julho de 2018

CAROLINA MARIA DE JESUS: “MEU SONHO É ESCREVER”

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

 

Frases como “Se os pretos disserem que não gostam da humanidade, é com conhecimento de causa”, ou “Se as mulheres governassem não fariam um governo abstrato. O nosso governo seria concreto porque o mundo governado pelos homens está decepcionando”, ambas de autoria da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), revelam as características intelectuais e o pensamento de uma mulher não apenas atenta e crítica ao mundo que a cerca, mas também seu empoderamento enquanto mulher, negra, mãe e pobre, décadas antes da palavra virar uma espécie de mantra feminista ao redor do mundo.

 

Carolina, já em meados dos anos 1960, servia-se da sua própria razão, ou seja, era autônoma e, portanto, livre, e por meio de sua escrita simples e perfurante mostrou a quem quisesse ver, ler e ouvir, a potência da sua construção literária. Pujança que pode ser observada em obras como o best-seller Quarto de Despejo (1960), apenas para ficarmos em um único exemplo.

 

Por isso é arrebatador descobrir, por meio de arquivos até então desconhecidos da sua “poética de resíduos”, o modo particular com que edificava seus textos e tecia suas narrativas por meio dos manuscritos do espólio literário da autora. Arquivos estes que agora veem à tona de maneira substanciosa através das páginas do recém lançado livro Carolina Maria de Jesus – Meu sonho é escrever (2018 – Editora Ciclo Contínuo), organizado pela doutora em Teoria e História da Literatura pela Unicamp, Raffaella Fernandez.

 

Mais do que suas obras editadas e já “conhecidas” (não tanto quanto deveriam ser), ter acesso a produção primária* da autora é mais um legado imensurável que Carolina deixou. Especialmente para nós, homens negros, privilegiados perante as mulheres negras na sociedade machista em que vivemos. (Sim, há perceptíveis e bem-vindas diferenças no impacto que a leitura de Carolina causa em homens e mulheres).

 

Confesso que desconhecia os humorismos da autora, revelados após longa pesquisa de Fernandez no Arquivo Público Municipal de Sacramento, em Minas Gerais. E que alegria foi, mais uma vez, constatar a perspicácia da escrita de Carolina em contato estilos literários outros, da sua íntima e atenta relação com o mundo contemporâneo e a sua veia crítica para além dos diários.

 

Em entrevista, Raffaela Fernandez fala sobre a seleção dos textos e a organização do livro Carolina Maria de Jesus – Meu sonho é escrever, obra fundamental para conhecermos mais sobre essa inesquecível autora.

 

 

 

 

 

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O Menelick 2º Ato: Em 2014, você e a escritora Dinha já haviam organizado a publicação comemorativa do livro Onde estaes felicidade?, que trazia dois textos inéditos da escritora Carolina Maria de Jesus. Agora, em Carolina Maria de Jesus – Meu sonho e escrever, me parece que a densidade da sua pesquisa aflora de uma maneira mais intensa. Como foi descobrir estes contos inéditos de Carolina Maria de Jesus? Fale um pouco do processo de pesquisa que culminou, em um primeiro momento, na descoberta desses originais e, consequentemente, na publicação do livro.

Raffaella Fernandez: Estudar os manuscritos de Carolina foi um privilégio. E um acaso feliz que caiu nas minhas mãos. Eu costumo brincar que Carolina me escolheu. Porque 19 anos com uma mesma pessoa não brincadeira, não, né (sic). E toda vez que eu tento sair desta pesquisa alguma coisa me faz voltar a ela. Quando fui fazer Ciência Sociais, na Unesp, em Marília, em 1999, eu ganhei o livro Quarto de Despejo de um amigo, que havia encontrado esse livro no lixo da biblioteca onde ele trabalhava. Depois percebi, na leitura de algumas partes da obra, que ali havia poesia, literatura. E fiquei muito interessada em pesquisar. Então propus a pesquisa de Carolina a minha orientadora, que na época era a professora Célia Tolentino, que de pronto aceitou. E conforme eu fui conseguindo fomento da universidade, bolsas de estudos, enfim, eu pude dar continuidade a pesquisa.

 

Em 2001, tive a oportunidade de estar pela primeira vez Biblioteca Nacional. Na ocasião me emocionei muito diante dos diversos manuscritos que Carolina deixou e que não foram publicados. Mesmo diante de todo apelo que aparecia já no livro Quarto de Despejo. Então a partir daquele momento todo o meu empenho de pesquisa foi não só analisar Carolina enquanto um objeto de pesquisa, mas entender que sujeito era esse e de que maneira esse sujeito podia der visibilizado, digamos assim. Na época não se utilizava essa palavra, mas hoje eu posso pensar que é isso.

 

“…seu lugar de fala estava restrito ao Quarto de Despejo, a partir do momento em que ela quis demonstrar que ela era muita mais que a Carolina com o lenço na cabeça e o saco nas costas ela não foi aceita por aquela sociedade que se dizia desenvolvimentista e que dava inclusive oportunidade de voz aos pobres. Mas qual era o limite dessa oportunidade e dessa voz? Não era de uma estética, mas de uma ética que era colocada naquele momento. Uma ética populista”.

 

Continuando a pesquisa, acabei conhecendo todos os seus manuscritos, cheguei até a ir para a França negociar o envio dos cadernos dela que estavam lá. Inclusive parte dos cadernos que fizeram parte do livro Diário de Bititia. Então foi sempre isso, sempre uma luta junto com a família, especialmente junto a Vera Eunice, sua filha, de tentar fomentar essa obra. Tudo foi sempre muito difícil, mas a gente conseguiu e agora a idéia é organizarmos todo o material, e que se tenha tudo isso enquanto uma espécie de Fundo Carolina, num local onde as pessoas possam ter acesso a obra completa e, principalmente, que se publique toda a obra dela. Eu acho que devido a dificuldade eu não vou conseguir fazer isso sozinha, há necessidade de uma equipe para isso. Mas eu espero que um dia esse sonho seja realizado.

 

Onde Estas Felicidade? foi resultado de um primeiro esforço coletivo, junto com a escritora Dinha, da Fundação Palmares e, da Ciclo Contínuo Editorial. Na ocasião publicamos dois textos inéditos de Carolina, e o livro teve distribuição gratuita. Quer dizer, foi uma grande vitória. Depois tivemos a publicação, este ano, de Meu Sonho é Escrever, trata-se, na verdade de um sonho coletivo.

 

Graças a Ciclo Continuo Editorial nós tivemos a oportunidade de publicar Carolina para além do seu testemunho, para além de Quarto de Despejo.  Porque até então, todas as editoras grandes que me procuraram, sempre tiveram o interesse em fazer uma nova versão de Quarto de Despejo. Chegando ao ponto de me oferecerem uma proposta de uma edição de luxo de Quarto de Despejo, o que é uma tremenda contradição.

 

 

 

Arquivo Carolina Maria de Jesus.

 

 

OM2ATO: O senso de humor ácido e refinado de Carolina Maria de Jesus, presente no capitulo HUMORISMO, revela uma Carolina extremamente atualizada com o Brasil, e muito ciente da sua condição de mulher negra e pobre. E que chega a “brincar”, inclusive, com a própria situação de violência vivida pela mãe. Como foi para você descobrir essa Carolina irônica, dissimulada? Quantas mulheres habitavam Carolina Maria de Jesus?

RF: Nunca esqueço quando pela primeira vez li um trecho de um texto de Carolina, inclusive que está publicado em Meu Sonho é Escrever, onde Carolina faz uma relação entre a liberdade da escrita, o canto dos pássaros e a questão da palavra certa, da palavra bonita, dos dissabores da vida. Quando li este texto eu chorei, e até tive que recuar da mesa para a lágrima não cair no papel. E pensei da importância desta mulher, que faz a gente chorar, faz a gente rir, que trás na sua fala, que muitas vezes foi subjugada, e que muitas vezes foi tratada como mero antagonismo, mera ambigüidade, não foi possível perceber que muitas vezes Carolina estava fazendo uma fala dissimulada, para adentrar esse espaço da literatura, então esse humor ácido de Carolina vem como uma forma de apresentar uma visão de mundo transmutada através da imaginação. Então eu acho que o fundamental em Carolina é isso. É essa capacidade dela de colocar a gente nos mais variados lugares de sensação e de conseguir transmutar as suas dores em literatura, e conseguir fazer isso de maneira muito ardilosa, no sentido que ela consegue falar de coisas pesadas de maneira bela, e de coisas belas de maneira pesada. Então quando colocam que ela foi uma mulher que não discutiu a questão da negritude, eu discordo. Assim como também discordo quando tentam colocar Carolina como uma mulher submissa. Na verdade, ela está criticando essa condição em seus textos. A submissão que aparece nas mulheres de Carolina é uma submissão da qual ela nunca fez parte e por isso ela coloca de maneira explícita justamente para ironizá-la.

 

 

 

Arquivo Carolina Maria de Jesus.

 

 

OM2ATO: A produção literária que melhor conhecemos de Carolina Maria de Jesus, tais como “Quarto de Despejo” e “Casa de Alvenaria” possuem muitas correções e interferências gramaticais por parte dos editores? Até que ponto essa influência foi responsável por construir a estética literária da autora?

RF: As intrusões, os solapamentos e as modificações na obra literária de Carolina, que foram efetivadas por seu primeiro editor, Audálio Dantas, sem dúvida nenhuma fizeram dela uma escritora de diários. Colocaram Carolina como uma escritora de diários. Sendo recortado, como foi bem trabalhado na obra da professora Euzira Perpétua, todo o material literário dela teria sido fadado ao estigma de uma escrita testemunhal, graças a forma como foram elaborados os livros Quarto de Despejo e Diário de Bititita, que a própria Carolina não gostou do resultado. Então, eu não sei se posso afirmar se foi construída uma estética a partir daí, mas essa estética precisa ser elaborada a partir das obras literárias dela. Então, o que a gente pode dizer é que foi muita mais elaborada uma ética entorno desses dois livros do que uma estética. Uma ética no sentido de que foi objetivado ali a construção de livros de uma Carolina testemunhal, diarista e que teria chance de falar nesse espaço específico. Saindo dele ela já não serviria. Então o seu lugar de fala estava restrito, conforme conceito resgatado e desenvolvido pela filósofa Djamila Ribeiro, seu lugar de fala estava restrito ao Quarto de Despejo, a partir do momento em que ela quis demonstrar que ela era muita mais que a Carolina com o lenço na cabeça e o saco nas costas ela não foi aceita por aquela sociedade que se dizia desenvolvimentista e que dava inclusive oportunidade de voz aos pobres. Mas qual era o limite dessa oportunidade e dessa voz? Não era de uma estética, mas de uma ética que era colocada naquele momento. Uma ética populista.

 

 

 

Arquivo Carolina Maria de Jesus.

 

 

OM2ATO:  Em um dos trechos da nota que você publicou em “Carolina Maria de Jesus – Meu sonho e escrever”, você afirma que: “Carolina Maria de Jesus faz parte da fração do povo que, nas franjas da sociedade, produz arte e, por intermédio dela, expressa sua condição social”. No caso de Carolina, a condição social da autora é maior que a sua vocação literária? Ou, a condição social da autora foi fundamental para o seu sucesso editorial? Enquanto pesquisadora, quais as qualidades literárias você descobriu ao manter contato com os espólios da escritora e quais são essas qualidades?

RF: A condição social está atrelada a forma como ela produziu. Assim como nos podemos observar em Arthur Bispo do Rosário e outros artistas. A questão aqui é que os próprios conceitos de qualidade e vocação literária são conceitos muito canônicos. O mais interessante é pensar na perspectiva do impacto. Em que medida a obra de Carolina impacta os seus leitores? Primeiro, que ela é capaz de alcançar os leitores das mais variadas classes sociais. Segundo, além de poder alcançar as mais variadas classes sociais ela rompe justamente com essas idéias canônicas, mas sem deixar de ser canônica. Ela vai mesclando o culto com o não culto, digamos assim. O saber ilustrado com o outro saber. E isso que é interessante na obra dela.

 

 

 

Salvador Santisteban
Carolina de Jesus
Óleo sobre tela
S/d

 

 

 

 

OM2ATO: “Se os pretos disserem que não gostam da humanidade, é com conhecimento de causa”, diz Carolina Maria de Jesus, no Prólogo 1 do livro “Carolina Maria de Jesus – Meu sonho e escrever?”. A consciência racial da escritora era bem aguçada e definida, apesar da sua escrita ser conhecida pela vertente da sua condição social. Você acredita que, por meio do conhecido projeto político brasileiro que insiste em dizer que o país vive em uma democracia racial, a potência literária de Carolina que, muitas vezes revela o racismo existente no país, foi propositadamente classificada como uma literatura periférica, marginal, mas nunca, ou quase nunca, como uma literatura negra. Porque? E mais, caso fosse considerada uma literatura negra, ele teria tido o sucesso que teve?

RF: A grande questão que vem quando falamos da negritude, e do falar sobre o negro na obra de Carolina é nunca perder de vista que todos os livros publicados de Carolina não expuseram este lado dela. E evidentemente isso aparece no Diário de Bitita, no Quarto de Despejo, mas não numa vertente politizada.

 

 

“Eu disse: O meu sonho é escrever!
Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer…
É ir pro tanque lavar roupa”, Carolina Maria de Jesus.

 

 

No poema Os Feijões, por exemplo, que foi publicado na edição 14 da Revista O Menelick, e que foi um dos primeiros momentos que este texto foi apresentado ao público, é um texto onde Carolina está reivindicando o lugar do negro na universidade. Veja que não houve um interesse por parte das editoras de mostrar este lado. E apesar de todas as ambiguidades que existem, dado o local de onde ela escreve este texto e o próprio posicionamento dela de querer sair daquela situação. O que acontece é que não foi possível que Carolina fosse identificada como uma autora de literatura negra, mas ela nunca deixou de ser. Porque como o próprio escritor Oswaldo de Camargo certa vez falou em palestra, só o fato dela ser uma mulher negra já demarca ali uma literatura negra, uma mão negra que escreve, um corpo negro que fala. Ele mesmo lamenta muito não ter tido a oportunidade de ter conhecido estes textos de Carolina que abordam a questão da negritude. Isso porque ela não mostrou, então eles não tiveram acesso. Hoje certamente Carolina é colocada em vários lugares, seja na literatura marginal periférica, seja na literatura negra ou como um ponto de clivagem, quase que uma elipse, na história da literatura produzida pela autoria negra no Brasil, como demonstra o professor e sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva em seu livro A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000). E quanto mais descobrimos os escritos de Carolina, mais percebemos que ela pode ser muitas coisas, e é justamente isso o que chama a atenção, a sua multiplicidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Produção primária: Foram muitos os cortes e edições realizadas por editores nas mais conhecidas publicações da autora, entre elas “Quarto de Despejo” e “Cada de Alvenaria” (1961).

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.