dezembro de 2012

MÁRIO DE ANDRADE: INVENTÁRIO E MEMÓRIA

Valeria Alves

 

 

 

 

ilustração JOÃO PAULO CRUZ

 

 

 

 

 

Alguns anos após ser sancionada a Lei Áurea, a população da cidade de São Paulo passava por um processo intenso de arranjos, acomodações, coibição e contenção. Nesse tempo, medidas eugênicas foram tomadas para conter e “organizar” aquilo que parecia um caos.

 

Um tempo de intensa repressão aos cortiços, de urbanização progressiva, de práticas sanitaristas a todo o vapor, disputas entre republicanos e monarquistas, além da substituição da mão de obra escrava pelo trabalho dos imigrantes europeus na cafeicultura. Opressão as manifestações culturais da população negra no centro da cidade eram comuns e as epidemias de doenças transmissíveis se alastravam. Era a primeira década da república.

 

Em meio a essa energia desvairada e frenética nasce, em 9 de outubro de 1893, Mário de Andrade, pautando condições, reformulando ideias. Surge um dos mais importantes homens que iria mudar todo o cenário artístico e cultural da cidade conservadora daqueles anos.

 

Impetuoso, sensível e obstinado, Mário foi o criador e primeiro em muitas atividades ligadas à cultura nacional. Referenciado como grande poeta, escritor, folclorista, musicólogo, ensaísta, crítico literário e excelente fotógrafo, agitou a Sampa dos anos 20 num movimento ousado que até hoje causa surpresa e incômodos.

 

São muitas as vertentes artísticas desse grande escritor, poeta e musicista. Intensas e diversas também foram suas relações e circulação no mundo da política.

 

Apresentamos aqui um breve inventário, fragmentos e memória desse genial e instigante escritor.

 

 

 

PAULICÉIA DESVAIRADA

 

Mario de Andrade fez parte de um momento muito importante na história das políticas culturais e para a institucionalização desse campo no Brasil. Revendo elementos históricos que compõem a vida cultural da cidade, nos deparamos com uma São Paulo de intensas manifestações culturais africanas e afro-brasileira desde o século 18. Irmandades negras, terreiros de candomblés, congadas, batuques e samba promovidos pela população negra residente na região central e nas vilas, faziam parte do cenário cultural da cidade.

 

Todavia, ao se tentar preservar a imagem de uma São Paulo dos Bandeirantes e dos imigrantes, as expressões culturais populares foram por vezes reprimidas, controladas e ocultadas pelas autoridades públicas.

 

A elite paulistana considerava essas manifestações como estranhas à cidade, ao desenvolvimento, além, de um perigo para a nação. Essa elite visando consolidar-se e interagir com o capitalismo, experimentado nas nações européias, depara-se com os resquícios da escravidão, com as manifestações culturais e religiosas negras, com uma população multicolorida por conta da miscigenação. Com isso a elite paulistana se via deslocada do que seria o ideal de uma civilização branca, assim, houve uma tentativa de abolir e desconsiderar essa manifestação como parte da cultura nacional.

 

Entretanto, nessa época em que a cultura era restrita às belas-artes e à arte erudita, Mario de Andrade abarcou fazeres e saberes populares e colocou a cultura popular como foco. Dessa forma, expande de maneira revolucionária o conceito de cultura, que até então estava restrita ao que pensavam as camadas altas.

 

Mario foi diretor do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo. Dentre seus projetos fez a junção entre cultura popular e patrimônio em 1935.Essa foi a primeira política pública para a cultura.

 

 

Suas medidas foram consideradas inovadoras e ambiciosas para a época. Mário de Andrade foi de fato o precursor das políticas públicas culturais e dos financiamentos para a educação cultural e, a partir de então, começou a surgir um universo de produções.

 

Sua preocupação estava em ampliar o repertório cultural da população e descortinar a autêntica tradição brasileira.

 

Mário apresenta um anteprojeto que tinha como inclinações a memória dos grupos culturais populares, as diversidades dos saberes artísticos e culinários das etnias que compunham o ethos do que ele chamava de brasilidade.

 

O escritor e agora dirigente público se preocupava com todos os segmentos da população. Sua intenção era a de democratizar a arte e promover o acesso aos variados registros culturais. Pressuponha que a cultura tinha que ser vista e vivida de forma plural, valorizada e respeitada em sua diversidade.

 

 

 

SEMANA DE ARTE MODERNA

 

 

 

O poeta e romancista Mario do Andrade é considerado o criador da poesia moderna e a figura principal do movimento de vanguarda paulista.

 

Esteve à frente da Semana de Arte Moderna em 1922, ano, também, do lançamento de seu livro Paulicéia Desvairada.  Importante publicação porque nela, Mario apresenta os novos rumos das artes visuais e da literatura no Brasil.

 

Essa semana teve como foco central a oposição às formas clássicas, a ruptura dos padrões antigos de arte, busca por novas formas de expressão utilizando-se de novos recursos como cores vivas, cubos, esculturas. O evento aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e, embora seja conhecido como Semana de Arte Moderna, foram apenas três dias de muito frisson, reações de espanto, repúdio, emoções, vaias, aplausos e algazarras.

 

Neste evento foi apresentado uma variedade de seguimentos artísticos: Literatura, música, poesia, pintura e escultura. Artistas consagrados do modernismo brasileiro como Anita Malfatti, Victor Brecheret, Oswald de Andrade, Villa Lobos, Di Cavalcante, Plínio Salgado, além do próprio Mário, apresentaram novas formas de expressões artísticas.

 

Os artistas propunham novos padrões estéticos, uma busca pela liberdade e por uma identidade própria movidas, também, por um sentimento nacionalista. Para isso, a ruptura com a arte de vanguarda e a liberdade para experimentação foram imprescindíveis.  Novas práticas foram criadas durante essa semana, por exemplo, a recitação de poesias que até então eram somente escritas, as artes plásticas feitas em esculturas e maquetes com contornos arrojados e modernos. Foi um momento de experimentar novos caminhos e se afastar das definições sobre um ideal de arte.

 

A Semana de 22, que na época não teve muita importância e que foi ganhando valor com o passar do tempo, culminou em diversos movimentos artísticos e culturais. Em São Paulo, por exemplo, em outubro de 1979, foi fundado num porão da Praça Benedito Calixto, o grupo de Teatro Lira Paulistana. O próprio nome foi tirado da obra homônima de Mário de Andrade.

 

Faziam parte da Lira, artistas que diziam trazer a herança do modernismo em suas manifestações, eram eles: Ná Ozzeti, Tetê Espíndola, Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, o Grupo Língua de Trapo, Cida Moreira, Eliete Negreiros, Zé Eduardo Nazário.

 

Mário de Andrade e seus companheiros ao idealizar e realizar a Semana de Arte Moderna abandona de vez os antigos ideais estéticos e desafia a elite paulistana fissurada pelos padrões europeus do século XIX.

 

 

MACUNAÍMA – O ANTI-HERÓI BRASILEIRO

 

 

Alguns anos após a Semana de 22, Mário de Andrade publica uma das suas mais importantes obras: o livro Macunaíma. Considerado um dos maiores romances modernistas, foi escrito e publicado em 1928. Esta publicação revela, mais uma vez, além da criatividade, o lado irônico, provocativo e subversivo do autor.

 

Com uma estrutura inovadora, a obra surrealista de Mario de Andrade, critica o Romantismo, a miscigenação, o sincretismo religioso e a linguagem culta, esta, alvo constantes nas falas da personagem, um menino preto retinto nascido numa tribo indígena, um anti-herói brasileiro: preguiçoso, mentiroso, malandro, um representante do povo que tem um encantamento pela cidade grande e pela máquina.

 

Nesta rapsódia, Mário procurou valorizar a linguagem popular e o multiculturalismo brasileiro, criticando de forma irônica a linguagem culta escrita e única valorizada. Em várias passagens, o autor satiriza a gramática, sobretudo o afastamento da escrita e de como as pessoas se comunica no dia a dia. Aliás, aproximar a fala da escrita foi um dos alvos do autor em Macunaíma. Em vários trechos, ele substituiu “se” por “si”, defendia o uso da linguagem, da pronúncia brasileira e não da portuguesa.

 

Em Macunaíma Mário faz uma revisão do indianismo romântico, e uma crítica ao passado, procura através da cultura popular, do folclore, reconstruir a cultura nacional.

 

Quase todos os escritos de Mário de Andrade causaram algum incomodo. Amar, Verbo Intransitivo de 1927, por exemplo, romance que contava a iniciação sexual do jovem Carlos com a alemã Elsa, uma mulher mais velha contratada por seu pai, causou um escândalo entre os quatrocentões paulista, assim, também foi com as obras Paulicéia Desvairada, 1922 e A Escrava que não é Isaura,1925.

 

 

 

MANUSCRITO PRETO

 

Além da profunda relação que Mário de Andrade manteve com a cultura popular, o escritor fez alguns estudos sobre as manifestações culturais da população negra no Brasil e suas contribuições para o folclore. Entre elas destacamos o Maracatu, Lundu, os Congos e o Samba Rural Paulista.

 

No entanto, a maneira de compreender o negro no Brasil, ficou mais evidente em um dos seus escritos: o manuscrito Preto. Nele, através de artigos, cartas e documentos, Mário faz uma espécie de estudo antropológico sobre a presença e a contribuição da população negra no Brasil.

 

A pesquisa realizada por Angela Teodoro Grillo aponta, que este estudo foi desenvolvido por Mário ao longo de 20 anos sendo encerrado somente com a morte do autor em fevereiro de 1945. Revela que entre as obras publicadas, dois importantes artigos; “A superstição da cor preta”,1938 e “Linha de côr”,1939, evidenciaram as dificuldades e preconceitos vividos pela população negra.

 

Mário teve uma participação valorosa e fundamental nas comemorações do Cinqüentenário da Abolição. Mas, para além, de ficar apenas enunciando seus feitos, acredito ser digno e instigante reproduzir trechos do artigo “A Superstição da Côr Preta”, publicados no Boletim Luso-Africano em dezembro de 1938. Neste escrito Mário da Andrade mais uma vez surpreende a todos:

 

 

 

 

A SUPERSTIÇÃO DA COR PRETA

 

Na sessão solene realizada pelas associações negras de São Paulo no dia dois de maio, para celebrar o Cinqüentenário da Abolição, não pude deixar de sorrir melancolizado ouvindo um dos oradores negros da noite falar em “negros de alma de arminho”. Assim, era ele mesmo, um negro, a esposar essa fácil e trágica antinomia de origem branco-europeia pela qual se considera a cor branca simbolizadora do Bem e a negra simbolizadora do Mal. Mas não é apenas esse orador negro a esposar a detestável tradição branca do simbolismo das cores […] Se qualquer de nós brasileiros se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é freqüente chamar-lhe: Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele nem foi muito lá convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado. Mas é certo que se insultamos alguém chamando-lhe” negro”, também nos instantes de grande carícia, acarinhamos a pessoa amada chamando-lhe “meu negro”, “meu nego”. […] No Brasil, não existe realmente uma linha de cor. Por felicidade, entre nós, negro que se ilustre pode galgar qualquer posição. Machado de Assis é o nosso principalíssimo e indiscutido clássico de língua portuguesa e é preciso não esquecer que já tivemos Nilo Peçanha na Presidência da República. Mas semelhante verdade não oculta a verdade maior de que o negro entre nós sofre daquela antinomia branco-europeia que lembrei de início, e que herdamos por via ibérica. É ver que o branco, o possível branco, o despreza, o insulta exclusivamente por superstição. Não é porque as culturas afro-negras sejam inferiores às européias na conceituação do progresso ou na aplicação do individualismo; não é, muito menos, porque as civilizações negras sejam civilizações “naturais”, não foi inicialmente por nenhuma inferioridade técnica ou prática ou intelectual que o negro se viu depreciado ou limitado socialmente pelo branco: foi simplesmente por uma superstição de cor. Na realidade mais inicial: se o branco renega o negro e o insulta, é por simples e primária superstição…

 

É com essa atmosfera que encerro mais um dos capítulos da vida e obra desse genial escritor, poeta, musicólogo, ensaísta: Mario de Andrade.

 

 

 

 

 

Valeria Alves

VALÉRIA ALVES é antropóloga, pesquisadora e produtora cultural.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.