janeiro de 2015
REVISÕES DAS EFEMÉRIDES NEGRAS NAS MEMÓRIAS E HISTÓRIA DO BRASIL
Maria Aparecida de Oliveira Lopes
Escrever para a revista O Menelick 2oAto é um ato político e de satisfação por saber que artistas, jornalistas, intelectuais, professores, enfim, que a equipe da revista, continuou o trabalho dos ativistas lá da antiga e promissora imprensa negra¹ e seus movimentos sociais.
O texto apresenta reflexões sobre as efemérides da História do Brasil. As efemérides se referem as datas de acontecimentos que envolvem a população negra no Brasil. No livro Dicionário de Datas da História do Brasil, organizado por Circe Bittencourt, encontram-se alguns textos que fazem referência as efemérides negras. No sumário é possível encontrar um texto que consagra a efeméride do Levante dos Malês em Salvador (25 de janeiro de 1835), escrito por João José Reis. Outro referente a Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro de 1980) de Jaime Almeida. Mais um sobre o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) de Marco Antonio de Oliveira. E por fim, aquele da Revolta da Chibata (22 de novembro de 1910) de Regina Behar. Faltou neste Dicionário de Datas da Historia do Brasil uma análise do dia 28 de setembro de 1871, Lei do Ventre Livre, para não falar ainda da Lei de Sexagenário, o dia 21 de março, entre outras.
Nesta mesma obra consta o capítulo destinado a efeméride 13 de maio de 1888. Nele Antonia Terra informa que o 13 de maio estabeleceu a abolição, quando a população invadiu as ruas comemorando o fim de um sistema de trabalho de três séculos e meio. Na ocasião, quase oitocentos mil brasileiros foram libertados. Nos anos seguintes, ex-escravos retomaram as comemorações. E em, 1890, o governo republicano instituiu o 13 de maio como o dia da Fraternidade entre os brasileiros. O sistema escravista foi introduzido na América pelos europeus. Envolveu populações indígenas e, a partir de 1532, africanos. Em 1758, o marques de Pombal proibiu a submissão dos índios, e a escravidão africana permaneceu lucrativa para senhores da terra, comerciantes brasileiros e europeus por mais de 130 anos. A produção das grandes propriedades de açúcar, da exploração do ouro, no trabalho e na produção do café, era baseada na mão de obra escrava. Calcula-se que o Brasil tenha recebido entre quatro a seis milhões de africanos escravizados. O país foi o último país da América a acabar com a escravidão.
O objetivo aqui, na revista O Menelick 2o Ato não é apenas discutir as leis de libertação mas como, sobretudo, as vivências das populações negras instigaram revisões pela memória e pela História desta efeméride, que logo deixou de ser festejada de modo unânime. Parte das novas gerações passou a encarar a lei apenas como uma conquista jurídica, já que a população negra permaneceu em uma situação desprivilegiada e com o encargo de lutar contra a discriminação racial. Neste espaço vislumbra-se ainda uma leitura das revisões pela memória e pela história de outras efemérides negras, além do 13 de maio.
Na luta contra o racismo, muitas críticas recaíram sobre o 13 de maio, entendida como uma data oficial que atribuía à princesa Isabel o papel de redentora, sem mencionar a resistência e a luta dos próprios escravos contra o cativeiro. Como contraponto, os movimentos sociais negros e as organizações, no século 20, criaram outras datas, simbolizando outras lutas e memórias. O 13 de maio passou a ser o Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo no Brasil; o 20 de novembro, data do assassinato de Zumbi, o Dia da Consciência Negra; e o 7 de julho o Dia Nacional Contra o Racismo, o dia 21 de março, o Dia Internacional da Luta Contra o Racismo.
Antes dos anos 30, alguns setores da sociedade paulista festejavam o 13 de maio de 1888. Algumas comemorações de caráter festivo foram registradas pela historiadora Eloíza Silva, em sua dissertação sobre a história de vida das mulheres das escolas de samba paulistanas. Ela contou que a necessidade de criar locais de lazer para a população negra nos finais de semana ou em datas comemorativas como o 13 de maio. A casa da Tia Olímpia (uma espécie de lenda feminina do samba paulistano) na rua Anhanguera, no bairro da Barra Funda, foi um dos locais de comemoração. A festa, realizada em um terreno ao lado da sua casa, atraia parentes e amigos que realizavam rodas de samba e batuques. O mesmo acontecia na casa do Zé Soldado, morador do bairro do Jabaquara, na cidade de Santos, onde se registrara um populoso quilombo no período que precedeu a abolição. Havia também a festa de Santa Cruz, realizada no dia 13 de maio na Baixada do Glicério, que transcorria ao som de instrumentos musicais, principalmente os de percussão como o bumbo e a zabumba. Por fim, Eloíza Silva concluiu que, embora esses eventos tivessem contribuído diretamente para a organização do carnaval negro da cidade, poucas foram as instituições formadas com esta finalidade.
A ausência de cidadania não impediu que surgissem estratégias de sobrevivência em lugares onde os negros construíram seus próprios territórios de liberdade. Estes espaços se transformaram em lugares privilegiados de elaboração e preservação da memória negra e, consequentemente, de luta pelo reconhecimento social. Em várias regiões do país surgiram associações, entidades e clubes formados pela população negra, como O Clube Treze de Maio de Botucatu. As comunidades dos descendentes de africanos praticavam o congo, o jongo ou o batuque de umbigada para celebrar a liberdade e recordar os tristes tempos dos cativeiros. Por meio dos espaços de socialização é possível pensar a formação da identidade negra e o modo como o treze de maio de 1888 marcou a formação identitária, sendo preservado ou reinterpretado.
Nesta direção, outra obra instigante é a dissertação de Ana Rita Araujo Machado, que analisa a construção da memória social sobre as comemorações do 13 de maio. A autora estudou a Festa do Bembé do Largo do Mercado, que acontece na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano ao problematizar as lembranças da comunidade que realiza a festa, os adeptos dos candomblés, capoeiristas e participantes de maculelê.
Bembé é uma festa realizada pelas comunidades de terreiro e começou em 1889, quando João de Obá – “pai de terreiro” – reuniu filhos e filhas de santo e armou um barracão de pindoba, enfeitando-o com bandeirolas para comemorar o aniversário da abolição. Esta atitude de João de Obá refletia os costumes dos pescadores em ofertarem flores e perfumes para a Mãe D’água. Eles iam de canoas e saveiros enfeitados até São Bento das Lajes para levar presentes para as “águas”. Esse ritual era acompanhado por toques de atabaques. Chegando ao encontro entre o rio e o mar, um pescador experiente mergulhava para entregar as oferendas.
Os adeptos dos terreiros de candomblés continuaram realizando os festejos do Bembé. Nas décadas de 1920 e 1930, alguns assumiram as realizações dos preceitos, a exemplo do Ogã Mininho. Neste período, os preceitos e rituais eram mantidos em sigilo e somente as pessoas ligadas ao culto, a exemplo de Toninho do peixe, sabiam dos fundamentos que caracterizavam o Bembé. Em razão da repressão pela qual passavam os candomblés baianos, na década de 1950, era necessário pedir autorização policial para a realização da festa, que sempre era concedida. Entretanto, em 1956, um delegado da cidade proibiu a realização dos festejos do 13 de maio. Segundo depoimento dos moradores da cidade, ele e sua família sofreram um acidente automobilístico, sendo este episódio atribuído ao ato de proibição da festa. Em 1958, aconteceu a explosão de duas barracas de fogos no largo do mercado, na véspera de São João, fato que também foi associado pelos adeptos ao ato de “proibição”.
Para Ana Rita Araujo o Bembé não carrega a lógica do catolicismo popular, a exemplo da festa de nossa Senhora da Purificação que acontece no dia 2 de fevereiro, com procissão, missa e cortejo da santa até a Igreja da Matriz. O Bembé caracteriza-se pelos diversos rituais que compreendem o universo do culto aos orixás, sendo que o calendário da festa coincide com o da semana do dia 13 de maio. Nos primeiros dias que antecedem essa data, começam as cerimônias de preparação do Bembé. Os ritos destinados aos ancestrais e a Exu são realizados nas vias que dão acesso à cidade. O objetivo desse ritual é evitar complicações, propiciar bons acontecimentos e “abrir caminhos”. Essa cerimônia é restrita, pois as pessoas que dela participam são ligadas aos terreiros e se responsabilizam pela organização da festa. Há uma sequência na realização desses ritos e o de Iemanjá é um dos mais significativos, uma vez que a festa é em sua homenagem, mas também ocorrem oferendas para Oxum.
Iemanjá é uma divindade que concretiza, segundo a lógica cosmológica, um dos princípios geradores da vida, o princípio simbolizado pela água que é um dos aspectos de manifestação do poder vital. Logo, se relaciona a Iemanjá, a gestação existencial da fertilidade. No Brasil, seu culto está associado às águas salgadas e é visto como princípio feminino que dá origem às diferentes formas de existência, bem como é associado à maternidade.
O evento histórico como o 13 de maio é importante para a compreensão da cultura negra brasileira, porque demonstra que os orixás, voduns ou inquices não são entidades apenas religiosas, mas principalmente suportes simbólicos, isto é, condutores de regras de trocas sociais. Em outras palavras, festejar o 13 de maio, nos termos da tradição das comunidades de terreiro, implica aderir a uma lógica de pensamento, um sistema capaz de responder aos sentidos da existência do grupo e assegurar a identidade étnico-cultural.
Existe uma infinidade de práticas e reflexões sobre o 13 de maio. Tais reflexões sobre o 13 de maio podem ser aprofundadas no capítulo “Narrativas e significados das efemérides para a História do Brasil”, presente no livro O movimento negro, sob os significados da justiça social organizado por Amauri Pereira e Joselina da Silva.
Para finalizar, interessa dizer que a data que mais se contrapõe ao treze de maio é o 20 de novembro. Este debate esteve e está presente nas comemorações das organizações negras, na mídia e nos discurso de outros setores da sociedade. Destaco aqui as ideias de Oliveira Silveira – referentes ao 20 de novembro – pela importância do seu pensamento e atuação política. No livro, Histórias do Movimento Negro no Brasil, há uma passagem em que Oliveira Silveira narra que a ideia de sobrepor o dia 20 de novembro ao 13 de maio surgiu na efervescência das organizações negras no Rio Grande do Sul. Houve algumas apresentações de teatro na década de 1960, como a peça Orfeu da Conceição, uma montagem feita por dois grupos negros: a Sociedade Aurora, chamado Teatro Novo Floresta Aurora, e o GTM, Grupo de Teatro Marciliense. Estes grupos se uniram e fizeram uma peça, que foi apresentada no Teatro São Pedro de Porto Alegre. A partir do contato com estas pessoas, como Antonio Carlos Cortes, Oliveira Silveira passou a participar de uma associação informal que se encontrava na rua da Praia e ali conversaram sobre questões da negritude. Para Oliveira Silveira, Jorge Antonio dos Santos, outro ativista lá do sul, era um dos principais críticos do 13 de maio.
Conforme explicou Silveira a reivindicação pelo 20 de novembro foi anunciada em jornal, rádio e televisão. Considerou que a partir deste período as manifestações do 20 de novembro começaram a ganhar visibilidade nacional. Percebe-se, então, que uma parte dos ativistas negros transformaram zumbi em um símbolo da cultura negra e ainda em um personagem síntese da escravidão. Numa versão histórica engajada, evocar zumbi como símbolo significava pensar o negro como agente da sua própria história, como responsável pela conquista da sua própria liberdade. Como apontou Décio Freitas, no livro Palmares, a guerra dos escravos, essa revolta ocupa um lugar especial na história. A conquista desse lugar se deve ao fato desta revolta ter sido a primeira e a de maior envergadura. A rebelião projetou-se como o acontecimento dominante da história pernambucana e como um dos mais sérios problemas que a administração colonial lusitana teve que enfrentar no Brasil. Inúmeras vezes a extinção de Palmares assumiu importância considerável a da expulsão dos holandeses, tanto que mais de 30 expedições marcharam contra o quilombo. Este pesquisador admite que, na história da América, esta rebelião só perdeu em importância para a revolta escrava do Haiti.
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PARA LER
Dicionário de datas da História do Brasil
Circe Bittencourt
Editora Contexto, 2007
História e memória do negro: efemérides, símbolos e identidade.
Maria Aparecida de Oliveira Lopes
Tese do programa de História da Unesp, 2007.
Bembe do Largo do Mercado: Memória sobre o 13 de maio
Ana Rita Araújo Machado
Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos, UFBA, 2009.
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NOTA DE RODAPÉ
¹IMPRENSA NEGRA. Tratam-se de pequenas publicações das associações dançantes, culturais, recreativas e políticas que surgiram em 1904 no meio negro. As associações congregavam os membros dos clubes de negros, que se reuniam normalmente aos finais de semana e serviam de convívio para as famílias negras. Elas promoviam bailes, cursos de música, literatura, culinária, beleza, alfabetização, jogos, palestras sobre cultura negra, etc. Essa imprensa teve por objetivo dar voz e espaço aos negros, o que era raro nos círculos das elites e da cultura letrada da cidade. Nestas folhas os ativistas negros apresentavam seus interesses, projetos e concepções.