outubro de 2011

BEM ME QUER, MAL ME QUER: UM PEQUENO CAPÍTULO DA HISTÓRIA DO NEGRO E O RÁDIO EM SÃO PAULO

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

BEM ME QUER

 

“OOOO SAMMMBA PEDE PASSAGEM! Dispara com entusiasmo o simpático e ainda jovem locutor Moisés da Rocha, pontualmente ao meio-dia, no comando dos microfones da Rádio USP. A frase, que mais tarde viria tornar-se tradicional no rádio paulistano, naqueles anos de 1978, ecoava como um canhão pelas bordas, subúrbios e comunidades negras da cidade.

 

Não por menos. Foram necessários mais de 50 anos (a primeira transmissão radiofônica do país ocorreu em 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência) para que o ainda então principal veículo de massa do Brasil (já ao lado da TV) enfim dedicasse um dos quadros da sua programação a tradições culturais verdadeiramente de origem periféricas e afrobrasileiras.

 

Apesar do momento político turbulento, o país vivia sobre o fardo e as sangrentas conseqüências das intolerâncias do regime militar (1964 – 1985), que refletiam em uma repressão ainda mais rígida sobre as manifestações artísticas – como poeticamente retrata o samba Delegado Chico Palha (1938) de Nilton Campolino e Tio Hélio – surge na Rádio USP O Samba Pede Passagem.

 

Pela primeira vez, de fato, uma emissora em FM (Frequência Modulada) buscava estreitar a relação dos negros e suburbanos com o rádio, mas não somente através da música, seu carro chefe. Informações, entrevistas, notícias e produções das beiras da cidade eram o diferencial do programa, apontado como o pioneiro no rádio brasileiro em FM especificamente dedicado ao samba.

 

“O Leonardo de Castro é que me levou para a Rádio USP. Ele era locutor da Rádio Bandeirantes e também responsável pela narração do Samba Pede Passagem. Não demorou muito e ele saiu. Pro lugar dele foi pra lá um ex-parceiro meu da Rádio Jovem Pan, o diretor de criação Mário Fanucchi. Na época eu era tipo um “bam bam bam” na Jovem Pan como locutor, mas na rádio USP eu havia sido convidado para fazer a programação de samba, e só. Fazia a seleção das músicas e dava para o narrador falar. Aí o Fanucchi me deu uma oportunidade como locutor. Quando eu começo a falar o programa estoura!”, lembra Moisés da Rocha.

 

Produtor, pesquisador e locutor (oriundo de uma das primeiras, se não a primeira, geração de locutores negros do país), Moisés da Rocha, nascido em Ourinhos, interior de São Paulo, é a voz por trás do programa. “O Samba Pede Passagem surgiu em 1978, já com este nome. Antes era um programa de samba qualquer, que tocava músicas e ponto. Mas quando eu entro aí é que vira o verdadeiro O Samba Pede Passagem. Porque eu começo a falar com a periferia, tocar os sambas da periferia. O programa nunca foi só ouvir por ouvir”, conta Moisés, que iniciou sua carreira de radialista em 1967, na Rádio Cometa, em São Paulo, tendo passado mais tarde pelos microfones das rádios Jovem Pan, Gazeta, Cultura, Carioca, entre outras.

Até então vistos e representados por periódicos próprios ou, no máximo, em escassos, quando não também pejorativos e negativos, “flashes” em emissoras de rádio e TV da época, os negros viam no programa a possibilidade de ressurgimento da Imprensa Negra Paulista (movimento iniciado em 1915, com o surgimento do jornal O Menelick e interrompido em 1964, pelo regime militar, que censurou os órgãos de imprensa em todo o país, fechando assim o jornal Correio d´Ébano, última tentativa de dar voz as manifestações negras).

 

Foi somente em 1978, mesmo ano da criação do O Samba Pede Passagem, com o ressurgimento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), que mais tarde deu origem a veículos de comunicação próprios, que a Imprensa Negra Paulista retomou suas atividades.

 

O Samba Pede Passagem nunca foi meramente um vitrolão pra tocar música. Tocar música o cara bota em casa! Nós falamos com a periferia. Anteriormente ao samba pede passagem não existia um programa com o qual a comunidade negra se identificasse, muito pelo contrário. Até com a conivência de atores negros sem consciência, o rádio serviu muito até para mostrar a inferioridade do negro diante as demais etnias, com piadas preconceituosas, tipos caricatos”, diz Moisés, referindo-se ao humorista e compositor carioca Dorival Silva (1923 – 1989), conhecido como Chocolate, comediante que ao longo das décadas de 1950 e 1960 teve muito sucesso em emissoras de rádio e televisão do Rio de Janeiro e de São Paulo.  Chocolate foi muito criticado pala militância negra do período pelo modo como se comportava, fazendo piadas com os negros.

 

“Uma coisa é certa. O que essa molecada de hoje não faz na FM, nós fazíamos no AM”, relembra Moisés, fazendo-nos lembrar dos áureos tempos do programa, vivido nos anos 80 e início dos anos 90, quando foi diretamente responsável pelo sucesso do samba e do pagode em São Paulo ao apresentar, em muitos casos pela primeira vez aos ouvintes da capital, nomes como Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal, Oswaldinho da Cuíca, Geraldo Filme, Talismã, Zeca da Casa Verde, Germano Mathias, Eduardo Gudin, grupo Redenção, Dona Inah, grupo Pé de Moleque. “Esse pessoal não tinha espaço na rádio, no máximo a coluna do Plínio Marcos no jornal. Com o samba Pede passagem os nêgo veio também começam a aparecer”.

 

O Samba Pede Passagem alcançou tamanha influência e prestígio entre seus ouvintes, que Moisés da Rocha acabou sendo convidado para ser programador na Rádio Carioca, onde fez as seleções do primeiro programa exclusivamente de samba de uma rádio no Rio de Janeiro.

 

“A história da veiculação do samba nas emissoras de rádio paulista, não pode ser contada sem o pioneirismo do Samba Pede Passagem e nem do radialista Moisés da Rocha. Todos os principais sambistas dos Brasil devem muito ao programa. Sua ajuda em divulgar os projetos, os artistas, as músicas. Gostaria que eles se lembrassem disto”, afirma a professora aposentada Clarice Pereira, de 75 anos, ouvinte do programa desde os anos 80.

 

Símbolo da resistência cultural afrobrasileira, O Samba Pede Passagem pode ser conferido aos sábados e domingos, nas rádios USP e Capital.

 

 

MAL ME QUER

 

Se nos dias atuais, apesar das mudanças e transformações dos meios, já é possível observar algumas dezenas de programas e projetos de rádio dedicados a cultura afrobrasileira e suburbana, bem como radialistas e locutores negros (em sua maioria concentrados na mídia digital), no início da radiodifusão no Brasil o cenário era outro.

 

É o que revelou o pioneiro estudo Cor, Profissão e Mobilidade: O Negro e o Rádio de São Paulo, publicado em 1977, pelo antropólogo e professor emérito da Universidade de São Paulo, João Baptista Borges Pereira (1929). A pesquisa, realizada entre os anos de 1959 e 1964, apresenta a inserção profissional do negro no mundo empresarial do rádio em São Paulo nos primeiros 40 anos de sua existência.

 

Segundo Borges foi, indiretamente, apenas após a chegada da publicidade no rádio, em 1932, depois de um decreto estabelecido durante o governo Getúlio Vargas, que o negro passou a ter espaço no rádio. “Num primeiro momento, os criadores do rádio no Brasil o idealizaram com a expectativa de que ele modernizasse o país através da educação. O rádio seria o mestre dos que não sabiam ler. Esse modelo de rádio, contudo, se mostrou erudito. Depois veio a publicidade que tomou conta do rádio, somente aí o rádio se abriu para o público em geral e incorporou definitivamente a música popular”, diz.

 

Com a mudança, a música negra, até então observada como lazer e praticada apenas em espaços específicos, como ao redor das casas de mãe de santo em manifestações que eram uma espécie de sociabilidade banhada a música, acaba sendo incorporada aos novos tempos e passa a ter vez nas rádios brasileiras.

 

Por outro lado, o negro como profissional, continuou sendo excluído das cadeiras da estrutura empresarial do rádio. “No meu trabalho isso está muito claro (a não presença do negro no corpo de funcionários da rádio) o negro nunca está na cúpula. Cortando de cabo a rabo o rádio, de maneira verticalizada, tem o setor administrativo, o setor artístico, onde está o setor musical. O negro estava dentro do rádio segregado dentro do musical só. Ele não tinha nenhuma credibilidade fora daí”, conta Borges.

 

De acordo com Baptista, o rádio era, e continua sendo, um reflexo da sociedade brasileira: “Digamos que o rádio era excepcional a medida que incorporava o negro dentro de um lócus de trabalho . Mas ao mesmo tempo, esse lócus, que aparentemente era favorável ao negro,  não era tão favorável assim. Em linhas gerais ele refletia como estava a sociedade. Assim como acontece hoje”.

 

As conclusões do estudo Cor, profissão e mobilidade, mesmo após mais de 40 anos da sua publicação, infelizmente seguem atuais. A intensa e constante produção cultural afrobrasileira apesar de hoje já encontrar espaços em algumas das rádios do país, continua reprimida. Os negros oriundos das cadeiras de comunicação das universidades brasileiras ainda sofrem com as poucas possibilidades nas grandes (e muitas vezes nas pequenas também) emissoras. Mas se o samba pede passagem, o negro, por outro lado, aos poucos aprendeu a impor a sua, criando novas oportunidades radiofônicas e dando voz a rica produção artística afrobrasileira, a revelia de uma elite que, mesmo se apropriando desta mesma produção, insiste em ignorar a fundamental importância da contribuição negra na construção da identidade cultural do Brasil.

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.