novembro de 2011

SER, REPRESENTAR E RECONHECER: ATIVISMOS VISUAL NA ÁFRICA DO SUL PÓS APARTHEID

Luciane Ramos Silva

 

 

 

 

 

 

Em setembro de 2010, mês de abertura da 29ª Bienal de Artes de São Paulo, a fotógrafa Zanele Muholi (1972) acompanhada do artista nigeriano Andrew Esiebo (1978), compartilharam um pouco de suas motivações e percepções artísticas, num bate papo na Casa das Áfricas, espaço cultural e de estudos sobre sociedades do continente africano.

 

Apesar das múltiplas identidades e estéticas africanas, há caminhos que se cruzam na experiência de ser negro/negra e africano/africana no mundo atual. Essas confluências são refletidas em práticas artísticas evidentemente políticas, que engolem, mastigam e vertem novas realidades. A trajetória da sul africana Zanele Muholi nos mostra isso. Nascida na Township de Umlazi, Durban, durante o Apartheid (regime de segregação racial que perdurou de 1948 a 1994), a artista traz na retina críticas a marginalidades e exclusões compulsórias legitimadas por políticas de estado que pregavam um eufemístico “desenvolvimento em separado”. Tal separação, concretizada em precárias reservas territoriais para a população negra nas áreas urbanas, valia não apenas para a terra, mas também para educação, saúde e direitos civis – desigualdades oficiais que privilegiavam a minoria branca.

 

Zanele traz em sua trajetória artística uma maneira afiada de abordar questões complexas. Gênero, raça e sexualidade se entrecruzam e transbordam em imagens poderosas. Sua produção visual, entre fotografia e documentário, revela universos duramente discriminados pela sociedade contemporânea. Atuando no campo da militância queer (grupos LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros – que questionam a ordem homogênea das relações de gênero), seu bravo ativismo visual documenta traços de uma África do Sul pós-apartheid que ainda tem à frente o desafio de graves desigualdades e expressões de intolerância, entre elas, a homofobia.

 

A conversa com Zanele nos transporta diretamente a contextos africanos – petrificados no imaginário ocidental como espaços da barbárie. Mas vale lembrar que aqui mesmo na terra brasilis testemunhamos manifestações, oficiais inclusive, de hostilidade e ódio, a gays, lésbicas e outras identidades que destoam dos modelos hegemônicos. Aqui as políticas públicas em prol da diversidade de gênero ainda caminham a passos lentos. No Brasil e nas sociedades africanas que buscam consolidar suas jovens democracias a real igualdade de direitos ainda é uma ilha distante do olhar.Vencedora de prêmios como o Casa África de melhor fotógrafa (2009) e Fundação Blachère no 8º Encontro Bienal de Fotografia Africana em Bamako, Zanele tem frente à sua lente a proposta desafiadora de documentar o que foi historicamente invisibilizado ou retratado por enquadros coloniais eurocentristas. Seus trabalhos nos mostram “Faces e Fases” de pessoas – sujeitos de seus destinos. Invertendo a chave da representação, Zanele realiza a intenção de muitos artistas africanos – a de contar suas próprias histórias.

 

Que a África fale por ela mesma.

 

Ngiyabonga, Zanele!

 

 

OMENELICK2ºATO – Como artista africana, o que você quer no Brasil?
ZANELE MUHOLI – Estar nesta 29ª Bienal é excitante por um lado e decepcionante de outro. Porque torna-se algo mais sério quando não vemos muitas pessoas da tua cor de pele.( Referência à entrevistadora). Meu trabalho interroga a presença de lésbicas negras, transgêneros e gays na África do Sul e o espaço para o qual olho é o das townships, que podem ser percebidos ou definidos como “guetos” em termos comuns. O que estou procurando no Brasil é reunir mulheres, que não precisam necessariamente se identificarem como lésbicas, mas como mulheres negras. Meu mote é a negritude e a ausência de mulheres artistas. Quando falo de artistas ou ativistas, refiro- me as que estão fazendo trabalhos relacionados aos universos queer ou fazendo trabalhos políticos – ocupando espaços que nunca foram concebidos para nós.

 

Assim, para mim, estar neste espaço significa muito porque tenho a oportunidade de apresentar, representar, reescrever e projetar imagens que podem aparecer em espaços específicos. Eu falo também sobre a necessidade de termos colaborações entre artistas de raça negra para entendermos nossas existências. Quem estava aqui antes de nós. O que significa que nós somos gerações que irão informar futuras gerações a partir de nossas existências neste espaço. Os livros que são escritos sobre pessoas negras não foram escritos por nós. Os filmes que foram feitos sobre pessoas e comunidades negras foram explorados por etnógrafos e antropólogos europeus e nunca feitos por nós. É nossa geração que pode provocar mudanças e mostrar o que veio antes de nós e ter oportunidade de processar e consumir o que tem sido feito por nós, pessoas negras, e especialmente mulheres. Sei da felicidade de ser um ser que sangra, que tem sangue e menstruação. Sei o que isso representa e provoca.Pessoas transgêneros, especialmente mulheres trans, tornaram-se alvos de crimes de ódio no Brasil. E na África do Sul, as mulheres lésbicas viraram alvo de estupros corretivos, onde pessoas tem a idéia de que se você estupra uma lésbica ela se tornará uma mulher hetero. Assim, falando como uma pessoa lésbica por identidade, eu sei a dor de perder amigos, de testemunhar e ver que crimes de ódio acontecem dentro de minha comunidade.

 

OM2ºATO: A realidade da África do sul é imprescindível em seu trabalho?
ZM: Falando de onde eu venho, dos últimos anos, pessoas de outros países tem testemunhado ações xenofóbicas, lesbianfóbicas e queerfóbicas. O que é importante para nós, para projetar África para pessoas de outros espaços é sustentar encontros que falam sobre as ideias falsas de nós mesmos nesses espaços que distorcem a história. É realmente importante captar o que nós conhecemos porque isso é imediato e vem de nós. E depois vem de fora. Isto é o numero um. Relatar historias que fazem sentido para nós. E elementos para as pessoas entenderem o que é Africa. Não importa para nós criar mais barreiras. África nunca teve fronteiras. As fronteiras foram impostas contra nós em contextos de diferentes línguas e diferentes tipos de significado do que somos nós. (…) Quando vemos pessoas negras ficamos instigados porque assumimos nosso passado de África mesmo diante de diferenças de língua. Há diversas relações que falam de todos os lugares. Interessa-me particularmente perguntar de onde você é, de onde você vem. Talvez nós dividiremos existências que não sabemos, porque as pessoas se deslocaram. Nós somos um só povo, nós somos uma nação.

 

 

OM2ºATO: Estar no Brasil, na bienal e não ver pessoas negras. Como você sente isso?
ZM: Há inda muito trabalho, muita coisa a ser feita. Eu acho que pessoas como nós têm a oportunidade de estar nessa bienal para dizer “não é isso que queremos ver”. Nós queremos ver mais pessoas negras presentes, nós queremos ter convergências com os locais. Coisas que tragam educação para as escolas. Nós queremos ter oportunidade de ver as comunidades porque os trabalhos que nós produzimos estão muito relacionados com as realidades de nossas vidas. Então, isso é, de certa maneira artificial.

 

OM2ºATO: O que é artificial?
ZM: Em primeiro lugar nós não conhecemos o Brasil. Eu conheço o hotel e a avenida da exposição. E esta é minha primeira vez no país. Acredito fortemente na necessidade de dividir, de compartilhar, de dar acesso aos que estão marginalizados, os que não têm oportunidades. Nós também sabemos que nem todos tem acesso à internet, nós sabemos sobre as burocracias. Podemos, como fotógrafos vindos de fora, dar workshops em comunidades, em espaços particulares e então propor trabalhos, agregar e produzir com as pessoas para que eles tenham acesso.

 

 

Eu quero ter conversas com outras mulheres, que podem saber sobre o país de onde eu venho para além das informações pela internet que estão aí. Também vou ouvir mais vozes de mulheres brasileiras e temos que falar sobre possibilidades de como essas mulheres, vindo de outros espaços, podem a partir de alianças, enriquecer, trazer colaborações e trocas que nos possibilitem comandar. Eu quero ver mulheres reais. Eu não estou falando do tipo de mulher “Porshe cinco estrelas” . Não estou falando de sofisticação. Estou falando de mulheres reais. Mulheres reais artistas, mulheres reais que não têm medo de falar sobre política, políticas de exclusão, políticas de exploração, políticas de auto representação, políticas de todas as formas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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DICAS DE ZANELE SOBRE ARTISTAS AFRICANOS CONTEMPORÂNEOS

Rotimi Fani-Kayode(Nigéria – 1955-1989)
Tracey Rose ( Africa do Sul)
David Goldblatt( Africa do Sul)
Gabi Ngcobo( África do Sul)

 

 

NOTAS

 

Ngiyabonga
Significa obrigado, em zulu, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul.

 

Xenofobia
Aversões e preconceitos que resultam em discursos e práticas discriminatórias ao que é percebido como estrangeiro ou diferente, criando barreiras sociais que estigmatizam outras culturas, raças ou nações.

 

Lesbian-phobia
Aversão, medo e preconceitos que resultam em reações negativas, opressivas ou violentas às pessoas identificadas como lésbicas.

 

Townships
Sharpeville e Soweto são outros exemplos de townships fortemente noticiadas por terem sido palco de protestos e rebeliões durante o Apartheid. Na primeira, houve, em 21 de março de 1960, uma manifestação pacífica contra a lei do passe, que obrigava a população negra a portar carteiras de identidade que restringiam os locais de circulação. Em memória ao massacre, a ONU decreta em 1969 o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Já em Soweto, houve em 1976 uma manifestação de estudantes contra as desigualdades na educação. A rebelião foi violentamente reprimida pelo exército sul africano com saldo de centenas de mortes.

 

Queer
Termo originalmente pejorativo usado para ofender homossexuais nos Estados Unidos. Na década de 80 ganha outros sentidos com o avanço das pesquisas de gênero que objetivavam desmistificar a homossexualidade trazendo outros entendimentos e rompendo com percepções homogêneas do masculino e feminino reivindicando a multiplicidade de identidades de gênero.

 

 

AGRADECIMENTO ESPECIAL
STEVENSON GALLERY
www.stevenson.info

 

 

 

Luciane Ramos Silva

Luciane Ramos Silva é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.