março de 2014

UALALAPI, GUERREIRO NGUNI

Ubirata Souza

 

 

 

 

foto MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lançado originalmente em 1987, Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa (1957), foi um marco para a geração de 1980 e, por conseguinte, para toda a literatura moçambicana. Embebida num espírito crítico que toma distância da literatura a serviço da revolução independentista, as obras de escritores como o próprio Khosa, Nelson Saúte, Suleiman Cassamo, Lilia Momplé, entre inúmeros outros, quase sempre apresentam características comuns, como o realce ao patrimônio cultural dos povos de Moçambique, o trabalho apurado relativamente às experimentações estéticas e às ácidas críticas à concretização do projeto de Estado em seu país após 1975.

 

Neste sentido, o emblema máximo dessa geração é Ualalapi, originalmente publicado em 1987. Trata-se de uma obra profunda, tanto do ponto de vista estético quanto de suas implicações sociais, ideológicas e históricas a obra é construída sobre uma estrutura tão peculiar que sua caracterização de gênero faz críticos se debaterem até hoje: são seis capítulos antecedidos por seis “Fragmentos do fim”, coletâneas de paratextos de origem muito diversa. Cada um desses capítulos é composto com um núcleo central atomizado, que estabelece uma autonomia relativa dentro do livro, mas que, ao mesmo tempo, não os permite descolar-se de um enredo de fundo que estabelece um princípio, um meio e um fim de uma história.

 

E a história do enredo de fundo é a ascensão, apogeu e queda do poder do hosi nguni Ngungunhane, derradeiro soberano do chamado Império de Gaza, última instituição política local destruída pelo governo português para estabelecimento do colonialismo em Moçambique, assim como definido pela partilha do continente na Conferência de Berlim entre os anos de 1884 e 1885. Ao retomar esse dado histórico, Ualalapi volta-se para o passado de um território, revisitando a brutalidade do Sistema colonial português, sobretudo do sul de Moçambique ao Vale do Zambeze onde o império nguni havia assentado sua força política, militar e econômica. A forma como a obra se compõe a partir desse confronto entre interesses externos e internos faz com que Ualalpi aponte, inevitavelmente, para o presente e, também, para o futuro.

 

Ocorre que à altura do lançamento da obra, o mito de Ngungunhane era reelaborado pelo governo moçambicano de partido único dirigido pela FRELIMO. Ngungunhane era então eleito um herói pátrio moçambicano, pai da resistência ao colonialismo português, modelo de bravura para uma luta contínua. Essa reelaboração do mito pela FRELIMO, com efeito, invertia o sinal negativo imposto pela historiografia colonial portuguesa, que tinha definido Ngungunhane como um líder bestial e selvagem, cuja prisão seria necessária para a “pacificação” das terras portuguesas ao sul de Moçambique.

 

“O livro Ualalapi recentemente ganhou uma excelente edição brasileira, editada pela Nandyala, de Belo Horizonte, e inserido no catálogo da série Para ler África”.

 

A obra de Khosa, no entanto, apela justamente para a pluralidade de perspectivas históricas possíveis, desenhando um Ngungunhane no mínimo ambíguo: ao passo que era uma força política nativa de resistência, a obra não deixa de apontar para o fato de que ele também foi um dominador cruel, antes de tudo nguni que, para estabelecer seu poderio subjugou e dominou inúmeras outras populações. Ao realizar essa dubiedade estética, a obra de Khosa não deixa de problematizar as novas e autoritárias diretrizes assumidas pelos dirigentes do país a partir da independência, em 1975, que buscaram, desde o princípio, neutralizar e/ou eliminar as inúmeras diferenças culturais e pertenças “étnicas” das quais Moçambique se compõe. Nesse sentido, vale atentar particularmente para o discurso de Ngungunhane no momento de seu embarque para o exílio: composta num tom profético, revisando o tempo do seu poder e realizando previsões para o futuro, esse discurso de Ngungunhane acaba sendo um pequeno trecho que resume uma visão catastrófica da história daquele território.

 

Essa polissemia temporal proposta por Ualalapi acaba por articular uma dura crítica aos modelos políticos autoritários moçambicanos: seja no passado, por parte do Império de Gaza, e posteriormente, pelo etnocentrismo do colonialismo português; ou também naquele presente, pela centralização do poder e o projeto do “homem novo” moçambicano. Neste sentido, a ação das personagens abarca a questão não só de seus percursos históricos específicos, mas dá conta de como estes percursos pessoais estão inscritos numa dimensão muito maior, que será a própria história do país. A inscrição das personagens nesse cenário, portanto, implica numa espécie de revisão do passado (via Ngungunhane e via o colonialismo português), que acaba por potencializar as dimensões presentes e futuras (e já críticas) no que se refere à construção de um projeto de nação.

 

Vale lembrar que tudo isso se realiza na obra através de um projeto estético ambicioso: são inúmeros paratextos presentes em epígrafes e citações, colhidos em documentos históricos, provérbios, na Bíblia, e mais uma vasta constelação de origens. São também diversos narradores que vão se sucedendo no turno narrativo, muitas vezes se contrapondo, e até mesmo discutindo entre si a respeito de pontos específicos da história. É, em suma, uma polifonia composta por uma infinidade de vozes falando todas ao mesmo tempo, cada uma contando suas versões de uma história que, tanto no passado remoto quanto naquele presente, havia se fechado num discurso único, autoritário e centralizador. A obra depõe contra essa violência simbólica se utilizando de uma estética da pluralidade.

 

 

 

 

Importante obra da literatura africana de língua portuguesa, Ualalapi ganhou a pouco uma excelente edição brasileira pela Nandyala, de Belo Horizonte, inserido no catálogo da série Para ler África.  A edição é composta por um cuidadoso projeto gráfico que abusa das cores e semitons de preto e vermelho, o que situa o leitor no trágico clima de gravidade e catástrofe que percorre toda a obra. A capa extrai de um conhecido alto-relevo em bronze do Mestre Leopoldo de Almeida, exposto na Fortaleza de Maputo, uma terrível feição de revolta e ódio no rosto de um Nungunhane no momento de sua captura. Uma fonte adequada e bem situada na página torna o texto arejado para uma leitura fluente.

 

A ausência total de qualquer texto crítico a respeito da obra, por mais introdutório que fosse, faz com que o complexo texto literário seja facilmente legível somente a um público que já tenha se iniciado na literatura moçambicana. Não que o texto não seja capaz de falar por si, mas uma rápida introdução crítica explicitando o uso de inúmeros vocábulos de diversas línguas moçambicanas, bem como situando a obra no quadro geral da literatura moçambicana, serviria para evidenciar o enorme valor literário dessa obra para o público brasileiro, ironicamente tão distante do continente africano e suas dinâmicas culturais.

 

 

 

 

 

 

Ubirata Souza

UBIRATÃ SOUZA é mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH - USP).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.