julho de 2018
A HISTÓRIA DE PÁSSARO PRETO, O CAVALARIANO REBELDE
Flavia Albergaria Raveli
para o meu irmão, Pedro Henrique Albergaria Raveli
Bento Miranda cochilava quando bateram na porta de seu hotel, o Miranda, na rua dos Gusmões, 22, região da Luz, em São Paulo. Passava um pouco das 22h do dia 9 de junho de 1931. Fazia muito frio naquele ano. A garoa e o vento castigavam. O termômetro na vitrine da loja A Capital, na praça do Patriarca, que anunciava mantôs e sobretudos a preços reduzidos, marcara 7 graus pela manhã e menos de 2º C durante a madrugada.
Um homem negro, fardado com uniforme da Força Pública, havia chegado para passar a noite. Bento registrou seu nome no livro de hóspedes e entregou-lhe a chave do quarto 6, no andar de cima. Dois homens já dormiam ali quando o soldado José da Silva, conhecido como Pássaro Preto, entrou e ocupou a cama de ferro branca ornada de flores, ao estilo belle époque, que ficava encostada na parede, do lado esquerdo da porta para quem entrava. Estava cansado. Havia dias vinha sendo seguido e dormia cada noite em um lugar diferente.
Assim que entrou no quarto indicado pelo hoteleiro, Pássaro Preto tirou a farda e arrumou-a na cadeira ao lado da cama, junto com o cinturão e o revólver calibre 38. No chão, as botas, perneiras e espora. Pretendia se apresentar no 1º regimento da cavalaria no dia seguinte cedo. Ficou de cuecas e camiseta, apesar do frio, deitou e provavelmente adormeceu logo.
No andar térreo, Bento Miranda também dormiu. Poucos minutos depois de ter pegado no sono, foi novamente acordado com batidas violentas na porta. Um homem que se identificou como soldado, à paisana, pediu para ver o registro dos hóspedes e perguntou sobre um indivíduo, cuja descrição correspondia à do hóspede recém-chegado. O militar da Força Pública, depois identificado como Ernesto Antônio Ferreira, afirmou tratar-se de um perigoso bandido procurado pela polícia. Bento disse então que seria um favor prendê-lo e indicou o quarto onde ele dormia.
A esta altura, outros cinco soldados, também pertencentes à Força Pública, dividiram-se entre a calçada, a porta da frente e a do quarto onde dormia Pássaro Preto. Eles mandaram que Bento ficasse afastado, pois o homem era agressivo. Pouco depois escutou-se o estampido de um tiro ao qual seguiram-se outros. Acompanhado dos soldados, Bento correu em direção ao quarto. Logo que entrou, viu o homem que jazia na cama. O rosto coberto de sangue que escorria abundantemente pelo assoalho de tábuas estreitas e mal enceradas. Nas duas camas ocupadas, os operários Ibrahim Prada, 44 anos e Willian Tameriak, 34, olhavam horrorizados.
Quando a polícia chegou na rua dos Gusmões, muitos curiosos cercavam o hotel e a escolta tinha fugido. A janela do quarto estava aberta, e a chave da porta estava do lado de fora, com a lingueta saída. Logo em seguida chegaram o major Ary Fontoura Cruz, fiscal do Regimento da Cavalaria e o capitão Anísio, do mesmo regimento. O delegado de plantão, dr. Alfredo de Assis, chamou o titular da Delegacia de Segurança Pessoal, dr. Francisco de Assis Carvalho Franco, convocado para moralizar a conhecida violência policial. O inquérito sobre a morte de Pássaro Preto correu sob sua responsabilidade. Homem culto e elegante, tido como amigo dos modernistas, Carvalho Franco era temido e respeitado em São Paulo.
Assim que chegou ao hotel Miranda, o delegado titular deu ordem para que a aglomeração que se avolumava, apesar do frio, fosse dispersada. Logo em seguida, veio a polícia técnica.
As fotos tiradas do corpo e do quarto pela perícia, ocuparam as páginas de vários jornais no dia seguinte. Elas mostravam Pássaro Preto deitado de lado na cama, coberto até o meio da perna por lençóis brancos e um cobertor ralo. Seu rosto estava perfurado na fronte em dois lugares, de onde pendiam filetes de sangue que escorriam pelo pescoço. Seus olhos estavam fechados, e a língua se pronunciava um pouco para fora da boca. O sangue empossara e manchava quase toda a cama de lençóis brancos e o piso de tábuas corridas, onde jaziam as botas e as perneiras do soldado. O cinturão de couro fino estava depositado na diagonal sobre seu corpo, entre o abdômen e o braço direito. O revólver fora colocado próximo da mão, levemente fechada. Pássaro Preto vestia camiseta e cueca brancos. É provável que ainda não tivesse completado trinta anos.
Foto tirada pela perícia no dia do assassinato do soldado José da Silva, o Pássaro Preto. O documento fez parte do laudo pericial do processo de investigação do crime.
Poucos dias antes de ser morto, Pássaro Preto estivera na redação do jornal Diário Nacional, na rua Benjamin Constant, na Sé. Ele foi avisar aos repórteres do Diário que estava sendo seguido e temia por sua vida; reagiria à bala a qualquer violência que lhe fizessem, pois não era criminoso. O soldado desconfiava que a escolta da Força Pública que o perseguia durante o dia, esperava apenas o momento oportuno para uma tocaia. Por isso, dormira cada dia em um lugar diferente na última semana.
Pássaro Preto disse que estava sendo seguido quando entrou na redação do Diário. Ao ouvir isso, os jornalistas desceram em disparada atrás da escolta. Eles viram quando um grupo de homens à paisana se esgueirou na direção da rua Senador Feijó e desapareceu em meio à multidão que saía da missa na Sé. Os jornalistas prometeram publicar a conversa que tiveram com o soldado no dia seguinte. Antes de se despedir, Pássaro Preto foi fotografado pela última vez com vida. No dia seguinte, o jornal noticiou a visita e mencionou a elegância do soldado.
Pássaro Preto tornara-se figura conhecida da imprensa paulistana desde junho de 1925, quando fez parte de um plano para soltar presos do movimento tenentista de 1924 em São Paulo, conhecido como a “Revolução de 1924”. Entre as fotos publicadas após a morte de Pássaro Preto, estava aquela feita pelo repórter do Diário Nacional no momento da visita do soldado. Nela, vemos o busto de um homem negro altivo, de óculos escuros, paletó e gravata. Pássaro Preto era bonito, parecia um dândi. Em outra ocasião, os jornalistas do Diário elogiaram a clareza e a correção de sua expressão verbal. Apesar de oficialmente analfabeto – segundo publicara o Correio Paulistano, representante dos ricos cafeicultores – é improvável que Pássaro Preto desconhecesse completamente o código letrado, pela forma como se expressava.
Naquela mesma semana, ele estivera na casa de tolerância de Guilhermina dos Santos, na rua Florêncio de Abreu, 61, próximo à rua Líbero Badaró, onde residiam as prostitutas. Não tendo sido recebido devido ao adiantado da hora — passava da 1h30 –, o soldado teria arrombado a porta da casa e promovido um alvoroço. Algumas moças acorreram à sacada aos gritos, em trajes de dormir. A vizinhança chamou a polícia, mas ninguém foi preso. O soldado acabara de ser contemplado por um indulto concedido pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas, graças ao empenho do interventor João Alberto Lins de Barros.
Poucos dias após o acontecido, Pássaro Preto soube que era considerado desertor da Força Pública e havia uma ordem de prisão contra ele. Mal saíra da cadeia, onde passara cinco dos seus quase trinta anos, e já se via novamente ameaçado de perder a liberdade! Em seu último dia de vida, o soldado foi à casa de Miguel Costa, então Secretário de Segurança de São Paulo e comandante da Força Pública. Apesar dos cargos que ainda ocupava – e que estava em vias de perder — era notória a diminuição de seu prestígio político.
Pássaro Preto confiava em Costa, e mesmo que não confiasse, não tinha mais ninguém a quem recorrer. Servira sob suas ordens na Força Pública durante o breve período revolucionário em 1924. Além disso, uma dívida de gratidão unia os dois militares. Afinal, Pássaro Preto fora preso na tentativa de soltar o irmão de Miguel, Daniel Costa, em 1925.
Os jornais atestam a ida de Pássaro Preto à casa de Miguel Costa no dia 9 de junho de 1931, bem como a existência de uma carta de recomendação dada pelo general à Pássaro Preto, com a sugestão de sua apresentação imediata ao primeiro regimento da cavalaria. O que mais teria feito José da Silva neste dia? Quais teriam sido seus passos, os caminhos percorridos pela cidade, até sua chegado ao hotel Miranda?
Talvez Costa tenha convidado José para almoçar com ele, sabedor de sua difícil situação, recém-saído da cadeia. Será que o soldado se fardou ainda na casa do antigo chefe tenentista? Sabemos que ele não atendeu à sugestão de apresentar-se imediatamente ao 1º regimento da cavalaria. Quem sabe Pássaro Preto deixou a casa de Miguel Costa e seguiu até a praça da República… sentou-se um pouco para descansar, o almoço fora farto… há quanto tempo não comia assim! Talvez tenha cochilado um pouco num banco próximo do pequeno lago. Fazia frio, mas havia sol. Pássaro Preto gostava de São Paulo, acostumara-se até com a garoa fina que caía invariavelmente todas as tardes.
Pássaro Preto teria então caminhado pela rua Barão de Itapetininga até a praça Ramos, onde pode ter parado para apreciar o imponente Teatro Municipal, ladeado pelos jardins do Vale do Anhangabaú. De lá, pode ter ido ao Piques, lugar descampado e mal afamado da cidade, onde hoje se localiza a Praça da Bandeira e o largo da Memória. Perambulara um pouco por ali. Naquele dia, deve ter perdido de vista a escolta que o perseguia. É possível que tenha tomado o rumo da Luz, na direção do quartel da Força Pública, onde iria se apresentar na manhã seguinte, como registraram os jornais. Teria ele parado para conferir as horas no relógio da torre, de aspecto tão diferente do casario colonial de sua infância?
Finalmente, perto das 22hs, como registram as fontes, já cansado e com frio, o soldado buscou abrigo no hotel Miranda, próximo do quartel. Já estivera lá por uma noite, quando chegou em São Paulo, em 1924, ano em que o time do Corinthians conquistou o tricampeonato e alcançou grande popularidade.
Poucas ruas separavam o regimento da rua onde ficava a hospedaria popular. A rua dos Gusmões ficava numa região empobrecida, próxima dos Campos Elíseos, bairro chique da cidade, sede do governo paulista.
Em São Paulo, o centro enriquecia e o subúrbio se ampliava a partir das primeiras décadas do século 20 – Bexiga, o Piques, Brás, Belém, Cambuci, Penha, Mooca, Ipiranga, a várzea da Barra Funda, onde os sambistas se reuniam no Largo da Banana. A população pobre foi gradativamente empurrada para os bairros distantes, frequentemente encharcados pelas cheias do Tamanduateí. Ali abundavam os campos de várzea, ali se festejavam os santos nas festas de padroeiros, se tirava esmola para o Divino à luz dos lampiões à querosene, nas ruas de terra e casas com fogão de lenha. Cada bairro tinha seus apregoadores, pequenos comerciantes que trabalhavam a pé ou em carroças. Vendiam de tudo: frutas, legumes, galinhas, tecidos. Movida pelo café, a economia paulista se desenvolvia e atraía migrantes e imigrantes para a lavoura e para a capital.
O futebol, as festas religiosas e os batuques reuniam a população pobre dos subúrbios e áreas já deterioradas do centro. Bairros outrora ocupados quase exclusivamente por negros, como o Bexiga e a Liberdade, receberam imigrantes italianos e espanhóis, cujas línguas favoreciam o contato e a integração com os brasileiros. Assim, difundiram-se outros idiomas, costumes e hábitos alimentares. O time de futebol do Corinthians, fundado em 1910, no bairro do Bom Retiro, era conhecido também como o clube da colônia espanhola.
Falava-se uma mistura de português e italiano nas ruas. O cronista Alexandre Machado, conhecido como Juó Bananére, registrou um costume linguístico definidor do sotaque paulistano: uma “língua” baseada na fonética influenciada pelo idioma italiano e suas variações de dialetos misturados ao português. A grande afluência de estrangeiros em São Paulo desde o final do século XIX até o início de 1930 acrescia novos acentos aos “italianismos” imortalizados mais tarde nos sambas de Adoniran Barbosa.
Pássaro Preto veio ao mundo como José da Silva, em Sete Lagoas, município de Sabará, Minas Gerais, no ano de 1901, filho de Joaquina Maria de Jesus e André Mathias, nascidos por volta de 1880, aproximadamente. Talvez seus pais tenham nascido livres, filhos de pais escravos alforriados como muitos na região, antes da extinção da escravidão. Não porque Sabará fosse um foco abolicionista, mas porque sua condição de importante centro urbano promoveu transformações nas relações de trabalho. No mais, a alforria não equivalia à liberdade imediata, era, na maior parte das vezes, resultado de negociação entre senhores e escravos que ficavam obrigados a ressarcir seus antigos proprietários, por vezes até a morte.
A freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, onde Pássaro Preto fora criado, foi fundada pelo genro de Fernão Dias, o bandeirante paulista Borba Gato e erigida à vila em 1711. Nessa época, era o mais rico e importante município das Minas Gerais, graças às suas montanhas nas quais abundavam o ouro, a prata e toda sorte de pedras que escoavam para a Europa pelos portos da capital de São Salvador e a partir de 1763, de São Sebastião do Rio de Janeiro. Além dos minerais, a região também ficara conhecida no século XVIII pela existência de vários quilombos, como o do Tejuco e do Ambrósio.
As décadas de 1910 e 1920 foram marcadas pelo empobrecimento das economias regionais no Brasil em função do privilégio atribuído pelo governo republicano à atividade cafeicultora em São Paulo. Essa situação promoveu um movimento migratório intenso da população baiana e mineira para o Sudeste e sobretudo para a Capital paulista.
Por volta dos vinte anos, José deixou a casa paterna. Chegara o momento de buscar sustento longe da família. Esse era o destino comum aos homens pobres de uma região que empobrecera bastante no último século. Em franca decadência, Sabará já não oferecia riqueza nem trabalho.
Depois de percorrer o sertão mineiro como trabalhador volante, provavelmente em condições quase miseráveis, numa região de economia precária, José da Silva chegou na cidade de Mogi das Cruzes, em 1922, onde trabalhou como carvoeiro. Em fevereiro de 1924 assentou praça no 1º regimento da cavalaria da prestigiada Força Pública[1] de São Paulo, situada à rua João Theodoro, na região da Luz. A Guarda e a Polícia Civil não aceitavam negros, mas incluíam imigrantes em seus quadros.
É provável que Pássaro Preto tenha desembarcado na estação do Norte, no Brás, próximo do quartel da Força Pública. O Brás era um bairro onde viviam operários imigrantes na sua maioria, quase todos italianos. José nunca tinha visto um estrangeiro até chegar em São Paulo, mas logo se adaptou aos costumes e sotaques da cidade. Embora a Força Pública não admitisse estrangeiros, eles estavam em toda a parte, principalmente nos subúrbios, onde rapidamente se integraram à população local.
[1] Instituição militar com prerrogativas de polícia, conhecida como “exército particular” de São Paulo. Caracterizou-se por sua atuação decisiva e violenta contra os movimentos revoltosos do século XX. Denominada Polícia Militar a partir de 1969.
O desenvolvimento econômico promovido pelo café foi acompanhado da expansão da indústria, dos negócios, serviços, da construção civil e rede ferroviária. A cidade de São Paulo crescia e adquiria uma feição mais moderna. Aos poucos a luz elétrica substituía os lampiões a querosene nos bairros ricos – Campos Elíseos, Sé, Higienópolis, na região central –; os bondes elétricos da Companhia Light and Power tomavam o lugar das charretes e dos bondes puxados por burros no centro. Surgiam os primeiros automóveis, as lojas finas, como a Casa Alemã e a Kosmos, na rua Direita, a Casa Ferrão, na Líbero Badaró, A Capital, na Praça do Patriarca, a Casa Sloper, a Confeitaria Fasoli, os cinemas do centro.
O crescimento da economia paulista, no entanto, pagava um alto preço político: a manutenção do poder político dos cafeicultores encontrava cada vez mais oposição. As oligarquias excluídas pressionavam para ampliar o bloco do poder, os operários começaram a se articular.
As greves dos anos de 1917 e 1919, ainda recentes na memória da população e dos poderosos, mobilizaram grande parte dos trabalhadores. Os bondes interromperam seu funcionamento, as indústrias pararam. Pressionadas, algumas fábricas negociaram mudanças no regime de trabalho noturno de mulheres e crianças. O movimento operário, influenciado pelos imigrantes comunistas e anarquistas, foi duramente reprimido pela ação policial e pelas políticas públicas que criminalizaram as organizações de trabalhadores e expulsaram os estrangeiros envolvidos nessas ações com base na lei Adolfo Gordo, de 1907. Eles eram mais da metade dos trabalhadores da indústria paulista neste período.
Na década de 1920, setores descontentes do Exército aliados aos opositores do governo, iniciaram protestos que ficaram conhecidos como “Reação republicana” e depois como “tenentismo”, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A revolta de 1924 foi um de seus desdobramentos. Esses movimentos tiveram como consequência a destituição do governo cafeicultor paulista por meio do movimento político que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930.
Poucos meses após a chegada de José da Silva na cidade, estourou a revolução tenentista em São Paulo, conhecida como “Revolução de 1924”. Seus chefes eram o capitão do Exército Isidoro Dias Lopes e o major Miguel Costa, da Força Pública, instituição dividida entre a ala legalista e a rebelde. José aderiu à causa dos tenentes que se diziam opositores aos ricos cafeicultores. Herdeiro da tradição quilombola mineira, Pássaro Preto rapidamente alinhou-se ao lado dos revoltosos de baixa patente contra o governo.
Nessa ocasião, ele conheceu Aníbal Miranda, o Bataclan, também chegado em São Paulo vindo do interior do estado em 1922, quando assentou praça na Força Pública. Branco, filho de Francisca e Luiz Orlando, nascido na estação de Ressaca, comarca de Mogi- Mirim em 1902. Bataclan deixou a casa paterna aos doze anos quando sua mãe morreu. Percorreu a região de Leme e Araras, trabalhou como machadeiro em derrubadas de matas e florestas no oeste paulista até sua chegada à capital. Seu apelido evocava a casa noturna parisiense Bataclan, onde, naquele mesmo ano, o músico Pixinguinha e os Doze Batutas se apresentaram. Bataclan também era o nome de um cigarro da época.
A chamada “revolução de 1924” foi intensa, mas durou apenas 23 dias na capital. Nesse período, o quartel da Força Pública foi ocupado e seu comandante, Domingos Quirino, feito refém. O palácio dos Campos Elíseos, sede do governo paulista, foi tomado e o presidente do Estado, Carlos de Campos, fugiu. Quase mil soldados nos batalhões da Força Pública e do Exército aderiram ao movimento revoltoso. Faltou água, luz e comida, os bondes deixaram de circular e mais de 300 pessoas abandonaram suas casas nas regiões do Brás e Belém, onde os bombardeios foram intensos.
A cidade parecia um campo de guerra. Ao toque de recolher, ninguém ousava sair de casa. Nas primeiras horas do dia, as crianças eram mandadas aos armazéns para comprar mantimentos básicos, que começavam a faltar.
Em julho de 1924, Pássaro Preto foi designado para o Campo de Marte, na região norte da cidade, onde o grupo de revoltosos do 1º Regimento da Cavalaria, do qual fazia parte, recebeu oficiais levantados de Quitaúna. Em meio ao tiroteio, foi ferido por uma bala que lhe atravessou as duas pernas e levado para a Santa Casa de Misericórdia, de onde saiu escondido em 20 de julho, para não ser preso. Refugiou-se na Penha, bairro suburbano de imigrantes italianos e espanhóis, muitos deles comunistas e anarquistas. Lá, ficou escondido por alguns meses. Quem sabe tomou lições de português numa das tipografias clandestinas onde se imprimiam jornais operários?
Quarto do Hotel Miranda, na rua dos Gusmões, 22, região da Luz, em São Paulo, onde Pássaro Preto foi executado.
No início de 1925, o paradeiro de Pássaro Preto foi descoberto. Foi preso, mas logo em seguida recebeu o indulto do governo de Arthur Bernardes, como quase todos os participantes da revolta, com exceção dos seus líderes. Ainda em janeiro, Pássaro Preto reincorporou-se ao primeiro regimento da cavalaria da Força Pública.
Em janeiro de 1925, o recém-criado Boletim da Força Pública publicou a ordem de reinclusão do soldado José da Silva ao 1º Regimento da Cavalaria, “(…) em liberdade em vista do último indulto concedido”.
A revolta foi debelada na capital, mas os ex-chefes tenentistas Isidoro Dias Lopes, Miguel Costa e Luís Carlos Prestes prosseguiram com suas colunas pelo interior de São Paulo e do Brasil, percorrendo mais de 27.000 quilômetros. O estado de sítio decretado pelo recém-empossado Arthur Bernardes em 1922, foi mantido até 1927. Com a derrota do movimento, seus líderes foram perseguidos e muitos, exilados.
No início do ano de 1925, o primeiro Boletim da Força Pública registrava que finalmente o “tufão violento das desditas, (…) o negro período da revolta traiçoeira, perpetrada por um grupo de maus brasileiros (…) ” que passara sobre São Paulo se encerrara. Essa era uma forma de nomear “não nomeando” o movimento revoltoso de 1924, nascido na Força Pública de São Paulo. É curioso e ao mesmo tempo emblemático que a instituição militar onde surgiu a revolta, não a tenha identificado de modo explícito, apesar de sua reconhecida importância em São Paulo.
No entanto, a, “revolução” teria ainda mais um fôlego.
Em maio de 1925, Pássaro Preto e outros soldados foram convocados por Bataclan, para fazer parte de um plano organizado por oficiais da corporação. Seu objetivo era sublevar os dois regimentos da cavalaria, soltar presos na Imigração e libertar o tenente Nicanor Eloy de Mello e Daniel Costa, irmão do líder da revolta tenentista, Miguel Costa.
Na noite do dia 31 de maio, próximo da meia-noite, Pássaro Preto e Bataclan, ajudados por mais quatro militares do quartel, dirigiram-se ao local onde eram guardadas as munições e armas, na própria cavalaria. Ali, foram surpreendidos pelos guardas de plantão e houve troca de tiros. Em meio à confusão, Pássaro Preto teria alvejado e matado um soldado e um oficial.
Assustados, ele e Bataclan correram e conseguiram pular o muro do quartel que dava para a rua João Theodoro. Dali, pararam na casa de uma família italiana conhecida no vizinho bairro do Brás, onde comeram, trocaram de roupa e seguiram em fuga para o interior, disfarçados de civis. Devem ter tomado um trem na estação do Brás, ou seguido em carona, talvez numa carroça, meio de transporte comum utilizado nos subúrbios.
Um mês depois, Pássaro Preto foi capturado enquanto trabalhava como servente de pedreiro na companhia Brasital, em Jundiaí. Outros envolvidos no plano de sedição estavam presos para averiguações. Daniel Costa confirmou o plano e a participação de Pássaro Preto e Bataclan, mas negou seu envolvimento.
Os soldados ficaram presos no regimento da cavalaria. Ali, deram trabalho. Apesar dos castigos, promoveram confusão e barulho. Defendiam o caráter político de seu crime.
Os militares foram então transferidos para o posto policial do Cambuci, “a casa terrível da rua Barão de Jaguará”, conhecida pelo emprego da violência. Lá, Pássaro Preto teria confessado o crime de homicídio em condições suspeitas. Causou estranheza a prisão de um militar num posto policial. Além disso, o procedimento comum era o encarceramento na Cadeia Pública. Foi instituída uma sindicância militar para julgar o acontecimento e aberto um inquérito na polícia civil.
Em dezembro de 1925, o Boletim da Força Pública publicou o veredicto da sindicância. José da Silva 1º, o Pássaro Preto, e Aníbal Miranda, vulgo Bataclan, foram condenados a trinta anos de prisão, grau máximo das penas do artigo 98 do Código Penal da Armada, ao qual estavam sujeitos os militares. Eles foram acusados de serem os principais autores das mortes, ferimento e arrombamento ocorridos no interior do quartel do 1º Regimento da Cavalaria da Força Pública. O conselho militar instituído para julgar o caso e o inquérito instaurado pela polícia civil, concluíram que o crime de homicídio não estava integrado à tentativa de levante e os depoimentos dos soldados eram falsos, apesar da declaração em contrário do oficial Daniel Costa.
O jornal Correio Paulistano, representante do governo e opositor ao movimento tenentista, publicou um relatório do inquérito policial sobre a tentativa de assalto do 1º Regimento da Cavalaria. Esse relato detalhado associou o episódio, protagonizado por Pássaro Preto e Bataclan, a um plano maior de sublevação organizado por ex-líderes do movimento de 1924, que pretendiam dar continuidade a essa revolta. Desde o início do ano, civis e militares organizavam-se em todo o Estado de São Paulo para planejar a ação. O plano previa a revolta dos dois regimentos da cavalaria da Força Pública, o assalto ao prédio da Imigração e a soltura dos presos políticos de 1924.
As fotos tiradas pela perícia do corpo de Pássaro Preto e do quarto onde ele estava hospedado ocuparam as páginas de vários jornais no dia seguinte.
Segundo a investigação policial, os chefes revolucionários, entre eles o conhecido coronel Philogônio Theodoro Carvalho, levantariam seus batalhões em várias cidades, como Santos, Barretos, Jaú e Iacanga. O plano ainda previa dinamitar pontilhões da Estrada de Ferro Central do Brasil e a detenção de autoridades civis e militares da capital paulista. Fora fixada a data de 1º de julho para o início do movimento. No entanto, a polícia conseguiu surpreender os insurretos e prendeu vários deles. Pelo que indica o relatório policial, os soldados do 1º Regimento da Cavalaria, não tomaram ciência da mudança de planos e levaram adiante a tentativa de assalto do quartel, parte do plano maior.
O relatório da polícia referiu-se a Pássaro Preto e Bataclan como “ferozes assassinos” e considerou falsos os depoimentos dos soldados sobre o plano de sedição e sua relação com o movimento revoltoso de 1924. O conteúdo do relatório policial foi divulgado pelo jornal Correio Paulistano, o único, entre os de maior circulação na capital paulista, a não noticiar o assassinato do soldado em 1931.
No entanto, a polícia, o Exército e a Força Pública não conseguiram debelar todas as manifestações revoltosas. Em julho, da cidade de Barretos, no interior paulista, o Boletim Revolucionário dava vivas à revolução, à República e à liberdade do povo brasileiro.
A Força Pública parece ter encerrado a questão com a condenação dos soldados. No entanto, isso não implicava no seu desligamento da instituição. O Boletim da Força Pública nunca registrou a deserção de Pássaro Preto, nem o seu falecimento.
Em fevereiro de 1928, Pássaro Preto foi julgado por um Tribunal do Júri, apesar de militar. Seu advogado de defesa foi o doutor Lamartine Mendes. O soldado era visto com simpatia pelo povo paulista por sua participação no movimento de 1924. Seu líder, Miguel Costa, era figura querida da população. No entanto, o júri não representava esse setor da sociedade.
Embora tivesse o qualificativo de popular, ele não incluía indivíduos das classes populares. A legislação era clara na definição dos critérios de renda e propriedade que excluíam da condição de eleitores os criados de servir, mulheres, religiosos, mendigos e analfabetos. O Estado não facilitava ao cidadão a tarefa de obtenção do título de eleitor, muito ao contrário.
A tese de crime político, sustentada pelo advogado, não convenceu os jurados. Pássaro Preto e Bataclan foram condenados a 16 e a dois anos e meio de prisão, respectivamente, pelo crime de homicídio e participação no mesmo. Já tendo cumprido uma parte da pena, Bataclan obteve habeas corpus e foi libertado.
Pássaro Preto permaneceu preso no posto policial do Cambuci.
Em janeiro de 1930, Pássaro Preto tentou fugir da “masmorra” do Cambuci. Após jogar farinha de mandioca nos olhos do guarda, o soldado correu, lutou com uma sentinela e foi por ele contido com um tiro no abdômen que quase o matou. Pássaro Preto foi levado à Santa Casa de Misericórdia em “estado desesperador” e, de lá, foi transferido para a enfermaria da Cadeia Pública. Após seu reestabelecimento, o cavalariano e outros prisioneiros organizaram uma revolta no presídio por causa da morte de um preso com problemas mentais. O diretor da cadeia debelou a sedição com violência.
Alguns meses depois, novamente diante do Tribunal do Júri, o próprio Pássaro Preto relatou ao juiz os maus tratos, castigos e as perseguições sofridos por ele por ordem do diretor da prisão. O soldado reclamou condições humanitárias no tratamento dos detentos. O juiz ouviu atentamente suas reclamações em claro e bom português, prometeu tomar providências e concedeu-lhe 48 horas para se apresentar novamente ao Tribunal com um advogado.
No fim do ano de 1930, o Diário Nacional entrevistou o novo advogado de Pássaro Preto, dr. Carlos Moraes Andrade, ligado ao Partido Democrático. Moraes Andrade justificou o pedido de habeas corpus para o soldado, baseado no direito ao indulto concedido aos presos políticos em novembro daquele ano pelo Governo Provisório. Vargas estava então, em fase de “lua-de-mel” com os políticos opositores do Partido Republicano Paulista.
O dr. Carlos Moraes procurou demonstrar a relação entre os crimes pelos quais Pássaro Preto era acusado e a tentativa de levante político em maio de 1925. Ele apontou as contradições no inquérito e as dúvidas acerca da confissão ocorrida no posto do Cambuci.
Seu pedido de absolvição por falta de provas e o habeas corpus foram negados pelo juiz e Pássaro Preto permaneceu preso. Quatro anos haviam se passado.
Em janeiro de 1931, o Diário Nacional empreendeu uma campanha em favor do soldado Pássaro Preto. O jornal acusou o estado de São Paulo de perseguir o militar, apontou os vícios do processo contra ele e publicou uma interessante carta de autoria não identificada. Vale a pena citá-la.
“A missiva que apresento a v.s., e junto duas fotografias, é referente ao assalto do 1º Regimento da Cavalaria, com o qual o vosso conceituado jornal já tem se preocupado mais de uma vez. Peço a v.s. caso atenda ao meu apelo, mova uma campanha a favor desses revolucionários. Pois segundo me parece eles atravessam uma situação precária. Aníbal Miranda, “Bataclan”, era uma vítima do regime antigo. Vivia frequentemente preso, sequestrado, maltratado, como se pode ver pelos sinais de seu corpo. José da Silva, “Pássaro Preto”, como v.s. naturalmente não ignora, ainda sofre entre as grades de uma prisão, apesar de ser réu de crime político, como se poderia facilmente provar.
Mas no regime passado não eram respeitados os direitos dos nossos cidadãos! Processados como réus de crime militar foram ambos condenados (…) e removidos para a Penitenciária. Os perseguidores, ainda não satisfeitos com a medida desleal por eles tomada ainda desclassificaram seu crime para crime comum, e como tal, embora a política seja outra, está sendo considerado. Diante das injustiças que acabo de narrar peço a autoridade a quem competir e que disso não pode se esquivar, mandar analisar o caso. Antecipadamente agradeço a publicação desta”.
O anônimo autor da missiva – teria sido o próprio Pássaro Preto? — amparou seu apelo em termos republicanos e democráticos. Falou em cidadania, direitos e atribuiu deveres ao Estado. Utilizou os meios de comunicação para dar publicidade aos fatos num discurso político elaborado. Seria mesmo nosso herói analfabeto? A carta era coerente com a prática do soldado de apelar às instituições republicanas – o juiz, os jornais. A chegada de Getúlio Vargas ao poder promoveu expectativas de transformações e ampliação da participação política.
O indulto era prática exclusiva do poder executivo e foi largamente utilizado pelo Governo Provisório instaurado por Vargas a partir de outubro de 1930. Os ex-combatentes de 1924, aliados políticos do novo regime, foram os principais beneficiados. No entanto, a oposição oferecida a Vargas em São Paulo por setores políticos distintos, como o Partido Democrático, que apoiou Getúlio inicialmente e o Partido Republicano Paulista, resultou em conflitos que enfraqueceram esse governo e desdobraram-se no movimento constitucionalista de 1932.
As divergências tiveram início com a nomeação de João Alberto Lins de Barros para intervenção militar em São Paulo. O Partido Democrático queria para o cargo Francisco Morato e defendia o fim da intervenção militar e a tese constitucionalista. O que havia, de fato, era uma disputa de poder ocultada sob a justificativa “dos interesses” e da “honra ultrajada de São Paulo”. Além disso, tanto para o liberal P.D. quanto para o conservador P.R.P, João Alberto aproximava-se “demais” do operariado.
Em 28 de abril de 1931, lideranças políticas ligadas ao Partido Democrático e militares da Força Pública chefiados pelo coronel Joviniano Brandão, empreenderam um movimento sedicioso para destituir o interventor militar João Alberto Lins de Barros. Apesar de breve, o levante explicitou a crise política e militar instaurada há tempos em São Paulo. A Força Pública permanecia dividida entre os apoiadores de Getúlio Vargas, representados por Miguel Costa em São Paulo, e seus opositores, ligados à oligarquia paulista, que também não nutria grande simpatia por Vargas. A discordância em relação ao golpe e a justificativa constitucionalista acabaram por unir o Partido Democrático e o Partido Republicano Paulista contra o governo federal em 1932. Não tão diferentes assim…
Apesar dos esforços do governo provisório para eliminar as divergências internas à instituição militar e com o governo recém-empossado, composto em grande parte pelos militares de 1924, os conflitos não foram resolvidos. Pelo contrário: o jogo de forças políticas levou ao afastamento de João Alberto do cargo de interventor em meados de 1931 e à diminuição do poder de Miguel Costa.
No dia seguinte à morte de Pássaro Preto, os jornais explicitaram em seus títulos a justificativa oficial, ou seja, a suposta reação do soldado à prisão e a “luta sangrenta” que teria decorrido de um suposto enfrentamento. Não obstante, as reportagens indicavam as dúvidas e contradições que cercavam essa morte. O Diário Nacional publicou:
“Pássaro Preto, cuja morte trágica verificada ontem a noite é assunto dessa reportagem, tornou-se elemento conhecido na crônica da cidade desde 1925, quando, com seu companheiro “Bataclan”, tentou sublevar o Regimento da Cavalaria para dar liberdade aos presos que se achavam nesse quartel. Desde aí passou a curtir as maiores provações. A revolta fracassou, causando mortes, pelas quais ele sozinho respondeu com os maiores martírios. Peregrinou por todas as prisões da capital, pelas geladeiras do Gabinete de Investigações e do Cambuci, e, afinal, a fuga arrojada desse presídio custou-lhe cara, pois foi baleado pela sentinela, restabelecendo-se após doloroso tratamento. (…)
No dia 11 de junho de 1931, o título da reportagem do mesmo jornal questionava: “Pássaro Preto teria sido sumariamente fuzilado pela escolta que o foi prender – Quem teria feito uso do revólver do infeliz soldado?”
Embora esperado, o trágico fim de Pássaro Preto causou viva impressão no espírito público. As circunstâncias que rodearam sua morte, levando a todos a impressão de um sumário fuzilamento, concorreram para criar a suposição de que o infeliz soldado, temível por sua valentia, caiu vítima de uma tocaia, ardilosamente preparada pelos que não tinham coragem de prendê-lo em pleno dia.
Pássaro Preto previa o seu fim. “Sou perseguido pela polícia – dizia-nos ele dias antes do crime. – Não sei o motivo, pois não sou criminoso e não faço mal a ninguém. Ando livremente o dia todo e não me prendem, mas a noite andam me espreitando nos hotéis em que durmo.
E foi efetivamente o que aconteceu. A escolta, que não teve coragem para prendê-lo na rua, esperou que ele se acomodasse no quarto do hotel para ali penetrar e matá-lo no próprio leito. Por que motivo não foi cercado o hotel Miranda, desde que já se sabia que Pássaro Preto era um indivíduo impulsivo, ou não foi requisitada a presença de um oficial ou de uma autoridade para que se evitasse a chacina?
Após ouvir os tiros, Bento, o proprietário do hotel, correu em direção ao quarto. Logo que entrou, viu um homem que jazia na cama. O rosto estava coberto de sangue que escorria abundantemente pelo assoalho de tábuas estreitas e mal enceradas.
No dia 12 de junho, o Diário Nacional insistia: “Cada vez mais denso o mistério que envolve a morte de Pássaro Preto. Teria ele, de fato, tentado resistir à escolta que o foi prender? “Esse jornal publicou as conclusões da polícia técnica e exigiu: “ As autoridades devem providenciar energicamente para que se dissipem essas suspeitas”.
A prova testemunhal, muito pequena, não está por inteiro acorde com as conclusões da Polícia (…). A cama ocupada por “Pássaro Preto”, colocada verticalmente em relação à porta, afastava-se dessa ligeiramente, tanto assim que o espaço era ocupado por uma cadeira, onde o militar deixara sua farda. No entanto, os ferimentos recebidos são todos à queima-roupa(…). É estranhável assim, que os criminosos, conhecendo, de sobra, as valentias do companheiro, ousassem penetrar no seu quarto para matá-lo, se é de facto que ele estava acordado. (…) Pássaro Preto, fotografado pela Polícia Técnica, acha-se sobre a cama, voltado de costas para a porta, posição em que foi alvejado, segundo os cálculos mais prováveis. A arma estava encostada à sua mão, numa posição forçada e estranha, para quem teve morte fulminante. Que motivo teria ele para, intencionando uma resistência, voltar-se imediatamente de costas para os prendedores, sabendo também que eles estavam armados? Pois, se Pássaro Preto atirou, de facto, apanhou o revolver na cadeira ou no chão, do mesmo lado, voltando para a porta. (…). Então, ter-se-ia orientado sobre a direção dos perseguidores, já que provocava a resistência, procuraria logicamente lutar de frente(…). Poderíamos ainda apontar outros dados. A falta de chamuscamento no dedo indicador da mão direita da vítima, vestígios que parecem ser de balas, pelas paredes do quarto, a pontaria certeira dos atiradores, (…).
O jornal Progresso, produzido e publicado por negros noticiou em junho de 1931: “Pássaro Preto. É preciso que se tire a dúvida que suscitou sua morte. A crônica policial registrou, há dias, um facto impressionante: a diligência para a captura de José da Silva, o cavalariano que se tornou famoso pela violência dos factos em que tem sido protagonista desde 1925, quando pretendeu revoltar o 1º Regimento da Força Pública. Depois de uma acidentada permanência na prisão durante a qual nunca perdeu oportunidade, desassombradamente, de retornar à liberdade, Pássaro Preto foi ultimamente julgado pelo júri e condenado. A classificação de seu crime provocou estranheza a muita gente, que não via nele um delito comum. E tanto havia motivo para essa estranheza que José da Silva obteve do governo revolucionário a concessão de indulto. Mas, em liberdade, Pássaro Preto não se sentia satisfeito. Não achava jeito de ficar sob as ordens de pessoas contra as quais se revoltara. Apesar disso, entretanto, foi incorporado ao seu regimento, ao qual não se apresentou dentro do prazo legal, sendo considerado desertor. A sua captura, efetuada em condições trágicas, valeu-lhe a morte. Este é o capitulo grave da questão, que as autoridades estaduais precisam examinar rigorosamente. A resistência à prisão teria sido a causa de sua morte. Mas é necessário que um inquérito absolutamente preciso venha caracterizar bem o facto impressionante, cuja narrativa deixa uma poeira de dúvidas(…). No compartimento em que dormia Pássaro Preto outras pessoas repousavam. Eram operários cujo testemunho no inquérito talvez traga a clareza necessária para a obra de justiça que o caso requer. Qualquer desídia no apurar e punir os responsáveis, criaria um precedente perigoso”.
A escolta que matou Pássaro Preto fora composta pelos sargentos Antônio do Nascimento, Dorival Pereira de Almeida e Antônio Francisco dos Santos, além do anspeçada Antônio Cardoso de Miranda e do soldado Ernesto Antônio Ferreira, todos do primeiro regimento da cavalaria da Força Pública de São Paulo. Em depoimento à polícia, eles afirmaram que cumpriam ordem de capturar o soldado, vivo ou morto.
Partiu, portanto, dos oficiais do primeiro regimento da cavalaria, uma ordem de captura que não excluía a possibilidade de assassinato do soldado.
No dia 24 de junho de 1931 os jornais noticiaram a conclusão do inquérito pelo delegado Carvalho Franco. O Diário Nacional nomeou Pássaro Preto como “revolucionário de 1925”, apontou o desaparecimento da colcha da cama do soldado e exigiu: “(…) Eis aí novos argumentos que a polícia está na obrigação de desmentir, já que fez do assassinato de Pássaro Preto um caso meramente acidental”.
O laudo pericial referente à morte de José da Silva, foi assinado pelo renomado perito Moysés Marx em 18 de junho de 1931. Segundo a perícia, o soldado recebeu cinco tiros, todos do lado direito do corpo: dois na cabeça, dois no lado do rosto, quase na orelha, e um nas costas, próximo ao ombro. Uma bala compatível com o revólver de Pássaro Preto, atingiu o teto do quarto. Os peritos afirmaram que sua posição podia ser explicada por um provável desvio do braço da vítima no momento do disparo, efetuado, talvez, por um dos encarregados de sua captura.
Embora o documento não tenha sido conclusivo quanto ao fato de Pássaro Preto estar dormindo ou não quando recebeu os disparos, é inequívoco quanto à posição de seu corpo no momento em que foi alvejado. Ele estava deitado, de costas para a porta. Essa é a posição de seu corpo nas fotografias tiradas pelos peritos e publicadas pelos jornais.
O laudo também concluiu que o corpo fora mexido, o que explicava a posição da arma e do cinturão encontrados sobre o corpo do soldado quando a polícia chegou ao local. A bala que atravessou as costas do soldado não foi encontrada. Não havia resíduo de pólvora em seu dedo indicador, embora houvesse no seu polegar. Os peritos sugeriram que ele pode ter tentado se levantar porque estava descoberto do meio das pernas para cima, mas não teve tempo de sair da cama. Seus pés ainda estavam cobertos.
Desde a década de 1910, o governo vinha investindo na modernização da polícia – trouxe técnicos estrangeiros, como o famoso criminologista suíço Rodolphe Archibald Reiss, criou o Gabinete de Investigações, ligado à Secretaria de Segurança Pessoal e enviou profissionais para treinamento na Europa. A instituição da polícia científica no estado acompanhava o progresso da sociedade. Os delitos e crimes cresciam e se diversificavam na proporção em que a pobreza era criminalizada. A vadiagem era considerada crime, os criminosos ou suspeitos pobres, tratados pela polícia e imprensa de forma brutal. Os grandes crimes ganhavam popularidade, na mesma medida em que delegados, como Carvalho Franco, titular do Gabinete de Investigações da Delegacia de Segurança Pessoal, ganhavam poder.
Na década de 1920, a imprensa se manifestava como guardiã da moral, enaltecendo padrões considerados civilizados, divulgando e cobrando ações moralizadoras das autoridades, como fizeram os jornais da Capital paulista em relação ao julgamento de Pássaro Preto. À exceção do Correio Paulistano, defensor da tese de legítima defesa dos soldados que alvejaram Pássaro Preto, os jornais manifestaram abertamente as dúvidas que cercavam o julgamento, a condenação e a morte do cavalariano.
Em 4 de julho de 1931, o Diário Nacional noticiou o envio do inquérito sobre a morte de Pássaro Preto para o Fórum Criminal. Em 29 de dezembro de 1931, A Gazeta e o Diário Nacional noticiaram a pronúncia dos assassinos de Pássaro Preto pelo juiz da 4ª vara criminal, dr. Herculano de Carvalho. Em seu despacho, baseado no laudo pericial realizado pela polícia técnica, ele considerou que:
A resistência oposta pela vítima é inverossímil. O projétil que se diz ter partido da arma empunhada pela vítima, segundo o parecer da Polícia Técnica, foi alojar-se no teto. Não há vestígio de luta no quarto onde se deu o crime. A vítima não chegou a levantar-se do leito.
A arma encontrada com o soldado.
Em abril de 1932, esses periódicos publicaram a condenação dos militares do 1º regimento da cavalaria da Força Pública de São Paulo, Antônio Cardoso de Miranda e Ernesto Antônio Ferreira a doze e dez anos e meio de prisão celular, respectivamente. Ambos foram incursos no artigo 294 do Código Penal, por haverem assassinado a tiros de carabina o soldado José da Silva, vulgo Pássaro Preto. A defesa apelou e o processos foram separados.
Nessa data, o jornal O Estado de São Paulo noticiou o julgamento dos militares que “assassinaram José da Silva, vulgo Pássaro Preto, quando dormia, a tiros”. A circunstância da morte do soldado parece ter sido assumida pelos jornais como um fato, ainda que não tenha sido comprovada pela perícia.
Embora o laudo da polícia técnica tenha desmentido a versão de seus assassinos, de que Pássaro Preto teria reagido à prisão e por isso foi morto, o soldado Ernesto Antônio Ferreira foi inocentado em segunda instância pela morte do cavalariano. Em junho de 1932, o Diário Nacional noticiou o julgamento e a absolvição do militar por unanimidade pelo Tribunal do Júri. A mesma instituição que condenou Pássaro Preto duas vezes.
Os advogados dos réus, Synésio Rocha e Diógenes Ribeiro Lima, sustentaram a tese da defesa no cumprimento de ordens e do temor dos réus de uma atitude agressiva de Pássaro Preto. Apesar de ter sido provado que a vítima se encontrava deitada, desarmada e muito provavelmente dormindo, quando a escolta invadiu o quarto número 6 do hotel Miranda. Segundo os advogados, o réu teria cometido um “homicídio legal”, na expressão dos tratadistas de direito penal.
No dia 19 de junho de 1933, foi novamente julgado o militar Antônio Cardoso de Miranda, chefe da escolta que matou Pássaro Preto, condenado a doze anos no primeiro julgamento. Nessa ocasião, o promotor, dr. Basileu Garcia, lembrou que Pássaro Preto era tido pelo povo de São Paulo como um “valente”.
O réu foi absolvido por seis votos sob a alegação de “perturbação dos sentidos e da inteligência”. Os jurados ignoraram a tese da promotoria. Dessa forma, inocentaram os assassinos e reiteraram as duas condenações anteriores sofridas por Pássaro Preto.
O Boletim da Força Pública de São Paulo não publicou a ordem de prisão por deserção de Pássaro Preto no início de junho de 1931, como era a prática da instituição, tampouco noticiou sua morte, em 9 de junho do mesmo ano. Em 1925, quando foi criado, o Boletim publicou a ordem de reincorporação de vários oficiais envolvidos no movimento de 1924 e indultados pelo governo de Arthur Bernardes. Porém, não explicitou que o perdão concedido se devia à participação desses militares no movimento revoltoso dos tenentes, conhecido como “Revolução de 1924”. Ainda que houvesse referências a esse acontecimento, elas não eram explícitas. Como se o apagamento desses registros eliminasse o fato da memória e da História. Com a chegada de Vargas ao poder em 1930, essa revolta passou a ser nomeada nos registros oficiais da Força Pública porque os líderes revoltosos faziam parte do novo governo.
No dia seguinte à morte de Pássaro Preto, os jornais explicitaram em seus títulos a justificativa oficial, ou seja, a suposta reação do soldado à prisão e a “luta sangrenta” que teria decorrido de um suposto enfrentamento. Não obstante, as reportagens indicavam as dúvidas e contradições que cercavam essa morte.
A polícia, no entanto, precisava registrar os fatos. O controle, a vigilância e a punição sustentavam-se na investigação e nas provas, e o governo esforçara-se para atribuir um caráter mais “técnico” e moralizante às suas ações, cobrado por uma sociedade que se modificava. Essa foi uma das contradições de um Estado e uma sociedade que buscava apagar os conflitos da história em seus registros oficiais por meio de suas instituições. No entanto, eles existem, existiram e deixam rastros.
Os processos referentes à condenação de Pássaro Preto por uma sindicância militar em 1925 e pelo Tribunal do Júri, em 1928 e 1930 não foram encontrados. Tampouco os processos dos julgamentos dos dois homens que mataram o soldado em 9 de junho de 1931. Eles não se encontram nos arquivos da Polícia Militar nem nos da Justiça civil. A questão sobre o paradeiro desses documentos não se encerra com seu desaparecimento. Ela diz respeito à inscrição e ao estatuto da memória das mulheres e homens negros na história do Brasil e, portanto, ao estatuto e inscrição da memória na história da nação brasileira.
Antes de ser executado por soldados da Força Pública de São Paulo, poucos dias depois do indulto concedido por Vargas, Pássaro Preto foi simbolicamente eliminado por aquela instituição. No entanto, o soldado nunca perdeu a oportunidade de reivindicar publicamente o estatuto político do crime imputado a ele. Pássaro Preto afirmou, sempre em bom português, sua participação na revolta de 1924 e na tentativa de sublevação do 1º regimento da cavalaria em 1925 para soltar oficiais presos daquele movimento. Acusou as injustiças de que foi vítima por parte das instituições e da sociedade que o condenou duas vezes e, dessa forma, foi cúmplice de seu assassinato.
Ele não teve filhos nem se casou, não frequentou uma escola formal nem teve tempo de aprender um ofício. Mas falava com fluência e correção e se vestia com elegância. A última notícia publicada pelo Diário Nacional sobre Pássaro Preto ainda vivo, soa como uma despedida: “(…) E Pássaro Preto despediu-se, enquanto observávamos sua elegância, seu casaco de escol, polainas cinzentas, chapéu cinzento com fita branca (…)”.
*Agradeço a Noel dos Santos Carvalho, Sibelle Pedral e Claudia R. Mesquita.
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FONTES CONSULTADAS
-Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp)
-Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo
-Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo