dezembro de 2017

APONTAMENTOS PARA UM RESPIRO

Ana Lira

 

 

 

 

 

Betelhem Makkonen
Victoriam Colonial Mirror (wall, small)
Espelho e tinta
40 X 60 X 3 cm
2016

 

 

 

 

 

Um diálogo comum moveu minha colaboração para esta edição especial da revista O Menelick2 ºAto-  o  estado de suspensão em que ficamos quando vimos o vídeo O evento racial: uma proposição de Denise Ferreira da Silva, resultante da conversa que a filósofa brasileira realizou na Casa do Povo, em São Paulo, em 2016. Ela parte de uma questão que permeou seus caminhos de pesquisa, nos últimos vinte anos: por que a morte de um corpo negro não gera uma crítica ética?

 

Denise desenvolveu uma trajetória de estudos permeada por uma extensa revisão da construção do pensamento moderno ocidental e seus impactos políticos, conceituais e éticos no cotidiano global. Em seus escritos e conversas, ela aponta, com muita delicadeza, uma série de proposições sobre as quais penso que precisamos nos envolver para repensar a estrutura que dia a dia contribui para sufocar expressões diversas.

 

Uma das proposições mais fortes nos conta que qualquer pessoa, comunidade, cultura, sociedade, entre outras configurações, cuja produção de conhecimento não esteja assentada na construção de uma narrativa racional determinista (que parte de algo como o tão difundido penso, logo existo) está passível de ser exterminada.

 

Ou seja, se eu consegui compreender adequadamente o percurso de pesquisa de Denise, o que ela compartilha conosco é que [de novo] qualquer pessoa, grupo, cultura, entre outros, cuja produção de conhecimento tenha como base, por exemplo, vivências com a natureza, as sabedorias corporais, outros métodos de lidar com o tempo ou outras análises e narrativas que consideram perspectivas não-lineares de experimentar e observar o mundo, estão sendo forçadas a se esconder ou levadas a desaparecer, como o caso de diversos povos latino-americanos e negrodescendentes.

 

 

Esmiuçando um pouco mais…

 

a) o discurso de mocinho e bandido que foi criado para contrapor policiais e moradores das favelas – e matar ambos, uma vez que são praticamente todos negros, vindos de grupos sociais que, entre outras coisas, compartilham um cotidiano com baixos salários e outros desrespeitos cotidianos;

 

b) a violência contra estudantes da periferia nas universidades públicas e privadas;

 

c) a perseguição às religiões de matriz africana;

 

d) a expulsão de um rapaz pela polícia, do show do Coldplay, em São Paulo, na base de um “neguinho de merda”, somente porque ele ficou na frente de duas moças em uma escada;

 

e) bem como a cegueira intencional que permeia a produção cultural e artística que envolve as comunidades negrodescendentes e afins… são consequências cotidianas de um programa sociopolítico que foi legitimado para afastar a presença de qualquer outra proposta de vivência no mundo. Essas vivências que se quer manter longe são justamente as que percebem e organizam seus saberes sem passar, primeiro, por uma resposta única, racional, determinada e linear de construção de conhecimento. Além disso, elas não partem do princípio que todas as demais respostas estão erradas e devem ser descartadas.

 

Um exemplo deste programa sociopolítico é a maneira como uma das linhas da medicina, a halopática, foi considerada o único caminho certo e seguro, para tratar das molezas físicas, [desconsiderando processos sensoriais e espirituais]. Em uma campanha precisa, feita durante décadas pela indústria de medicação e aparelhos, ela conseguiu colocar em dúvida toda uma gama de saberes gerados por dezenas de outras linhas de cura que circulavam no mundo, ao tratá-los como insuficientes, secundários e duvidosos, causando a desconfiança de grande parte da população urbana que vive no mundo.

 

Pensando neste conjunto de reflexões propostos por Denise, creio que temos bons desafios a desenrolar. Um deles é fazer com que as proposições dela sejam traduzidas para as nossas línguas, uma vez que praticamente toda a pesquisa foi desenvolvida fora do Brasil, publicada em inglês, e nenhuma editora local teve interesse ainda de difundir por aqui [por que será?].

 

Outro é promover um intercâmbio das proposições que ela traz com o público em geral, uma vez que muitos dos conceitos e linhas de reflexões que ela aborda usam termos distantes da maioria da população. Não podemos negar que é uma escolha política do nosso programa educacional distanciar as pessoas destas proposições esclarecedoras e questionadoras; além de ser uma escolha política da própria academia continuar reforçando linguagens que são compreendidas somente por quem frequenta seu cotidiano.

 

Deste modo, creio que um de nossos papéis é encontrar estratégias de promover um abraço entre esses conhecimentos, da forma mais acessível que pudermos. Se não colocarmos nossos corpos e capacidades para sermos conexões, os saberes que elaboramos – dentro e fora dos circuitos institucionais – vão continuar servindo para alimentar a mesma estrutura de poder que faz parte do sistema de exclusão e extermínio que a própria Denise aponta.

 

Ouvindo as reflexões que ela nos traz, sinto, do fundo do coração, que não podemos mais nos contentar com a ideia de que a nossa trajetória só faz sentido neste mundo se ocuparmos os ditos espaços de poder como eles estão estruturados hoje – com todos os seus filtros que excluem fingindo que estão incluindo.

 

Um bom apontamento desta questão veio por meio da entrevista que outra filósofa brasileira, a Sueli Carneiro, deu para a revista Cult, em maio deste ano. Ela conta que como a sociedade escravocrata não conseguiu impedir que todos os negrodescendentes ascendessem socialmente. Ela usa o exemplo dos que, aos trancos e barrancos, furaram o bloqueio para afirmar que os demais são incompetentes.

 

É o mito da jornada do herói que acreditamos e que nos faz individualizar conquistas, ao invés de perceber que politicamente, socialmente, economicamente e culturalmente estamos em um programa que não foi [e nem é] construído para caber as nossas experiências. Do estudante que sabe muitas coisas sobre andar de ônibus, que nunca caem na prova do ENEM, aos pacientes que não conseguem explicar aos médicos o que é fastio, porque o vocabulário para o esmorecer do corpo, na medicina popular, é visto e difundido como anedota nos circuitos médicos brasileiros.

 

Em outro contexto, as discussões que envolvem a presença de negrodescendentes nas artes brasileiras, hoje, também se situam muito bem neste exemplo das coisas que não cabem. A estrutura não acolhe temáticas, técnicas, materiais, filiações, saberes, modos de trabalho e caminhos de produção de conhecimento da maioria de nós. Não consegue lidar e nem respeitar a autonomia de expressões existentes na arte de rua, pintura popular, música “não conceitual”, entre outras. Elas são sempre acessórias, dependentes… um lugar que um dia vai atingir outro patamar [sério, qual?].

 

O circuito lida, muito menos, com a ausência de formação acadêmica presente na vida de artistas negrodescendentes. Este aspecto é importante porque, na escolha pelo direcionamento de recursos para produções culturais, acaba sendo essa formação, junto com a situação financeira, um filtro facilitador de quem vai ter condições de transitar com suas produções, embora não seja garantido que elas possam expressar com autonomia as questões que se propõe.

 

Se colocarmos na mesa a pergunta seminal da Frente 3 de Fevereiro – Onde estão os negros? – e aplicarmos ao circuito das artes e da cultura, eles estarão do lado de fora, em todos os sentidos. E, a meu ver, discutir a presença deste grupo na arte, partindo somente da experiência de quem está dentro do circuito, pode ser uma armadilha, porque o sistema articulado para criar as narrativas dos eleitos pode servir para alimentar e reforçar a exclusão. Cuidado é essencial, quando estamos nesse lugar…

 

Dito isso, eu pergunto: será que ainda podemos acreditar em quebrar esta estrutura por dentro? Denise comenta, em um segundo texto, publicado em 2016, intitulado Sobre diferença sem separabilidade, que a crítica deste programa não consegue questionar a estrutura do próprio sistema, porque suas bases e instrumentos de análise foram elaboradas dentro dele [e para ele?]. Então, como podemos achar que a transformação está em ocupar os espaços de poder usando os mesmos instrumentos, regras e seguindo a mesma rotina que ele propõe?

 

Tudo bem que a própria pesquisa dela e da Sueli Carneiro foram desenvolvidas nestes espaços constituídos de poder, mas, ambas apontam para mudanças que talvez não possam ser resolvidas dentro deles. É fundamental pensar nisso: conseguimos apontar as falhas do programa estando dentro dele, mas será que conseguimos mover a estrutura a partir deste mesmo lugar? Será?

 

Essas questões provocaram um redemoinho na minha rotina interna – o que eu considero benéfico, por me fazer matutar todo santo dia como podemos encontrar caminhos. Por um tempo, eu acreditei piamente que podíamos agir pelas brechas, até que em uma aula recente na Universidade das Quebradas, no Rio de Janeiro, a coordenadora do grupo, Renata Codagan, me disse um enfático cansei de viver pelas brechas, me escondendo, eu quero respirar o meu lugar no mundo.

 


Betelhem Makonnen
Victorian Colonial Mirror (Wall, Small)
Espelho Encontrado e Tinta
40 X 60 X 3 cm
2016

 

 

 

Eu quero respirar meu lugar no mundo…

 

Agora, me diga: como podemos respirar o nosso lugar no mundo, em um programa que foi construído para exterminar as presenças e lugares simbólicos de onde viemos? Em um programa que, para neutralizar as próprias exclusões, finge incluir? O redemoinho interno que começou na proposição da Denise ganhou a força de uma tempestade tropical e eu confesso que está muito difícil continuar defendendo os paliativos que construímos para existir.

 

Quando eu penso nessas questões todas, sinto dificuldade de lidar com meu vocabulário, com a linguagem que aprendi, com a maneira com que recebo e distribuo conhecimento, com a forma como convido pessoas para trabalhar junto ou como estruturo orçamentos de projetos. Sinto uma urgência de mudança em cada ponto do corpo, porque sinto nas palavras de Renata uma proposição tão forte quanto a de Denise. Nós ainda não respiramos nosso lugar no mundo.

 

A morte do corpo negro [que tem como maior e mais grave exemplo a morte física da juventude negra, em especial, nas favelas brasileiras], é também cada coisa que deixamos de produzir com alegria e intensidade porque estamos todo dia ofegando para sermos incluídos neste programa. Todo dia exaustos para conseguir o diploma que achamos que vai nos livrar, finalmente, dos preconceitos.

 

Todo dia exauridos pela roupa, pelo cabelo, pelo emprego, pelo currículo, pelo parágrafo nas leis do estado democrático de direito, pela imagem, pelo voto no político e no líder comunitário, pela atenção do professor, pelo respeito no posto de saúde ou ao cruzar a viatura policial, por qualquer coisa que nos faça acertar a danada da senha do programa que vai nos fazer sair e voltar para casa sem sentir medo ou com um olhar de dúvida pesando nos ombros.

 

A vida dos negrodescentes e de outros povos com configurações culturais semelhantes é estar no mundo desde que este programa foi estruturado e tomou conta do que entendemos por economia, educação, ciência, religião, artes, trabalho, cultura, entre outros. E tenho acreditado, nos meus sonhos mais sinceros, que é possível construir um caminho de transição, enquanto, trabalhamos nas entrelinhas na elaboração de outros mundos possíveis.

 

Denise aponta, tanto em sua proposição O evento racial quanto no texto Sobre diferença sem separabilidade, que estamos no fim do mundo como o conhecemos. Isto é, que este programa, da maneira como está estruturado, não se sustenta mais. O problema é que as proposições vindas de quem atua nele com tranquilidade visam uma troca de roupa e não uma transformação da estrutura. Ela sabe tão bem disso que está dedicando a segunda parte da sua pesquisa a articular saídas.

 

Uma delas é começar resgatar experiências passadas que antecedem ou não respondam aos pilares do programa moderno de construção de conhecimento. Outro caminho é estimular a imaginação e a experimentação de proposições que não obedeçam aos princípios de articulação e conexão a que estamos acostumados, como, por exemplo, a divisão da nossa rotina no cronograma de tempo-trabalho-descanso proposto por um dos modus operandi do sistema no qual vivemos para trabalhar.

 

 

 

 

Se isso parece absurdo, considerando a vida da maioria dos brasileiros, em especial daqueles que sustentam famílias nas periferias do Brasil, é porque talvez, eu repito, talvez, o culto ao medo da escassez [um dos pilares que mantém este sistema ativo] esteja trabalhando em conjunto com outras repressões para neutralizar as nossas vias de saída para outros contextos menos massacrantes.

 

Uma das mais difundidas é a de que nada mais podemos criar. Ou, em outra atualização do mito neutralizador, ouvimos todo santo dia, da escola à universidade, nos botecos ou dos nossos pais, que tudo já existe e não podemos inventar a roda. E, com isso, esquecemos que a situação que vivemos também foi uma criação que é alimentada todo dia por negociações e relações de poder.

 

Divido uma experiência recente: recebemos um prêmio para expor em Belém, por meio de um edital nacional. Pela proposta, nós precisávamos selecionar estudantes de artes visuais para a equipe de mediação. Eu assisti ao O evento racial dias antes de elaborar a convocatória pública e, depois de conversar com Mariana Porto, uma amiga cineasta que pesquisa educação, não havia a menor condição de pensar na equipe tendo o conhecimento formal e o percurso institucional das pessoas como balizadores das escolhas. Selecionar já era tortura, imagine fazer isso nos modos tradicionais?

 

Era preciso iniciar uma transição. Então, abrimos a convocatória pública para estudantes de artes visuais, mas deixamos claro que não queríamos receber currículos. Fizemos uma série de perguntas pessoais, pedimos que eles compartilhassem referências e fizessem uma carta de desejos, que podia ser em texto, áudio ou vídeo em que comentassem como viver pode ser um ato político? [Outros meios de seleção ou abolir seleção, que é uma ideia que eu prefiro, é trabalho a expandir].

 

Diante das conexões entre participantes e o projeto que estávamos querendo construir na cidade, propusemos uma segunda fase de encontro em que eles elaboraram um roteiro de visitas [cerca de uma hora] em seus próprios bairros. Em vez da turma vir até nós, a equipe é quem foi até cada um deles, de ônibus, seguindo o percurso que informaram.

 

Esta escolha foi essencial para compreender a rotina de cada um: trajetos, amplitude dos deslocamentos, enfrentamento corporal nos coletivos, como se relacionavam com os lugares em que moravam, em suas potências e conflitos; e, principalmente, diante de uma equipe externa aos seus contextos, como faziam escolhas e compartilhavam essa produção de conhecimento.

 

A experiência mudou todas as percepções de mediação que havíamos construído até então; e, se não era mais possível usar os instrumentos tradicionais de seleção como filtro de escolhas, era ainda menos possível propor que se vestissem, falassem, agissem e desempenhassem as funções tradicionais de mediação que vemos nos espaços de arte [os poucos que possuem mediação, porque na maioria dos casos, o mediador é reduzido a guardião de obra].

 

O que a equipe [Andresa Carvalho, Beatriz Paiva, Dairi Paixão, Lígia Ramalho e Maurício Almeida] desenvolveu foi um experimento, partindo de suas vivências pessoais, escolhas e articulações em diálogo com o trabalho exibido e as rotinas dos grupos visitantes. O projeto artístico não era o fim, mas uma das peças com as quais eles se conectaram para discutir como compartilhamos experiências com grupos que podem ou não estar afinados com nossas proposições. Como é possível reconhecer diferenças sem precisar desaparecer com o outro do mundo?

 

Denise coloca em Sobre diferença sem separabilidade, que um caminho é não lidar com as diferenças como oposições [que criam abismos e colocam o outro sempre como algo que deve ser afastado para que ideia da existência universal de alguns possa se manter intacta] mas como singularidades. Ela comenta que se pensarmos que somos manifestações singulares desse todo que nos compõe, podemos criar outras possibilidades para os contextos de extermínio físico, cultural, social, político, espiritual, econômico, entre outros, que vivemos.

 

É por isso que, ao ouvir suas proposições, eu concordo que pistas possíveis dessa transição podem estar no conhecimento que já temos dos povos dos quais somos descendentes; diversas outras podem estar na produção de saberes que estamos desenvolvendo agora, entre um fôlego e outro do dia; ou residir, neste momento, em iniciativas nos próprios circuitos periféricos do país. Sinto que é preciso investir energia em agregá-las e, se vamos colocar nossos corpos na berlinda, que seja para encontrar saberes, instrumentos, estratégias e fomentos para respirar nossa existência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[NOTA: um grupo conduzido pelo artista chileno Amilcar Packer tem se dedicado a traduzir textos de Denise para português, em São Paulo, e tem lançado publicações de grande valor, além de disponibilizar na internet. O texto Sobre diferença sem separabilidade pode ser lido neste contexto. O vídeo “O evento racial: uma proposição de Denise Ferreira da Silva” também está disponível no Vimeo. Contudo, é preciso esforços queridos para que o conteúdo possa ganhar formatos e serem usados, por exemplo, em aulas para crianças, em estudos de grupos para estudantes, em cartilhas, em casas de passagem, em trabalhos artísticos, em projetos sociais urbanos e rurais, entre outros]

 

 

 

 

 

 

Ana Lira

Ana Lira é fotógrafa e artista visual que vive e trabalha em Recife, Brasil. As experiências em que procura estar presente discutem viver como um político e as ações coletivas como processos de mediação. Relações de poder e implicações nas dinâmicas de comunicação estão entre seus interesses no desenvolvimento de projetos, que articulam narrativas visuais, material de imprensa, mídias impressas, publicações independentes. É especialista em Teoria e Crítica de Cultura.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.