outubro de 2015
MATEUS PERNAMBUCANO, PAI FRANCISCO MARANHENSE E BASTIÃO MINEIRO: PALHAÇOS DA CARA PRETA, PARENTES DE MACUNAÍMA
Andre Paula Bueno
ilustração Danilo Pêra
“Palhaços da cara preta” de Boi e Folia, sejam mascarados ou pintados, assumem em suas narrativas um papel recorrente de braços direitos de um patrão. De início são apresentados como pacatos e ignorantes, inclusive por seu modo de falar matuto ou caipira, de referência rural, mas eles vêm a se desenvolver nos enredos como anti-heróis cômicos. O fato de serem mascarados ou pintados de preto ou outra cor adquire uma consistência própria no Brasil, como no continente americano, devido ao lugar social que se imputou aos “povos de cor”: um lugar de invisibilidade, negação de valor e não-reconhecimento, apesar da necessidade estrutural de sua força de trabalho para todo tipo de produção. Se o trabalho escravo de importação africana e de aprisionamento de índios foi uma constante nas Américas, no Brasil ele foi proibido por último, de tão arraigado. O vasto contingente de africanos e de seus descendentes no Brasil não era grupo minoritário, e somado ainda à descendência com os povos da terra e com os brancos pobres, resultava num maciço cultural que dava as caras do país, verdade inegável. O que a República engendrou foi um plano absurdo de branquear a população e assim permitir o seu desenvolvimento potencial, como acreditavam muitos governantes e teóricos da eugenia. Daí os estímulos às imigrações de trabalhadores de etnias brancas, logo após a Abolição.
E o que as “brincadeiras” das danças dramáticas traziam e trazem, com esses anti-heróis pintados ou mascarados, são comédias de contestação dos lugares sociais e dos papéis reservados à classe dominante e aos brancos. Isso já acontecia nos séculos do trabalho escravo, quando o preto astuto da trama podia fazer rir até aos seus próprios senhores brancos. Essa representação tomou, acredito, um protesto de maior veemência após a Abolição. Porque a partir daí esses trabalhadores escravos deixavam de contar com aquele que era o lugar mais subalterno e mais populoso da sociedade e passavam a contar com, oficialmente, lugar nenhum. Continuava rara e necessária a oportunidade de se manifestar em eventos públicos.
É nesse contexto histórico que Mário de Andrade vem encontrar as danças dramáticas e esses personagens pretos ou “de cor”. Talvez esses outros “heróis de nossa gente”, que aparentam também possuir “nenhum caráter”, tenham alimentado não a gênese primeira do Macunaíma literário, mas sim a gestação de um Mário maduro. E é como se o seu Macunaíma, já um filho amalgamado e parido, passasse a cobrar do autor o estudo sobre seus “parentes” e até o rigor científico evitado pelas personas literárias que ele desenvolveu em tantas frentes.
Se a obra de fôlego que ele projetou para a cultura popular, Na Pancada do Ganzá, não chegou a ficar pronta em vida, apareceu nas últimas décadas tudo o que ele preparou nesse sentido: as Danças Dramáticas do Brasil, as Melodias do Boi, Os Cocos, a Vida do Cantador e outros.
REFERÊNCIAS DE MÁRIO DE ANDRADE E DE TINHORÃO A VELUDO, O PALHAÇO PRETO
O Macunaíma foi escrito de uma vez, em sua primeira versão, naquela chácara do Tio Pio, em Araraquara-SP. E por essa mesma época Mário coletou, entre a população de Araraquara, história e melodia do que ele chamou “Romance do Veludo” e “Lundu do Escravo”, que publicou em 1928 na Revista de Antropofagia. Desentranhou assim uma presença anterior que ainda ressoava: Veludo, “o palhaço preto cantador, equilibrista, saltador, um faz-tudo muito apreciado…”, visto no circo por umas moças da cidade vários anos antes. O que é marcante no “Lundu do Escravo” é o registro musical de versos que o palhaço cantava interpretando um negro cativo. O nome desse personagem cativo, na cantoria do Lundu, era Pai Francisco, o mesmo nome do personagem negro principal dos Bumba-meu-bois do Maranhão, Pará e Amazonas, até hoje. Acredito que existe aí o registro de um elo que ligava nos circos a referência da cultura popular à musicalidade modernizante do início do século XX, e esse elo se perdeu como uma história meio triste, substituída por novas histórias e modas de época. A temática da escravidão saía do cenário paulatinamente, dando lugar a artes de apoio tecnológico, que se firmavam com a filmagem cinematográfica, a radiodifusão e a gravação de discos.
(…)José Ramos Tinhorão (2001) logra contextualizar o achado de Mário de Andrade, numa perspectiva histórica que faz entender melhor o “Lundu do Escravo”. Afirma em nota, inclusive, que existiu um registro fonográfico com a versão “Preto Forro Alegre” do mesmo lundu:
“… as primeiras e ainda lacunosas informações sobre as origens do circo no Brasil confirmam, se não a influência direta desse palhaço argentino Pepino 88, dentro da “revolução nos circos sul-americanos”, ao menos uma inegável coincidência de datas: segundo depoimento a Mário de Andrade em 1928, “um senhor velhusco”, em suas lembranças de menino em São Paulo, por volta de 1876, recordava-se do palhaço Antoninho Corrreia, do Circo Casali cantando com a cara pintada de preto (a exemplo do black-face dos minstrels norte-americanos) o “Lundu do Escravo”.
Essa variante brasileira da imitação da música de ritmo africano-crioulo por brancos, tal como acontecia nos Estados Unidos desde fins de século XVIII, não se limitava porém a atestar apenas a admiração das “famílias” pela arte dos negros, mas atendia ainda a uma certa bonomia patriarcal, que consistia em ceder da severidade senhorial para divertir-se às vezes à custa dos seus “pretinhos”. Um magnífico exemplo dessa disposição, aliás, seria fornecido pelo velho palhaço negro Benjamim de Oliveira (Pará de Minas, c. 1870 – Rio de Janeiro, 3/05/1954) na página única de um seu pretendido livro de memórias. Nessa página autógrafa – “mais tarde encontrada por Procópio Ferreira”, segundo informação do folheto O Circo, editado pelo Unibanco em 1976 -, Benjamim de Oliveira recordava ter assistido, na sua cidade do interior de Minas, ainda menino, por volta de 1880, as graças de um palhaço branco por nome Ricardo, pintado de negro, e a quem “os fazendeiros tinham o prazer em pedir ao palhaço que mexesse com as negras à bancada, que eram suas escravas”. Ao que acrescentava, arrematando o quadro tão gilberto-freyreano de harmonia social vigente no país:
‘Então, às vezes, o palhaço ia às bancadas mexer com as negras. Isso era um gozo para aquelas senhoras. E o palhaço Ricardo ficava satisfeitíssimo por ser bem acolhido por todos’”.
O EXEMPLO MARANHENSE E A ÊNFASE NA MÚSICA DE IDENTIDADE
O Bumba-meu-boi da tradição maranhense se liga a São João pela crença popular de que esse santo tinha um boizinho de estimação, manso e brincante. Foi emprestado a pedido de São Pedro e São Marçal para animar os festejos do 29 e 30 de junho, respectivamente datas destes santos, e acabou sendo sacrificado por pessoas que passavam fome, sem saber de sua natureza especial. Fazer um boizinho novo todo ano, de pano bordado, e movimentá-lo com toada cantada, percussão e dança foi a maneira de dar vida novamente ao novilho de São João. Foi assim que os maranhenses firmaram uma manifestação que conta no presente, na capital São Luís, com mais de 250 grupos, em estilos variados.
Somam-se colaborações de gente do bairro que conhece cada arte e ofício envolvido, do verso ao bordado, da percussão à cestaria, da costura à dança, da ladainha religiosa à toada apaixonada, do encouramento de pandeiros à receita de cozinha, da reciclagem de madeira à piada política, do transporte coletivo à sonorização. São habilidades diferenciadas que se tocam e se organizam para fazer surgir o Boi do ano, para que pelo 13 de junho do Santo Antonio aconteça o Ensaio Redondo e, na noite do 23, o Batizado do Boi, virando para a madrugada do 24 de junho de São João. A partir desse batizado o Boi sai brincando em comunidades vizinhas, arraiais de turismo, casas de família que têm promessa. “O Boi é o único sacrifício que São João entende e aceita”, como disse Sylvie Fougeray pesquisando Viana-MA.
PAI FRANCISCO E CATIRINA E A GESTAÇÃO DO FILHO
Pai Francisco e Catirina, nos Bois do Maranhão, têm como mote a gestação do filho, que os legitima em sua peripécia. Do trabalho na propriedade do Amo ao sequestro do touro reprodutor, vão evocar a luta para não perder o filho, de modo a diluir diferenças da realidade social, em favor de uma aproximação de fundo religioso com os temas do nascimento, vida e morte. Até o patamar existencial da finitude, da renovação cíclica de força vital. E de uma maneira caracterizada pela devoção a São João, na cultura popular de culto ao santo. Justamente a devoção a São João dá o amálgama que aproxima nos festejos ricos e pobres, suspensão temporária das diferenças de classe, com sua brincadeira de Bumba-boi na rua, sua música, dança e formas de participação.
As “matanças”, “comédias” e autos de Pai Francisco e Catirina vão deixando de ser vistos tantas vezes nos Bumba-bois de São Luís-MA.
E nem só do enredo da gestante que deseja a língua se fazia comédia. Marcos de Cecílio, do Boi da Liberdade, que deixou de atuar com a “careta” do Chico para tocar seu pandeiro na “brincadeira”, explicou o sentido das “matanças” que se faziam no interior. O Pai Francisco, logo ao chegar com sua turma de Bumba-boi, ia perguntar à dona da casa visitada qual foi a graça alcançada, qual o motivo de sua promessa a São João. Ele precisaria então, combinando com o ator da Catirina e outros, encenar de improviso uma comédia com metáforas e as mesmas linhas gerais do drama enfrentado e superado por aquela família. Só fazendo rir, chegando a fazer graça com a graça alcançada, é que eles completariam o sentido da “brincadeira” de boi para São João. O desafio era assim lançado para a encenação e sua audiência, que ao final poderia sentir coletivamente se atingiram a meta de satisfazer às pessoas e ao santo.
O EXEMPLO PERNAMBUCANO E A ÊNFASE NO TEATRO POLÍTICO
No norte de Pernambuco e na Paraíba, Zona da Mata e da cana, a “brincadeira” do Cavalo-Marinho é uma boa surpresa para quem venha hoje das grandes cidades: dança, música de rabeca e pandeiro e as toadas ligadas a quarenta personagens de comédia e drama, ou mais. Comparável ao Bumba-meu-boi presente em outros estados, aqui numa vertente ligeira e rica em máscaras, com situações de contestação da propriedade da terra, versos tradicionais e a aprendizagem pelos mais jovens. Esses artistas populares são trabalhadores da cana-de-açúcar que deixaram de morar nos engenhos, perdendo o uso da terra em torno dos grupos de casas à beira dos canaviais. Lá eles plantavam roçados pequenos nas entressafras do trabalho da cana, e subsistiam com seu inhame, feijão, milho, macaxeira… Mas a partir dos anos cinquenta as grandes Usinas compraram canaviais e engenhos, na exploração de toda a terra para a cana. Sem julgar lucrativo respeitar as leis de salário mínimo que surgiam, evitaram oferecer vínculo de trabalho, moradia e roçado de alimento. Nas safras passavam a pagar apenas empreitadas de diaristas, e estes homens, que realizaram as “brincadeiras” nos terreiros de engenhos por séculos, empobreceram ainda mais morando nas cidades. Hoje a brincadeira do Cavalo-Marinho quase só acontece do Natal ao dia de Reis – 6 de janeiro – ou em festa de santo padroeiro destas cidades, para apresentação a convite das prefeituras, com pouco incentivo.
Os personagens da brincadeira são o Capitão, os pretos Mateus e Bastião, o Soldado, o Empata-Samba, o Mané-do-Baile, os Galantes do Baile de São Gonçalo, o Varredor, o Pisa-Pilão, a Velha-do-Bambu e seu velho, o Padre e o Cão-de-Fogo, a Catirina, Pastorinhas, Arreliquim, Vaqueiro, Boi, Ema, Caboco-de-Arubá, Valentão, Mané Pequenino, Véio Cacundo, Matuto-da-Goma, entre tantos outros. Eles vão entrando a cada episódio, encenados por Figureiros experientes, que precisam conhecer os versos próprios e diálogos. “Botar” cada figura, com sua máscara e vestimenta, exige experiência longa e auxílio direto de um mestre, que vai controlando as preparações na “torda” – barraca de camarim – e as entradas.
Os pretos Mateus usam na mão bexigas de boi secas e cheias de ar, batidas no ritmo do Baiano dando o som mais grave do conjunto, e batidas também expulsando seus oponentes, como o Soldado. Existe esse confronto social e étnico na visão dessas danças, que se dilui em pancadas e risos, mas que é sempre representado e posto à prova, coroando a seqüência inicial.
MATEUS E O TRABALHO NA PROPRIEDADE
Semelhante ao Pai Francisco do Maranhão, em Pernambuco o Mateus está na mesma posição de herói negro cômico, mas o seu jogo de forças com o seu próprio patrão é diferente, de início mais controlado pelo discurso dos proprietários. A primeira ameaça que ele e seu parceiro Bastião estabelecem, em relação ao controle da propriedade do Capitão, é logo reprimida através da figura do Soldado. Percebe-se que as forças envolvidas no teatro da representação do Cavalo-Marinho não incluem tanto a devoção religiosa, e trazem mais à frente a visão política(…).Não é à toa que o Capitão comanda pessoalmente essa dança montado – é o próprio Cavalo-Marinho – com dançantes usando jaqueta e chapéus semelhantes aos de soldados. Mas depois, por toda a noite, voltam os interesses de representar a situação do desequilíbrio social entre patrão, empregados e prestadores de serviços.
Após o Baile, assim, o Mateus e o Bastião, mesmo obedientes ao Capitão de um modo geral, constroem passo a passo um contra-discurso de contestação e sátira: a cada novo personagem de prestador de serviço que chega à propriedade, eles, os empregados pretos de segurança do patrão, atuam como intermediários. Executam as ordens do patrão mas caem deliberadamente em armadilhas cômicas dos servidores trapaceiros, para se safar em seguida. E sempre que o personagem que chega é um desconhecido, um bêbado, um valente, confrontam-no verbal e corporalmente cheios de comicidade, abalando a segurança da propriedade. Eles realmente não têm muito a perder. Isso lembra uma visão de etnomusicólogos sobre várias manifestações de música tradicional que teatralizam conflitos sem solução definida, com uma narrativa de questionamentos aparentemente a-críticos e desorganizados. Neste sentido, Norma McLeod (1974), citada por J. Murphy (1994), valoriza “a mudança de estado implicada na apresentação pública de incerteza social”.
O EXEMPLO MINEIRO E A ÊNFASE NA APRENDIZAGEM POÉTICA
Abrigadas sob o véu da religiosidade, as Folias ficaram um pouco ocultas, um pouco ao deus-dará, para quem tivesse a devoção e o conhecimento de fazê-las. Ficaram com os trabalhadores rurais que, ao se mudarem para a periferia de pequenas e grandes cidades, interromperam a aprendizagem com os velhos Mestres. E ficaram longe do contato dos professores de educação artística, teatro e música, só lembradas como folclore ou devoção. A escola, sem perceber, vai contra a presença das Folias e outros cortejos e “brincadeiras”, pelo simples fato de não conhecê-los. São deixados de lado, como se fossem totalmente voltados ao rito religioso.
(…)Além do canto, a voz é utilizada nos diálogos entre os personagens mascarados e o dono ou dona da casa visitada, com seu presépio, após a cantoria mais religiosa. O líder dos três mascarados é o Bastião, personagem preto que deve executar, com seus companheiros, danças e versos, se isso for vontade do dono da casa. Forma-se entre os mascarados, conhecidos como palhaços, e o “patrão” da casa, como o chama o Bastião, um jogo lúdico com conteúdo social: os palhaços devem mostrar seu bom “trabalho” em forma de dança, verso e adivinhações, e o “patrão” deve então pagar, com donativo e o alimento possível.
Mas a dança é um diferencial no “jogo” da Folia: ela só começa a partir do pedido lúdico dos anfitriões, em casas que já conhecem e sabem jogar o jogo ou “brincar”. E que sabem a maneira de convocar o Bastião à cena, pois ele é o virtuoso, cheio de manhas e habilidades. O reforço de identidade nessas danças é marcante, em especial entre grupos de Folia organizados por famílias de afro-descendentes. Há então sequências ritmadas de sapateio, jogo de bate-pau, saltos e habilidades de corpo. Tudo em nome da devoção aos Santos Reis, representados no presépio pelos três Reis Magos, com o rei negro entre eles. O rei negro foi o que primeiro chegou a ver a natividade do menino Deus, segundo as narrativas orais desses grupos mineiros.
BASTIÃO E A RELIGIÃO QUE ALIMENTA
Nas Folias-de-Reis de Minas Gerais, o personagem do preto Bastião e seus dois parceiros evocam de início a religiosidade constante nas músicas do festejo, em louvor à natividade. Se houver visita a convite, Bastião inicia após as músicas um diálogo, perguntando ao dono da casa se ele possui ali o presépio do “Missia – messias – verdadeiro”. A pergunta, sobre ser verdadeiro, como que inaugura uma fase de desafio em que o protagonista mascarado de negro mostra condições de oferecer dons verdadeiros, sejam de verso, canto ou dança, mediante um pagamento de qualquer oferta. O trio de mascarados, então, como que compete pelo mérito de receber algo do “patrão”, no modo como se dirigem ao dono da casa. Cantam e depois dançam, cada um à sua vez, com grande habilidade. E finalmente, se solicitado pelo “patrão”, confrontam-se num jogo de bate-pau arriscado. A oferta que solicitam é uma esmola recolhida por seu grupo e depois doada a obra social de fundo religioso. E recebem bebida e alimento, naquelas casas onde já eram aguardados, por promessa dos proprietários aos Santos Reis. Fica de certo modo desmascarado, nessa “brincadeira” de palhaços, o véu religioso que serviu para autorizar a escravidão colonial, porque se exercita ludicamente o pagamento de tributo pela classe dos patrões. Aqui na “brincadeira” o trabalho, assim, é remunerado.