setembro de 2011
ZUMBI: HOMEM, GUERREIRO, MITO
Renata Felinto
ilustração Kiko Dinucci
Zumbi dos Palmares é o nome que vêm à cabeça de qualquer brasileiro quando se pensa em população negra e na luta contra a opressão pautada na questão racial. Tornou-se sinônimo de liberdade, união e solidariedade. No imaginário popular ele foi uma espécie de Robin Hood brasileiro e negro: tirava dos senhores de engenho para dar aos irmãos negros ex-cativos. Como se seu papel à frente do quilombo mais importante das Américas, Palmares, fundado em 1590 na Serra da Barriga, fosse o de garantir que todos os bens fossem igualmente repartidos; de ser benevolente e justo com todos e, ao mesmo tempo, demonstrar uma atitude guerreira; ou que se sacrificava pelos demais, quase tendo a sua figura relacionada à de Cristo neste sentido do altruísmo. Ou seja, o grande salvador dos irmãos negros.
Pois bem, a pessoa física Zumbi dos Palmares difere, em alguns aspectos, da do mito fortalecido pela oralidade. Por exemplo, ele teve escravos e foi coroinha! Calma, tudo pode ser contextualizado… Ele é reconhecido mundialmente como herói e comparado aos maiores estrategistas bélicos da História (Napoleão Bonaparte e Alexandre, “O Grande”, dentre outros). Mas, talvez este mito tenha se sedimentado desta forma também porque, como população marginalizada, negligenciada e desprestigiada pelos poderes públicos, há pouquíssimas figuras negras registradas pela historiografia oficial brasileira que sejam referenciais para a construção de autoestimas positivas de crianças e jovens negros, futuros adultos, cidadãos. Não que elas não tenham existido, sabemos que existiram e que a escolha dos saberes que se ensinam é realizada com o objetivo de se manter a hegemonia de certo segmento étnico e socioeconômico dentro da sociedade brasileira a partir de pressupostos ideológicos e políticos. Para citar um exemplo, o líder da Revolta da Chibata (1910), João Candido (1880 – 1969), nem aparece citado na maioria dos livros escolares.
Mas, voltando a Zumbi, quem terá sido este homem?
FRANCISCO: A EDUCAÇÃO DO HOMEM
Era descendente de guerreiros imbangalas ou jagas, de Angola. Nasceu livre no ano de 1655 em um dos mocambos do Quilombo de Palmares que, estima-se, tenha tido 30 mil habitantes! Era a Confederação de Palmares, constituída por vários mocambos menores no atual Estado de Alagoas, então capitania de Pernambuco. Mantinha relações econômicas com as comunidades de seu entorno pautadas no escambo de sua produção de forma organizada. Tal capacidade de autogestão, autonomia e de estruturação socioeconômica, abalou as autoridades coloniais motivando, ao longo de sua existência, o envio de 66 expedições militares que objetivaram destruir a Confederação, entre os anos de 1596 e 1716.
Os pais de Zumbi são desconhecidos, porém, ainda criança foi capturado por soldados e entregue ao Padre Antonio Melo, com quem aprendeu a língua portuguesa, o latim e os preceitos do Catolicismo chegando, inclusive, a atuar como coroinha em algumas missas. Foi batizado com o nome católico de Francisco.
O SURGIMENTO DO GUERREIRO
Com 15 anos de idade, fugiu e retornou a Palmares, adotando o nome de Zumbi (Zambi, do termo “nzumbe”, do idioma africano quimbundo que significa fantasma, espectro, alma de pessoa falecida). Passou a trabalhar na liderança dos quilombolas. Palmares teve vários líderes, porém, os nomes que chegaram até a atualidade são o de Zumbi e de seu tio Ganga Zumba, cujas datas de nascimento e de morte deste último são desconhecidas. Foi seu tio que reconheceu seu talento bélico ao vê-lo em combate contra portugueses que tentavam dizimar o quilombo. Zumbi tinha então 20 anos de idade. É neste momento que sua figura destaca-se como a de um provável sucessor na liderança do quilombo.
Em 1675, Zumbi não aceita o acordo feito entre Ganga Zumba e Pedro de Almeida, então Governador Geral, no qual Palmares se submeteria à colônia e todos seus habitantes seriam alforriados. Zumbi não admitia que se tornassem livres somente os negros habitantes da Confederação, desejava a liberdade para todos. Neste impasse, Zumbi rompe com Ganga Zumba e assume a posição de líder por mais de uma década contando com o apoio da maioria dos quilombolas. Alguns historiadores especulam que Ganga Zumba teria sido assassinado por envenenamento. Em 1694, a expedição militar liderada pelo bandeirante paulista Domingos Jorge Velho (1641 – 1705), formada por dois mil homens, consegue dar início ao processo de destruição de Palmares. A corajosa resistência de Palmares durou 22 dias até o momento em que Zumbi se viu obrigado a recuar e se esconder. Foi capturado e morto em 20 de novembro de 1695, devido à traição de alguns companheiros quilombolas. Seu corpo foi mutilado e a cabeça enviada para o Recife, onde ficou exposta em praça pública.
O MITO
O dia 20 de novembro é reivindicado como dia da Consciência Negra, em contraponto à data de 13 de maio, dia da assinatura da Lei Aurea pela Princesa Isabel. Para o historiador Flávio Gomes, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a escolha do 20 de novembro foi muito mais do que uma simples oposição ao 13 de maio: “os movimentos sociais escolheram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por diferenças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibilidade do problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo sempre foi negado, dentro e fora do Brasil. Como se não existisse”.
O episódio histórico de Palmares e a biografia singular de Zumbi, reforçados pela oralidade popular vêm sendo rememorados e reverenciados pelas mais diversas expressões artísticas. As homenagens vão desde tema de música até nome de faculdade.
Nas artes visuais, em 1917, o artista nascido no Estado do Rio de Janeiro Antônio Parreiras (1890 – 1967), pinta um retrato de Zumbi dos Palmares como um sujeito altivo, como se estivesse em estado de vigilância, a observar o entorno. O pintor formado pela Academia Imperial de Belas Artes tinha visível interesse pelos temas históricos, e em 1914, pintou também a prisão de Tiradentes. A obra de Parreiras traz claras influências impressionistas a partir de suas largas e coloridas pinceladas por meio das quais, fica nítida a intenção do artista em destacar a figura de Zumbi, devido ao contraste entre as cores quentes na representação do personagem e oposição às frias para composição do fundo.
No cinema pode ser citado o filme “Quilombo” (1984), uma co-produção Brasil e França, dirigido por Cacá Diegues e baseado nos livros Ganga Zumba, de João Felício dos Santos e Palmare”, de Décio de Freitas. O filme tenta narrar como seria o cotidiano no Quilombo de Palmares e a relação entre Ganga Zumba e seu sobrinho Zumbi até o rompimento de ambos. Uma questão muito controversa é que as gravuras do artista francês Jean-Baptiste Debret (1768- 1848), foram uma das principais bases para a composição deste dia a dia (vestimentas, construções etc.). Entretanto, é sabido que as mesmas foram produzidas na primeira metade do século 19, na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, o contexto visualizado é bem diferente do que seria o real.
Nas artes cênicas, o espetáculo Arena conta Zumbi, (1965), montado em São Paulo e idealizado por Augusto Boal (1931 – 2009) e por Gianfrancesco Guarnieri (1934 – 2006) objetivava tratar da recente história do Brasil pós-golpe militar de 1964 e rememorar os heróis da nação. Nesta montagem eram oito atores em cena se revezando em vários papéis. A saga foi idealizada como uma narrativa, deste modo, mais de um ator interpretou a figura de Zumbi dos Palmares, exibindo uma técnica inovadora e eficaz. Edu Lobo (1943) assinou a trilha sonora do espetáculo.
Na literatura, Zumbi dos Palmares é uma referência muito presente no que diz respeito à evocação de um antepassado que representa o espírito da luta que é ainda travada cotidianamente por seus descendentes. Tanto ele quanto a ideia de África, ainda que idealizada, são basilares na construção de uma poética que localize e identifique o indivíduo negro, periférico e urbano. Não foram poucos os poetas que tiveram referência em seus feitos como o modernista Solano Trindade (1908 – 1974) com o poema Sou Negro (1961).
Na música, as referências ao líder são inúmeras. De Gilberto Gil ao nome da Banda que acompanhou Chico Science, Nação Zumbi. O MC Gaspar (grupo Z’África Brasil) compôs O Rei Zumbi, reverenciando este guerreiro. Gaspar que é galego, porém, periférico, traz em sua música a ideia do Zumbi Redentor que duela contra o conflito identitário e pela luta de classes e de cores na paulicéia desvairada. Abaixo seguem alguns versos desta música. Lembrando que como já diziam nossos ancestrais africanos, “a palavra tem poder”:
E com a morte de zumbi, poriam fim as lutas, mais não a escravidão.
Negros e brancos se perderam por entre o vermelho do sangue derramado em
Palmares
(…)
O deus negro não pode estar morto, ele é eterno.
Rezaremos pela sua salvação, pela sua ressurreição.
Zumbi vive, ele é eterno, e pro bem da nação, o rei de palmares irá voltar.
Salve o rei zumbi, salve…salve!