dezembro de 2020

UM CORPO NEGRO EM MOVIMENTO: UMA CONVERSA CINEMATOGRAFADA COM MACÁRIO

Marco Aurelio da C. Correa

 

 

 

 

 

fotos acervo do artista
/// chuck martin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No isolamento social imposto pela quarentena troquei uma ideia por vídeochamada com o radiante Macário. Nascido no primeiro ano da década de 1990, em São João de Meriti, na baixada fluminense, no Rio de Janeiro, Macário é um dos expoentes de uma nova geração carioca de cineastas negros que mantém vivo o legado de Zózimo Bulbul.

 

Considerado o primeiro cineasta negro do país a dirigir um filme onde a questão negra ocupou o centro narrativo da obra – falamos do curta metragem Alma no Olho (1971) – Zózimo teve uma trajetória de conquistas, observada, por exemplo, quando do lançamento do longa-metragem Abolição (1988). Mas também de desapontamentos ao viver a dificuldade de se fazer cinema no Brasil. Entre os maiores legados de Bulbul certamente estão o Centro Afro Carioca de Cinema e o Encontro de Cinema Negro, que desde o começo dos anos 2000 reúne anualmente cineastas de toda diáspora africana no tradicional Cinema Odeon para celebrar, prestigiar e discutir as produções cinematográficas de negras e negros mundo afora.

 

Em meu encontro com Macário, de maneira bem despojada, conversamos sobre as formas como ele se reinventa, mantendo-se criativo, durante a pandemia. Discorremos sobre sua trajetória de cineasta e os desafios de representar o corpo negro nas telas do cinema, uma constante que perpassa toda sua cinematografia.   

 

 

 

 

 

 

Dançarino, ator, poeta… Macário é artista de múltiplas linguagens.

 

 

 

MARCO AURÉLIO CORREA: Na última temporada do CineMacaRio acompanhamos uma retrospectiva dos seus filmes e fiquei curioso sobre como se deu essa sua paixão. Era um sonho seu desde pequeno ser cineasta?

MACÁRIO: Cresci numa casa que sempre teve essas malas de foto. Minha família sempre foi muito viciada em câmera analógica e na revelação desses filmes… Então, de certa maneira, eu acho que nasce aí o cineasta, esse cara que trabalha com a fotografia, porque o cinema é fotografia em movimento. Então o cinema já estava ali, me esperando, eu nasci nesse lugar.

 

Aí começo a fazer vídeos experimentais a partir dessas fotografias. Mas acho que o cinema chegou mesmo depois que eu fui morar na Europa, em Paris, onde tive oportunidade de estudar direção de fotografia, na La Fémis. Acho que aí sim, eu entendi de fato o que é cinema, que precisava de uma técnica, como ele se dividia, que eu tinha que escolher uma função pra fazer, mas na verdade eu nunca escolhi porque sempre quero fazer tudo nos meus filmes.

 

 

MAC – Sabemos da dificuldade de fazer cinema no Brasil, principalmente para pessoas pretas como nós. Você acha que realiza o sonho de outras pessoas de ocupar esse lugar como um cineasta negro?

MACÁRIO: Eu vejo isso como representação. Acho que as pessoas se sentem representadas pelas coisas que faço. Porque o pai do cinema negro, Ousmane Sembène (1923-2007), quando ele tinha quatorze anos, o sonho dele era se tornar um cidadão francês, porque o Senegal ainda era colonizado pela França, e o que eles estudavam na escola era total referência a essa Europa que eles não tinham conhecimento. Quando descobriu alguns livros de artistas africanos, a partir daí ele começou a ter orgulho de quem era, porque conseguia ver em algum outro lugar projetada a imagem que parecia tanto com ele, com os familiares dele.

 

Eu acredito que quando eu faço os meus filmes, na perspectiva das coisas que eu vivi, das coisas que eu vejo, pelas pessoas que estão ao meu redor, de alguma forma tem um efeito semelhante.

 

 

 

Doces sonhos (20 min)
dir. Macário, Arthur Pereira
Brasil
2017

 

 

 

MAC – Então você acha que por ter essa representação, do auto reconhecimento na experiência do cinema, isso pode ajudar as pessoas a superarem algum tipo de trauma? Como em Pequena África (2018), que tem aquela cena dos escravizados recém-chegados do navio negreiro sofrendo; até no caso de Doces sonhos (2017), que expõe a realidade de mães que tiveram filhos vítimas da violência policial. 

MACÁRIO: A gente vê muito como exemplo essa experiência da classe dominante, os brancos. A gente vai pegar que uma das maneiras de superar o trauma que me você pergunta é a análise. E os brancos fazem muito análise, o que não está muito no nosso entorno, nas nossas possibilidades, como um todo, assim como a classe dominante está inserida. Acredito que toda forma de pensar e fazer reflexão é importante para superação, e uma vez que a gente não tem tantos acessos a coisas do tipo, como uma terapia, o audiovisual pode ter esse efeito. Acho que de alguma forma enxergar, ter uma autorreflexão sobre aquilo, quando as coisas não só estão na sua mente, mas refletidas ali à sua frente, também é uma maneira de superação, de reflexão, de estudar e de ver novas possibilidades.

 

 

 

MAC – Pensando nesses corpos negros que estão sempre aparecendo nos seus filmes eu vejo que a questão da sexualidade tem se tornado frequente no seu trabalho, vide Corpo preto, movimento (2017) e Sexy, Bitch! (2019). Como nasceu essa vontade de falar desse tema, de fazer cinema desse jeito?

MACÁRIO: Eu agora estou fazendo o Full of affection, no período de pesquisas, e com vontade de fazer uma trilogia ou bem mais do que isso, uma série. Quando fui morar em Santa Teresa conheci uma pessoa que mudou muito a minha vida, a Giovana Bombom. E – caraca! – ela estava no mesmo setor que o meu, mas ao mesmo tempo era tão diferente, mas a gente falava de audiovisual. Só para situar, a Giovanna Bombom é a primeira afropornstar da indústria pornô, inclusive ela foi convidada para estrear pela Brasileirinhas, mas teria primeiro que alisar o cabelo pra fazer as cenas, aí ela se recusou, até que ela chega na Sexy Hot e vira uma pornstar. Só que mais do que isso, eu vi a vida da Bombom de perto, porque a gente praticamente morava na mesma casa. Pela primeira vez na minha vida eu comecei a enxergar bem de perto a realidade de uma pornstar preta, no meio dessa sociedade machista, misógina, escrota. Aquilo foi chegando muito perto de mim, e eu vi a necessidade de trabalhar com a Bombom, porque tocava muito em mim, e eu achava que a sociedade precisava entender mais.

 

 

 

Sexy, Bitch! (2019)

 

 

 

Aí as pessoas começaram a brigar, falando da hipersexualização, e a primeira coisa que eu fiz foi me perguntar para depois perguntar para as pessoas o que é a hipersexualização, e pra isso fui estudar muito (Frantz) Fanon pra ter os conceitos, mesmo a academia sendo brochante, porque ela não te deixa ser original sem basear sua ideia em alguém, e eu venho de uma linguagem da poesia, do roteiro cinematográfico.

 

Com isso tudo eu entendi que hipersexualização é quando, por exemplo, eu passo na rua e um branco aponta pra mim dizendo que o meu pau é grande porque sou preto. A gente transforma a sexualidade num tabu e a gente não pensa sobre isso. Por que, se a sexualidade também está presente nos nossos corpos? A minha real proposta é exaltar nossos corpos, porque somos seres sexuais, temos tesão, precisamos conversar sobre isso. Consumimos pornografia como qualquer outra pessoa na face da terra. E, cara, eu fico muito excitado de produzir o que eu chamo de “pós-pornô”. Eu nem chamo de “pornozão” também. Não que tenha algum problema, mas eu acho que existem essas nomenclaturas, né?

 

 

MAC – Os corpos negros não são vistos historicamente como padrão de beleza, o desejo por eles só aparece em forma de consumo hipersexualizado. Como você vem recebendo a reação do público a esses filmes? Pensando nessa brincadeira que você faz entre arte e pornô, sagrado e profano.

MACÁRIO: As pessoas ficam muito chocadas. Porque acho que eu trabalho muito com esse sistema do cinema-verdade. Então, tirando como exemplo o próprio Sexy, Bitch!, eu trago esse pós-pornô, a figura da Bombom, que é uma pornstar conhecida, reconhecida, com milhares de seguidores, mas assim como eu também trago as necessidades da sexualidade de uma mulher preta, como a própria questão da masturbação. Porque a masturbação feminina é um tabu que não deveria ser, inclusive as mulheres deveriam a cada dia mais conhecer o seu próprio corpo – o autoprazer – e não depender tanto da figura masculina. Mas ao mesmo tempo eu trago a verdade, que é a vivência.

 

“Pós-pornô é a liberdade de exaltar a nossa sensualidade negra além da hipersexualizaçãoo branca”.

O filme inicia com um áudio da Bombom. A Bombom foi convidada pra fazer um videoclipe duma banda qualquer, e no dia da gravação, eles ligaram pra ela e disseram que foi cancelada a gravação. A Bombom acompanhou o processo e viu que várias meninas brancas estavam presentes no clipe. Ela ficou muito mal com isso, e eu falei: “Amiga, faz uma poesia, bota pra fora. Eu acho que a melhor forma de botar pra fora é em forma de arte, e você é uma artista”. Aí ela faz a poesia que termina o filme e me manda, minutos depois, por Whatsapp. Inclusive, no filme está o áudio original desse dia em que a Bombom me mandou a gravação. Eu até me arrepiei. Quando a Bombom me manda a gravação, eu falo: “Caralho! Isso é um filme!”. Então eu acho que esse processo de falar a verdade deixa as pessoas muito chocantes, pois ao mesmo tempo elas estão nesse tabu…

 

O conceito do pós-pornô é discussão sobre política também, com base no cinema de vanguarda, eu e bombom começamos a pensar no que seria esse pornegro (pornô + negro), o que foi acontecendo nos nossos filmes. Pós-pornô é a liberdade de exaltar a nossa sensualidade negra além da hipersexualização branca. A sensualidade mexe muito com meu tesão, os efeitos disso transbordam em mim em forma de arte. Por isso chamo esses meus filmes de afrochancadas futuristas, banhadas nas águas do surrealismo.

 

 

 

Giovana Bombom, durante as filmagens de Sexy, Bitch! (2019)

 

 

 

MAC – Como funciona o seu trabalho lá no Centro Afro Carioca de Cinema? Como é a sua relação com o pessoal de lá? Isso tem te ajudado na sua projeção como cineasta?

MACÁRIO: Eu fui atropelado no mesmo dia em que o Zózimo morreu. E acho que isso diz muita coisa. Quando eu cheguei no Centro Afro Carioca de Cinema, eu fiz alguns cursos, primeiramente. Depois estreei no festival como cineasta. No meu primeiro ano como cineasta apresentei Doces Sonhos e Corpo Preto, foi incrível pra minha vida. Aí eu fui morar na Bahia depois de um tempo. Voltei, e numa festa recebi o convite para ser fotógrafo do Ponto de Cultura.

 

Eu comecei a ficar muito próximo da Biza, e aí eu também fui diretor de produção nesse mesmo ano. Ia ser só o fotógrafo do curso, mas acabei sendo o diretor de produção do filme que eles produziram. Eu ajudei os alunos no decorrer. Me doei. A Biza gostou tanto disso tudo que me convidou pra ser assistente pessoal dela. Com isso, acabei virando residente artístico da casa. E ela me deu o presente que foi cuidar do acervo do Zózimo.

 

 

 

Desamor (5 min)
dir. Macário
Brasil
2018

 

 

 

 

MAC – Como é esse acervo?

MACÁRIO: De tudo. Desde os anos 1980 o Zózimo coleciona memórias do preto na sociedade. Então vai desde jornais, textos, roteiros, projetos, filmes. Dia desses eu encontrei a película de Alma no Olho (1971). Demais roteiros que ele vai guardando ali, agendas, cartas, desenhos. Cara, uma série de informações que vai ser importante quando isso for pro mundo. Estou nesse processo de catalogar a vida do Zózimo na minha pesquisa do mestrado.

 

 

 

Zózimo Bulbul (1937-2013)

 

 

 

MAC – Então, Macário, foi isso. Pra terminar, aquela clássica: quais são seus planos futuros, o que você tá planejando, o que tem na sua cabeça?

MACÁRIO: Eu quero fazer um doutorado e ficar ainda mais próximo do Zózimo. Foi um grande presente cuidar do acervo dele, virar mestre em Zózimo Bulbul. Também pretendo lançar no próximo encontro de cinema, que a gente não sabe quando vai ser, a versão final de Corpo preto, Movimento. Em 2018, eu fiz uma pequena versão que tinha como artistas o Rodrigo Nascimento, a Giovana Bombom e a Marcela Lisboa. Agora nessa finalização, vamos apresentar 30 corpos no mesmo filme.

 

 

Quarentena Noir (10 min)
dir. Macário
Brasil
2020

 

 

Estou estudando muito pra completar a trilogia de Sexy, Bitch!. O segundo vai ser o Full of affection. Eu tenho vários projetos, o que não me falta é projeto. Graças a Deus. Eu vou fazer uma versão de Rio is burning, que eu vou pegar como referência o Paris is burning. Eu vou falar sobre as seis casas de coletivo vogue que existem no Rio de Janeiro. Já comecei a gravar, mas eu acredito que é um filme que não tem data pra estrear. Vou acompanhá-los por alguns anos. Acho que é isso, discutir estéticas, possibilidades.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marco Aurelio da C. Correa

MARCO AURÉLIO DA CONCEIÇÃO CORREA é Pedagogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa sobre as confluências sobre as estéticas do cinema negro e a educação para as relações étnico raciais.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.