setembro de 2011
MÃE PRETA: MEMÓRIAS E MONUMENTOS NEGROS
Alexandre Araujo Bispo
ilustração VICTORONE
Na cidade de São Paulo não são muitos os monumentos que homenageiam personalidades, eventos e datas históricas relativas à presença dos negros. Talvez o monumento mais antigo seja o busto de Luiz Gama, no Largo do Arouche, feito em 1931 por Yolando Mallozzi e que foi encomendado por uma comissão de intelectuais negros liderados por José Benedito Correia Leite (1900-1989). Essa quantidade diminuta de monumentos reflete assim, a forma pela qual a participação dos negros e afrodescendentes na formação do país por pouco passaria invisível não fossem os esforços de antigos militantes negros, que já nas primeiras décadas do século 20 intentaram convencer o Estado a reconhecer publicamente, por meio da construção de uma escultura, a importância de seus antepassados para a construção da nação.
Em meados dos anos 1920 alguns militantes negros, dentre os quais vários jornalistas e intelectuais, tiveram a idéia de fazer uma escultura representando a Mãe Preta. O objetivo era chamar a atenção para a importância dos negros na formação do país. Tratava-se de justa homenagem à imagem da mulher negra que conheceu e geriu como ninguém o mundo doméstico, que deu a vida por bebê alheio, que ensinou as primeiras palavras, cantou para dormir as moças apaixonadas, tirou piolhos e deixou dengoso os futuros donos do poder.
Essas mulheres seriam a representação do trabalho, do amor e da negação de si próprias e, estavam eternizadas na memória de muitos brasileiros negros e brancos naquele inicio de século. Embora não faltassem, desde a idéia inicial, os contrários a esse elogio a um passado que para alguns devia ser esquecido.
O plano daqueles militantes era que a escultura fosse erigida no Rio de Janeiro, então capital federal, mas houve recusas e com o advento da Revolução de 1930 a idéia foi abortada. Os anos 1930 no Brasil foram marcados pela eleição de alguns símbolos nacionais como o samba, a mulata, a feijoada o culto a Nossa Senhora Aparecida. Essa foi uma estratégia populista do governo Getúlio Vargas para conter a pressão que muitos negros faziam em favor de reconhecimento e visibilidade política, social e cutural. Curiosamente, ao mesmo tempo em que o samba tornava-se um símbolo nacional, casas de candomblé sofriam com a repressão policial, e os capoeiristas não raro eram vistos também como malandros, desempregados e perigosos na visão das elites.
Segundo a historiadora Maria Aparecida de Oliveira Lopes, que estudou a atuação da imprensa negra em São Paulo, “Os negros paulistas que escreviam nos jornais alternativos, entre 1940 e 1960, escolheram como figura central da história do negro brasileiro uma representante da ala feminina: a mãe negra”. As muitas mães negras foram mulheres compradas, ainda moças entre 13 e 15 anos de idade para desempenhar serviços domésticos: lavar, passar, arrumar a casa e ser a mãe das crianças ricas. Em 1953, ainda, segundo Lopes, a Folha da Noite informou que o Clube 220, entidade que reunia a “família de cor” de São Paulo, por meio de seu presidente o Sr. Frederico Penteado Junior, sugeriu à Câmara Municipal a ereção do busto da Mãe Preta em uma das praças públicas da cidade. Novamente como nos anos 20 houve resistência do prefeito, mas depois de apelações seguidas e a reunião de mais de 500 assinaturas o pedido foi aceito. O lugar escolhido para abrigar a escultura foi o Largo do Paissandu, local já bem conhecido à época por sua igreja dos negros que ali se instalou em 1903, após a irmandade do Rosário de Nossa Senhora dos Homens Pretos ser obrigada a desapropriar o terreno no Largo do Rosário ocupado desde o século 18, onde hoje é a BMF. A presença dessa igreja na zona central nunca foi algo tranquilo, sua inauguração em 22 de abril de 1908 ocorreu, embora os moradores protestassem que com a construção a praça perderia sua beleza original. Mais tarde, em 1940, a igreja sofreria ameaças de demolição, especialmente com o desenvolvimento da Cinelândia cujo público dos cinemas eram as elites. O prefeito Prestes Maia intencionou substituir a igreja por um monumento a Duque de Caxias, mas sem sucesso. A igreja foi e é um templo modesto com dificuldades de se manter, de alocar recursos para restauração do seu edifício e da praça como um todo.
IV CENTENÁRIO
Em 1954 São Paulo comemorava seu IV aniversário. Esse evento foi muito importante na história da cidade que tinha em torno de três milhões de habitantes. Grande parte dessa população morava nos subúrbios e as ruas da zona central concentravam o comércio e os serviços, educação e cultura. As celebrações duraram um ano e com ela não só o monumento a Mãe Preta foi inaugurado, mas também o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, que estava na fila de espera desde os anos 20.
Inaugurada em 1955, no fim das celebrações do aniversário da cidade, após concurso venceu o escultor Ibirapuera, pseudônimo de Julio Guerra (1912-2001), artista descendente de família nobre de Santo Amaro, formado na Escola de Belas Artes. A aparência de estilo moderno da escultura desagradou militantes, como o jornalista e escritor negro José Benedito Correia Leite. Em sua opinião a escultura não representava a mulher negra bonita, educada e arrumada que foram as amas de leite. O que desagradou Correia Leite foram os exageros comuns ao traço modernista: os pés e as mãos enormes como símbolos da atividade produtiva da Mãe. Basta lembrarmos que A negra da artista Tarsila do Amaral tem a boca e o seio enormes e figuras negras como o homem da tela Café, de Candido Portinari tem seus pés e mãos arranjadamente desproporcionais.
FLORES
A partir de 1960 o Clube 220 com auxilio de fiéis do candomblé começou a comemorar o Dia da Mãe Preta em 13 de maio, realizando festividades em torno da estátua. Em 1970 tanto o prefeito de São Paulo quanto o arcebispo assistiram ao evento anual e, em 1972, o 220 conseguiu trazer à capital paulista o presidente Médici. Durante a festividade, que reuniu em torno de 10 mil pessoas, o presidente, em gesto que também foi acompanhado pelo então Governador de São Paulo, Laudo Natel, depositou flores aos pés da estátua. Essa atitude ocorre ainda hoje, e diante ou em cima da estátua são feitas oferendas de flores, cigarros, bilhetes com pedidos, o que tornou a imagem uma evocação da Preta Velha do imaginário popular.
Mas foi ainda nos anos 1970, com o fortalecimento da militância negra na forma de um expressivo movimento social, que a figura da Mãe Preta sofreu críticas contundentes. Para alguns militantes essa imagem só servia para a elite. Certos ativistas chamavam a atenção para o fato de que a Mãe era um agente, um sujeito histórico e biográfico não apenas a empregada submissa e passiva, cuidando da elite desde a mais tenra infância.
TRANSFORMAÇÕES DE SIGNIFICADO E NOVAS FORMAS DE MONUMENTO
Os significados de um monumento se modificam ao longo dos anos e, nem sempre as intenções que lhe deram origem permanecem, pelo contrário, o que ocorre é uma sobreposição de sentidos. Isso acontece com o monumento à Mãe Preta que tanto simbolizou a Ama de Leite, quanto a Preta Velha, tanto a mãe de todos quanto a doadora de vida para as elites. Nos dias atuais a praça que abriga esses dois símbolos (Estátua e Igreja) da história dos negros em São Paulo está entregue pelo poder público à sujeira e, longe do perfume das flores que poderiam ser depositadas aos pés da estátua predomina o cheiro forte de urina e miséria que deteriora tanto as paredes da igreja quanto a base do monumento.
A escultura foi reconhecida como patrimônio histórico em 2004, lá se vão sete anos e, pouco ainda foi feito para garantir a permanência e integridade dessa escultura que faz parte dos esforços de militantes negros por reconhecimento e participação da população negra nos destinos da cidade.]
Atualmente há outras formas de chamar a atenção para a importância da memória de acontecimentos marcantes relacionados à memória negra e afro-brasileira. O grupo Frente 3 de fevereiro por exemplo, fez uma ação monumentalizante para relembrar a memória do jovem dentista Flavio Santana, negro, 28 anos, morto pela polícia de São Paulo por racismo em 3 de fevereiro de 2004. A atitude do grupo sofreu represálias como a destruição da obra, espécie de lápide que fizeram em homenagem ao jovem assassinado, no local mesmo da tragédia. Conto este episódio para mostrar que a memória dos eventos deve ser construída e que se não for registrada ou preservada de alguma forma se perderá na noite escura do tempo que a tudo encobre.
Fica um desafio para todos nós, que é erigir outros monumentos que lembrem a memória afro-brasileira: nomes de ruas, templos religiosos, casas de antigos moradores de bairros periféricos, lugares de realização de saraus literários, que daqui a alguns anos se tornarão referências para os jovens do futuro, e mesmo os registros da memória oral, porque a cidade é também a memória sentimental que temos dela. O hoje um dia será lembrado como algo antigo.