão fica de molho até soltar a casca; depois, o mesmo é passado em pedra ou moinho, resultando em massa que será temperada com cebola ralada e sal. A massa deverá ser bem misturada, dando a consistência desejada, sempre se utilizando a colher de pau para preparar a liga. O azeite é colocado em grande frigideira, panela rasa ou tacho. Quando estiver fervendo, as porções da massa de feijão são fritas até se tornarem douradas pelo óleo de palma. O cheiro gostoso da fritura aromática atiça qualquer apetite. O acarajé pode ser comido com ou sem molho nagô”. Eu já comi vários acarajés com ou sem molho. Essa iguaria vem sofrendo acréscimos e mesmo seu tamanho lembra hoje um big mac, fruto das disputas entre o  tradicional (o acarajé já circula há pelo menos 300 anos) e o fast food. Justamente o que a Fifa (Fédération Internationale de Football Association) quer pôr de fora da Arena Fonte Nova (BA) e mesmo nos arredores do estádio as vendedoras ambulantes, imposição esta que a Associação das Baianas do Acarajé e Mingau (ABAM) e sua presidente Rita Santos não admitem. Nem de Jesus, nem da Fifa, o acarajé é de Iansã e de suas devotas baianas.

 

Eu já fui há muitas festas de Ogum, pois este Deus tem muitos filhos, e comi feijoada, prato que agrada a este orixá e a muitos brasileiros. Na verdade é o feijão preto que o atrai. A feijoada por sua vez é servida em suas festas para os filhos de santo e para o público que fica na assistência curtindo o xirê. Para o folclorista Luis da Câmara Cascudo (1898-1986), a feijoada é a comida mais popular do Brasil, apreciado por todas as classes sociais. O prato é uma variada reunião de verduras e carnes: linguiça, paio, salsichas, charque, carne de sol, orelha de porco[2]. Ele varia de acordo com a região em que é servido. Em São Paulo, por exemplo, é comum o acompanhamento de couve, torresmo, farofa e molho de pimenta. Tenho um amigo que ainda exige a laranja no fim.  Para que a receita tenha sucesso, nos diz Manuel Querino: “É condição essencial que o feijão seja novo para que a feijoada se torne apetitosa, preferindo-se o denominado mulatinho, se bem que outros dêem mais valor ao feijão preto” [3].

 

Por sua diversidade cultural e imensidão geográfica, o Brasil tem vários pratos típicos, tais como o churrasco gaúcho, o frango com quiabo mineiro, a feijoada baiana e o virado a paulista, em São Paulo, por exemplo. Mas os pratos da cozinha baiana se tornaram muito famosos e a feijoada é o principal entre deles. Outros pratos como moqueca de peixe fresco, moqueca de ovos cozidos, frigideira de camarão, camarão ensopadinho com chuchu, arroz de forno, mocotó, galinha ao molho pardo, sarapatel, leitoa assada, canjica de milho entre outros são afro-brasileiros.

 

Stella de Oxóssi nos lembra: “Não há orixá como o estômago, pois recebe sacrifícios diariamente” [4] e completa: “O estômago é como uma divindade, precisa ser respeitado e cuidado”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1] QUERINO, Manuel. A arte culinária da Bahia. 3. ed. Ed. Martins Fontes. 2011

[2] CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Global Editora e Distribuidora Ltda. São Paulo. 2001.

[3] QUERINO, Manuel. De algumas noções do sistema alimentar da Bahia. In: Costumes africanos no Brasil, p.147. 2. ed. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, FUNARTE, 1988.

[4] OXÓSSI, Stella. Provérbios/ÒWE.  2007

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.