janeiro de 2021

THEREZA SANTOS: ENTRE MEMÓRIAS E AFETOS DE UMA SAUDOSA MALUNGA*

Gal Souza

 

 

 

 

 

 

 

fotos juan couto, vitor vint
e simone ricco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Manhã de um domingo de março de 2012, Rio de Janeiro, sol a pino. Estava em casa quando recebi uma ligação da casa de repouso Cliger, situada na rua Itabaiana, 82, no Grajaú. Era a Lidiane, assistente de enfermagem, ligando para avisar que a Thereza pediu para eu ir visitá-la e levar um lanche. 

 

No começo da tarde, passei na padaria Luar do Grajaú e pedi para o Zeca preparar um lanche de mortadela defumada com muçarela no pão francês, levemente passado na chapa. Carregava o lanche com culpa, porque não fazia parte do cardápio que o médico permitia em razão da diálise que Thereza fazia três vezes na semana. Mas quando a via comer eu ficava contente; ela fechava os olhos e lambia os lábios como se estivesse saboreando um manjar dos deuses e depois me agradecia pela cumplicidade em seu desatino.

 

 

 

Casa de Repouso Cliger, no Rio de Janeiro. 

 

 

 

Naquela tarde, além de me agradecer pelo lanche, Thereza me olhou profundamente e disse: “minha jornada está chegando ao fim”. Me deu um aperto no coração, e rebati a comunicação mudando imediatamente de assunto. Ela, porém, insistiu: “só estou esperando meu amigo chegar”. O amigo a que se referia era o dançarino e coreógrafo Ismael Ivo, que na época morava na Alemanha.

 

Conversamos mais um pouco, acabou o tempo da visita e fui embora triste, Thereza tinha se tornado uma grande amiga, gostava de encontrá-la aos domingos. Era incrível como ela se mantinha conectada aos acontecimentos, me atualizava das notícias do mundo, me impressionava com sua lucidez, inteligência, humor apurado e rabugice, que de tão aguda ficava engraçada.  

 

Poucos meses depois, mais precisamente no dia 7 de julho, Thereza aceitou comemorar seu aniversário, que eu organizei e para o qual convidei algumas amigas. Estavam lá Lelette Couto, Maria Ceiça, Clícea Maria, Simone Ricco e o jovem Juan, que fez o registro fotográfico dessa tarde. Na sala de visitas rimos muito, ouvimos e contamos histórias, cantamos parabéns. Thereza assoprou as velas, e antes de cortar o bolo a Maria Ceiça pediu pra ela fazer um pedido. Thereza disse: “eu quero sair daqui!” Silêncios de tristeza e impotência! 

 

 

 

07 de julho de 2012: sorrisos, silêncios de tristeza e impotência! 

 

 

 

No dia seguinte, ao encontrar a Maria Ceiça no trabalho, conversamos sobre a ideia de fazer um longa-metragem de ficção contando a vida de Thereza. A primeira cena sugerida por Ceiça foi: interna – tela preta e som da música “Parabéns pra você”. Abre lentamente com uma luz de vela de aniversário, foco no rosto da atriz, que diz: “eu quero sair daqui! Eu quero sair daqui! ” Depois seguiríamos o roteiro gravando várias sequências das muitas facetas da história da Thereza: como filósofa, professora de português e militante do PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné e do Cabo Verde) em Guiné-Bissau, como professora de teatro em Luanda e atuante como apoiadora do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), como atriz de televisão, cinema e teatro, como dramaturga e jurada de carnaval. Toda sua história foi atravessada por afirmação na luta antirracista, por igualdade de gênero e pelo fim das opressões seculares. Seguimos com esse projeto de que a atriz Maria Ceiça represente a Thereza Santos no cinema.

 

Alguns meses depois, a Thereza me pediu para entrevistá-la novamente, disse que contaria coisas que ainda não havia contado. A primeira entrevista que ela me concedeu foi em 2008 no seu antigo apartamento na rua das Palmeiras, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Foi uma conversa rápida porque ela estava com pressa, tinha compromisso na quadra da escola de samba Unidos do Peruche. Essa entrevista foi gravada pelo arte-educador Luís Grillo e um ex-aluno nosso, do curso de audiovisual na extinta ONG Eremim, o Douglas, mais conhecido como Debate.

 

Para mim, o pedido da Thereza era uma ordem. Reservei com a Nilcemar Nogueira, diretora do Museu do Samba – que então se chamava Centro Cultural Cartola –, a sala da exposição permanente sobre o samba, para fazer a gravação da entrevista; afinal a Thereza teve uma atuação importante na Mangueira. 

 

Como era comum acontecer, ao solicitar a entrevista, Thereza mobilizou um trabalho coletivo. Convidei o cineasta Wellington Darwin, que viajou de São Paulo até o Rio de Janeiro para gravar a entrevista. Simone Ricco, professora e escritora, colaborou com perguntas que dispararam memórias e fez uma foto que gosto muito. Esse dia guardo com muito carinho! 

 

 

 

Thereza, eu e a Estação Primeira de Mangueira

 

 

 

Foi emocionante chegar à Mangueira com a Thereza. Ao sair do táxi ela se deparou com a estátua do Cartola, ficou alegre e disse que ele merecia todas as homenagens e que se sentia orgulhosa por ter convivido com ele e ajudado na produção do bar que o cantor e compositor criou com sua grande companheira Dona Zica, o famoso ZiCartola, que funcionou entre os anos de 1963 e 1965 na rua da Carioca, 53.  

 

Dessa entrevista, quero destacar apenas o encontro de Thereza com a Mangueira e sua amizade com Nelson Cavaquinho, Cartola e Dona Zica. Nossa entrevistada estava emocionada por estar de volta ao pé do morro que sedia a escola de samba que a acolheu lá pelos idos de 1962. Como conta em sua autobiografia, tinha interesse em desenvolver um trabalho lá, ao que parece queria apoio do Partido Comunista Brasileiro, ao qual era filiada, mas percebia que o partido não demonstrava interesse em discutir a questão racial. Então, foi por conta própria e com apoio de amigos/as mangueirenses e moradores/as que criou o departamento cultural da escola, uma ala infantil que depois culminou na escola mirim Mangueira do Amanhã e também defendeu a escola como passista ao lado do artista Hélio Oiticica.

 

Na entrevista, Thereza falou que as noites no ZiCartola eram muito boas, as vezes Dona Zica a incumbia de ir acordar o Cartola de seu cochilo para se apresentar e receber convidados/as ilustres. Contou que certa noite, depois do fim do show, Nelson Cavaquinho disse que queria andar de barco. Então, com mais um amigo partiram para a Praça XV e entraram na barca rumo a Niterói. Lá, à beira da baía da Guanabara, tomaram algumas cervejas. Na volta, Nelson Cavaquinho pediu que o seguissem em sua companhia até ao morro do Vidigal na zona sul, onde sua companheira o aguardava. O Sol já tinha raiado há muito tempo e a hora do almoço se aproximava. Nelson, então, estendeu o convite para o almoço. Thereza disse que não queria dar trabalho, e ele retrucou: “que trabalho? A comida está pronta, olha aqui!” Tirou de baixo do braço um embrulho e quando abriu a embalagem era um frango assado! Thereza havia notado que aquele pacote o acompanhava desde o ZiCartola. Sorriu e terminou essa história dizendo que era típico do Nelson e fez silêncio saudoso por uns instantes.  

 

 

 

Thereza no Centro Cultural Cartola, no Rio de Janeiro.

 

 

 

Chegou dezembro. Era dia 19, eu estava trabalhando no arquivo de história da ciência do Museu de Astronomia e Ciências Afins, que fica no bairro de São Cristóvão. Meu telefone tocou, era o Ismael Ivo, que estava na casa de repouso onde Thereza morava há quase quatro anos. Me avisou com muito cuidado e carinho que a Thereza tinha encerrado sua jornada aqui na terra e que estava preparando tudo para o velório, que seria naquela tarde no Cemitério de São Francisco Xavier, mais conhecido como cemitério do Caju. Fiquei sem ação por uns minutos, depois avisei o Everaldo Frade, coordenador do setor, e fui para o velório. 

 

Recebi o corpo da minha amiga, minutos depois o Ismael Ivo chegou, nos apresentamos e ficamos por um tempo lembrando dos feitos da Thereza Santos e assistimos um trecho da peça teatral Olhos D’água, concebida por Ismael Ivo, na qual Thereza Santos fez sua última atuação nos palcos. A peça ficou em cartaz na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, em 2004. Orgulhoso, Ismael contou que foi um sucesso, provocou um encontro com três mulheres potentes para celebrar o futuro do Atlântico Negro. Estavam no palco contando suas histórias junto com Thereza, a yalorixá Mãe Beata e a dançarina Othella Dallas. 

 

“Toda sua história foi atravessada por afirmação na luta antirracista, por igualdade de gênero e pelo fim das opressões seculares”.

Ismael havia chegado ao Rio na segunda-feira, 17 de dezembro. Passou pela casa de repouso, pegou a Thereza e foram almoçar lá no restaurante Sobrenatural, em Santa Tereza, bairro onde nossa malunga nasceu e passou a primeira infância. Depois do almoço fizeram um passeio pela orla, conversaram sobre a vida, Ismael notou que ela estava reflexiva, emotiva e saudosa. Fez-lhe algumas recomendações, porém não imaginava que seria o último encontro. Ao deixá-la de volta à casa de repouso, combinou que retornaria na quarta-feira para outro passeio. Thereza se encantou na madrugada de quarta-feira, dia 19 de dezembro. Seu sepultamento foi no dia 20, acompanhada por poucas pessoas, lamentavelmente.

 

Conheci a Thereza através da Gevanilda Santos (Gê), comentei com ela que havia lido o livro Cartas a Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo, de Paulo Freire. A Gê me disse: “conheço uma pessoa que esteve lá, atuou na luta pela libertação e também viveu e trabalhou em Angola; vou te dar o contato”. Foi um presente! Nosso reencontro no Rio de Janeiro aconteceu através de um pedido da saudosa Sônia Leite, que me enviou um e-mail em setembro de 2009, informando que a Thereza estava no Rio, na casa do seu único filho (Jorge Omi) porque estava doente e não conseguia ficar sozinha em São Paulo. 

 

Na ocasião, a Sônia pediu que eu gravasse um depoimento da Thereza para exibir no evento em que esta seria homenageada. Tratava-se do projeto Palmas às Nossas Guerreiras, uma articulação de formação e ação política de mulheres negras ligadas ao Partido dos Trabalhadores e a Soweto Organização Negra. Liguei para o filho da Thereza e combinei a visita. Para minha surpresa e alegria éramos vizinhas: eu morava no Grajaú e a casa do Jorge Omi ficava no Engenho Novo, bairro onde a Thereza viveu parte de sua adolescência. 

 

Três anos depois de sua partida, em 22 de agosto de 2015, idealizei a homenagem Malunga Thereza Santos, realizada no auditório da Ação Educativa. A celebração integrou a 5ª edição do Encontro Estéticas das Periferias, sob a coordenação de Eleilson Leite. Reunimos no palco a atriz Nádia Bittencourt e o ator William Simplício, para a leitura dramatizada da peça E Agora Falamos Nós, com a direção de Lucélia Sérgio. Ismael Ivo apresentou o solo Ode ao Rei do Harlem, de Frederico Garcia Lorca, que havia sido dirigido por Thereza e criado para um evento em que ambos participaram, na cidade de Nova York. Encerramos a noite com uma conversa entre Gevanilda, Ismael e eu para rememorar as lutas e a vida da saudosa Malunga. 

 

“Sua trajetória como intelectual negra mesclou ação e pensamento sobre liberdade dos povos negros no Brasil e na África, nos legando a ideia de que a luta é internacional”. 

Foi uma alegria imensa ver o auditório lotado e ao final do evento conhecer a Ester Vargem e reencontrar a Vanderli Salatiel. Ambas integraram o elenco que estreou a primeira temporada da peça E Agora Falamos, em 1971. Também estavam presentes alguns atores que participaram da retomada da peça reescrita por Thereza Santos, após a morte do coautor Eduardo de Oliveira e Oliveira, na década de 1980.     

 

A menina carioca nascida Jaci dos Santos em 7 de julho de 1938 transformou-se na malunga Thereza Santos, lutadora incansável pela liberdade aqui e além-mar. Como outras militantes de sua geração, abriu caminhos para mulheres negras contemporâneas, que como produtoras de conhecimento compreenderam e incorporaram a valorização dos saberes e legados africanos. Sua trajetória como intelectual negra mesclou ação e pensamento sobre liberdade dos povos negros no Brasil e na África, nos legando a ideia de que a luta é internacional. 

 

O que aprendemos com Thereza Santos, portanto, é que as ações coletivas são condição para a autonomia, sua trajetória nos mostra que a arte é elemento formador, arma para denúncia e transformação. E Agora Falamos Nós anuncia a escuta necessária das falas e demandas negras, como um grito político, artístico e estético que já passou da hora de ser ouvido.

 

 

 

 

 

 

 

* Conteúdo originalmente produzido para o “IMS Quarentena – Programa Convida 2020”.

 

 

 

 

 

 

Gal Souza

GAL SOUZA é formada em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, atua como pesquisadora, produtora cultural e educadora.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.