fevereiro de 2015

NADA A TEMER, UM CONTO DE FLÁVIO VM COSTA

Flavio V. M. Costa

 

 

 

 

 

Diário do delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 114.

 

Houve um equívoco momento da minha vida em que passei a acreditar que apenas meu talento bastaria. Certo de possuir faculdades superiores declinei de uma miríade de chances de aperfeiçoar-me. Sentei o rabo na poltrona da mediocridade e julguei ser necessário apenas um ato de vontade, pelo qual me transformaria em um probo juiz; acabei delegado medíocre.

Estou afastado das minhas funções.

Antes de comandar um inquérito novamente, vegetarei por meses em afazeres administrativos naquele prédio da Piedade, naquela mesa pequena, naquela sala pequena, onde se eu esticar o braço encosto na porta, sob aquela iluminação de puteiro.

Pelo menos poderei dizer que fiz algo pela causa. Creio que Abílio concordaria.

 

Trechos do Termo Depoimento da Senhora Célia Souza ao delegado Mariano Miranda, no dia 20/06/2013, realizado no Complexo Policial dos Barris, Avenida Vale dos Barris s/n.

 

Que a depoente achou que o senhor Abílio Farias era a cara do cantor Emílio Santiago, quando o viu pela primeira vez; que ele disse que não veio ensinar batuque para nossas crianças; que ele disse que Salvador precisava de médicos, tradutores, engenheiros, jornalistas, químicos, dentistas, filósofos, advogados, e um monte de outras profissões, e que esses profissionais tinham que ser homens negros e mulheres negras; que ele iria ensinar português e matemática e ia chamar os amigos dele para ensinar outras coisas, como ciências e história da África; que normalmente o senhor Abílio Farias era muito simples no seu vestir, usava calça jeans e camisa de botão, sempre limpa e bem passada, sapato social preto; que ele disse que se tivesse alguma criança que soubesse batucar seria bom porque assim ele aprenderia alguma coisa também, e que todo mundo riu quando ele disse isso; que as crianças gostavam muito dele; que a depoente nunca soube que o senhor Abílio Farias tivesse desavenças; que ele tinha cara de brabo, mas sempre foi muito educado com todo mundo; que toda sexta-feira ele arranjava um ônibus e as crianças iam comer acarajé no Rio Vermelho; que a depoente nunca soube nada sobre a presença de comissários de menores no bairro; que o senhor Abílio Farias não suportava falta de respeito; que o senhor Abílio Farias nunca mexeu com o pessoal do movimento e o pessoal do movimento nunca mexeu com ele; que ele disse que era um homem antigo e não queria ninguém de brinco nem de cabelo alisado nem pintado; que ele disse que só a mãe dele usava cabelo de escova, mas que ele não discutia com a mãe, que afinal orelha não passa a cabeça; que o senhor Abílio Farias disse que a gente nunca pode se esquecer de onde veio; que a polícia militar também não mexia com ele; que a depoente nunca vai se esquecer dessa primeira reunião com os pais, na associação do bairro de Alto de Coutos; que a depoente nunca vai esquecer quando o senhor Abílio Farias disse que o prédio da escola estadual foi construído num formato de caixote e parecia um presídio, cheio de grades; que ele disse que essa era uma das formas dos donos do poder usam para acabar com nossa autoestima; que a depoente nunca perguntou para ele quem são os donos do poder, mas que ela acha que ele devia estar falando dos políticos; que a depoente se lembrava que a sala era mesmo muito abafada e todo mundo estava suado; que o senhor Abílio Farias disse que a gente, os pais, não deve ter vergonha de não ter estudado; que ninguém se conformava com o que aconteceu (…)

Nada mais havendo, mandou a Autoridade Policial que se encerrasse o presente termo que, lido e achado conforme, vai devidamente assinado.

 

Papel com brasão da Secretaria da Segurança Pública da Bahia, sem data assinalada encontrado no depósito da sede da Polícia Civil, na Piedade.

 

Tópicos do inquérito: os comissários de menores efetuavam prisões ilegais, andavam armados, apreendiam drogas, portavam distintos e filmavam ações para serem exibidas em programas policiais. Tudo com a conveniência do senhor juiz da Infância. Até um livro com os registros das ações eles possuíam, com papel de timbrado. Mas os adolescentes infratores não apareciam nas casas de acolhimento. O juiz concedia liberdade aos adolescentes infratores, e estes desapareciam no mesmo dia ou pouco tempo depois. A droga e o armamento apreendidos, idem.

 

14/06/2013, às 2h43: Hotel Libidus, Rua Gamboa de Cima, 61.

 

– Sou amigo da vítima, receio que não tenha objetividade…

– Deixe de onda, Mariano. Você não trabalha para Scotland Yard nem para o FBI. Nem mesmo para Federal… Você trabalha para mim.

– Só estou dizendo que não é conveniente.

– Sobre a conveniência quem decide sou eu. Seu amigo dava um trabalho do cão. Morto vai ser pior ainda… todo mundo vai pressionar, tirar lasquinha da gente, imprensa e esse povo insuportável dos direitos humanos. Então eu quero uma resposta rápida, mas não tão rápida que desconfiem… de qualquer forma, dê os seus pulos, arranje um culpado.

– Parece um crime passional…

– Mesmo? Não tenha tanta pressa, garotinho. Seu amigo estava atrás daqueles comissários da vara da infância. Parece que tinha uns vídeos e papéis…

– Eu não sabia.

 

26/11/2002, às 22h37: Bar O Cravinho, Terreiro de Jesus, 3:

 

– A verdade, Mariano, é que não precisamos de negros como você…

– Colé, velho? Que conversa errada é essa?

– Se doeu, corrente? Desculpe, mas você acha mesmo que pode fugir do que você é? Você se acha muito inteligente porque estuda Direito, então acha que não precisa dos outros, que existe só por si no mundo…

– Quem disse que eu fujo, bróder?

– Toda essa conversa mole é uma fuga.

– Então não presto e fujo porque, em sua opinião, eu me renego, por isso eu não estou militando como você, por isso não desfilo nos blocos dos ressentidos… e assim você cassa minha negritude. Por que eu não posso lutar do meu jeito?

– Eu não cassei nada. E onde você vê ressentimento, eu vejo luta por igualdade, reparação e justiça, e é uma luta sem trégua, e sem espaço para ironia, tergiversações e pseudo-heróis solitários. É uma luta coletiva. Então pessoas como você não servem porque se omitem, fingem que está tudo bem, enquanto buscam ganhos individuais.

– Hum… acho que essa conversa pede uma rodada de Senzala.

– Você se acha o engraçadão, né? Você não vê que nós dois somos a exceção naquele prédio da Graça? Que usam justamente nosso exemplo para justificar toda essa merda… A gente esteve hoje no Nina… quantos tinham essa mesma cor, quantos tinham nossa idade?

– Preciso falar obviedades? Eu posso lutar do meu jeito, Abílio. Quer saber? Eu não suporto é essa superioridade moral de vocês. Vocês não conversam, vocês discursam. Prefiro seguir sozinho.

 

TRANSCRIÇÃO DE GRAVAÇÃO FEITA ÀS 23h47, DO DIA 20/12/2013, DO PROGRAMA COMANDO NOTURNO, DA RÁDIO EXCELÊNCIA FM.

 

            Locutor Ernesto Macedo: Atenção, ouvintes! Matança! Três agentes da Infância foram brutalmente assassinados em Pernambués. E quem está lá, ao vivo, no rastro da notícia, é a nossa Luana Rios, a nossa repórter intimorata. O plantão é duro, Luana!

Repórter Luana Rios: O plantão é duro, Macedo! Duríssimo, queridos ouvintes! Estamos em Pernambués, um dos bairros mais populosos de Salvador, exatamente na rua Renato Cincurá, onde nesse momento impera o medo, Macedo.

Locutor Ernesto Macedo: Boa noite, Luana, minha colega, me confirme aí. Temos informações de que houve um tiroteio nessa localidade… o que você me conta, Luana?

Repórter Luana Rios: Boa noite, Macedo, boa noite, meus queridos ouvintes. Pois é, Macedo, exatamente. Uma chacina. Um massacre. Três agentes de proteção da infância e juventude foram assassinados a tiros. Exatamente nesse bar, onde nós estamos agora, Macedo e ouvintes, em um bar da Rua Renato Cincurá, no bairro de Pernambués, como eu já tinha dito… As vítimas são… deixe-me ler: Romero Cardoso, 33 anos, Jaime Gomide, 34, e Frederico Zingo, 43. De acordo com a Central de Telecomunicações da Polícia Militar, três homens encapuzados desceram de um carro preto, por volta das 22h, e entraram diretamente no bar e foram diretamente à mesa onde se encontravam os comissários de menores, que bebiam alegremente. Os homens encapuzados começaram a atirar na direção dos comissários, e somente nos comissários, que não tiveram tempo para reagir. E é um bar muito apertadinho, Macedo, botecão mesmo, teto abaixo e estava lotado, Macedo. E eles só atiraram nos comissários. Os três receberam vários tiros. Você sabe, Macedo, que comissário de menores é a antiga denominação dos atuais agentes de proteção…

Locutor Ernesto Macedo: Eu sei, eu sei. São voluntários, verdadeiros voluntários da paz em um país em que de menor tem licença para matar. Mas o que diz a polícia, Luana?

Repórter Luana Rios: Olhe, Macedo, nada foi dito oficialmente. O Departamento de Homicídios investiga o caso. Mas tudo indica que foi crime de mando. Pode ser… (TERMINA A GRAVAÇÃO)

 

21/10/2010, às 7h05: 1ª DP dos Barris, Avenida Vale dos Barris, s/n:

 

– Qual é a colheita de hoje?

– Doutor Mariano, teve uma queixa de maus tratos a idosos, a gente encaminhou para a especializada, teve outra de atentado violento ao pudor, o cara estava mostrando a rola e chamando as mulheres de gostosa num banco do Dique, é cada miséria… está aqui enjaulado o sacana, e tem uma denúncia de desaparecimento. Doutor Afonso pegou o caso, o relatório está aqui. Três pessoas: dois menores, 16 e 17 anos, e uma mulher, de 25 anos. Na noite de sexta-feira, eles saíram de um bar na Carlos Gomes em direção ao Dois de Julho, onde mora a mulher. E ninguém mais viu. Os nomes estão aqui, o de 17 tem passagem, furto de carro, mas os outros não têm. Foi um chororô da porra aqui. Mãe, pai, tio…

– Qual é a cor?

– Oi?

– Caralho, a cor da pele das vítimas!

– Ah, pelas fotos eu diria que pardos todos os três.

– De novo, né?

– Como assim, doutor?

– Dessa vez foram três. Bora brincar de chamar o pessoal da Homicídios.

20 CORPOS ENCONTRADOS EM MATAGAL NO CENTRO INDUSTRIAL DE ARATU, PORTAL SALVADOR NEWS, 21/01/2013

Por Alexandre Uchôa

 

Pelo menos 20 corpos ainda não identificados foram desenterrados, nesta segunda-feira (dia 21), das margens da rodovia que leva ao Centro Industrial de Aratu, nas proximidades da fábrica da Qboa, em Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador (RMS).

De acordo com a Polícia Militar, os cadáveres estavam em adiantado estado de decomposição, mas em alguns casos já é possível deduzir que as vítimas foram mortas a tiros, e depois desovadas às margens da estrada da CIA-ARATU. Os policiais militares chegaram ao local atráves de uma denúncia anônima e entraram imediatamente em contato com o Departamento de Polícia Técnica. O Departamento de Homicídios investiga o caso.

 

Diário do Delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 22.

 

Na época da universidade, eu levei uma amiga loira a uma reunião de estudantes negros. A reunião foi organizada por Abílio. Na saída, ele me puxa pelo braço. Você está de sacanagem? Colé a sua, irmão? Provocação gratuita. Eu me afasto, mas antes grito: eu sou independente, porra! Abílio volta a me segurar. Você não pode fugir de quem você é, Mariano, você pode até ter vergonha, mas fugir não pode. Você também tem sua responsabilidade. Quem disse que tenho vergonha, cara? Eu não sou só ressentido, já te disse, é só isso, não acho que me devem nada, e não quero nada que não seja meu, e o que é meu eu conquisto. Eu sou independente, porra! Mariano, cada um de nós tem a responsabilidade… Se um homem tem vergonha do que é… ele de nada vale.

 

11/03/2013, às 16h37: Balaustrada da Praia do Porto da Barra.

 

– Não posso entrar no mar, Mariano.

– Não me diga que você…

– Isso mesmo. Não estou com as obrigações…

– Hum. Se não foi para curtir a praia, diga logo então.

– Acho que estão querendo me pegar.

– Como assim, rapaz? Quem quer te pegar?

– Sério. Não sei quem é. Ainda. Mas no último mês, desde que voltei para casa, já vi umas três vezes os mesmos caras rondando o meu prédio.

– Vou ver isso, não se preocupe. Mas pode ser que eles estejam atrás de outras pessoas, pode ser que nem estejam atrás de alguém.

– Não é paranoia!

– Não disse isso, porra. Relaxe, velho. Mas por que alguém iria querer te pegar?

– Estou investigando um pessoal da Vara da Infância…

 

Carta anônima enviada ao Delegado Mariano Miranda, sem data.

 

Senhor delegado,

 

Um amigo em comum me indicou o nome do senhor para ser destinatário dessa missiva-denúncia: o senhor deve investigar os comissários de menores de Salvador. Eles estão fazendo miséria em Salvador, só andam armados prendem os de menor e quem não é de menor, tiram dinheiro das famílias, traficam coca e as porras, e já mataram gente de menor também. São homens que não respeitam as leis, que a deturpam. Em Tancredo Neves, Lobato, Cajazeiras, tudo que é lugar, eles estão fazendo miséria. Em Alto de Coutos, também. O pessoal é tudo desovado na CIA-ARATU. Matam a tiros. Agem como se fossem da polícia. Na tevê dizem que são 20, né? Mas tenho para mim que são mais 40, 50, sei lá. Eles não enterravam só lá não. O senhor conhece a Estrada Velha do Aeroporto? Pois, então. Quem manda é um tal de Zingo. Acho que o senhor já pode começar por aí.

 

Esperançoso em sua rigorosa capacidade investigatória,

 

X.

 

14/06/2013, às 9h58: IML Nina Rodrigues, Avenida Centenário, s/n.

 

– Meu velho, vou te dizer uma coisa: estriparam seu amigo todo…

– É, eu vi. Julian, quero todos os exames… não economize nada, não importa se vai demorar.

– Meteram nele até o osso… Mais de quarenta facadas. Parece crime passional.

– É um truque, Julian. Somente um truque.

 

Diário do Delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 110.

 

Bem, irmão, fique com seus orixás. Ogum te protegia, não é mesmo? Eu sou um assimilado, Abílio. Eu creio no inferno católico. Lembrei que fez muito sol no dia do seu enterro. E o preto das nossas roupas aumentava o nosso incômodo. A verdade é que eu nunca quis carregar esse fardo e agora eu lembro que naquela sala da necropsia tinha você e um casal branco. Eis, uma justiça poética, concorda? Vencemos pelo menos uma!

Eu gostaria de voltar naquele tempo, irmão, em que éramos apenas nós dois contra uma Faculdade de Direito inteira, um duelo imaginário; em que escorraçamos o diretor de Economia porque ele tentou impedir as cotas, e no final ele tinha votado a favor; em que cada mulher conquistada era uma alegria inaudita e efêmera; em que sorríamos ao nos encontrar na rua, e discutíamos a teoria geral das coisas.

Bem, irmão, eu reflito sobre teus atos, tuas frases pomposas, tua sincera indignação. Mas as evidências apresentadas por você a respeito do meu caso são inconclusivas.

Sei quem te matou, Abílio, e farei o que é devido, e a única retribuição que peço é que você me recepcione nos portões do inferno.

Não ria, caralho!

Só assim eu saberei que não há nada a temer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Flavio V. M. Costa

FLÁVIO VM COSTA nasceu em Salvador (1983) e formou-se em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia. Mora em São Paulo. Publica contos no blog: contosemchamas.blogspot.com

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.