maio de 2011
JÉFERSON E OS CURTAS
Christiane Gomes
fotos Vantoen Pereira Jr. / Ana Luiza Dupas,
Jeyne Stakflett / Vantoen Pereira Jr.
A chegada de Bróder às salas de cinema de todo o Brasil marca não somente a aguardada estreia do cineasta Jeferson De na direção de filmes longa metragem, mas também o debut de um cineasta negro brasileiro por trás de uma grande produção, com distribuição nacional, volumosa repercussão e pesado investimento (foram gastos cerca de R$ 2,5 mi com o filme).
Mas, o que sabemos sobre a trajetória cinematográfica do diretor antes de Bróder? Quais são os trabalhos que o credenciaram a ser considerado hoje como a mais talentosa expressão de cineastas afrodescendentes do Brasil, que tem Joel Zito Araújo e Zózimo Bulbul como ícones?
Formado pela mais concorrida escola de cinema do país, a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, De, em 2000, em conjunto com cineastas como Ari Cândido Fernandes, Noel Carvalho, Billy Castilho, Rogério de Moura, Daniel Santiago e Agenor Alves, criou o Dogma Feijoada (inspirado no movimento dinamarquês Dogma 95, capitaneado por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg), composto por sete mandamentos que propõe uma ruptura na forma estereotipada, folclorista e maniqueísta da representação do negro na cinematografia brasileira.
Seguindo as diretrizes da versão feijoada do Dogma, De produziu curtas-metragens que, por diferentes nuances, jogam luz à reflexão do preconceito e do racismo que, em pleno século 21, ainda insiste em cercar a vida da população negra no Brasil.
É o que podemos perceber, por exemplo, no premiado Carolina (2003), que roteiriza algumas passagens do best-seller Quarto de Despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus.
O filme se passa em um quarto onde Carolina (interpretada por Zezé Motta com sua maestria habitual), mora com a filha, Vera Eunice. Cercada por uma realidade de miséria, desespero e preconceito, ela desabafa e extravasa suas angústias por meio das palavras. O filme cria uma envolvente atmosfera teatral recheada por imagens históricas da própria Carolina e de longos (porém necessários) períodos de silêncio. Ao final, o desfecho do filme traz a arrebatadora canção Negro Drama, dos Racionais MC´s. Composta décadas depois da morte da escritora, a música traz consigo a reflexão de que mesmo depois de tanto tempo, a vida do afrodescendente no Brasil permanece difícil. Líder dos Racionais MC´s, Mano Brown, visto por De como o “maior líder negro brasileiro depois de Zumbi”, voltaria a reeditar a parceria com o cineasta em Bróder, onde o rapper participa da escolha da trilha sonora do filme.
Em Jonas, só mais um (2008), o diretor usa a linguagem do documentário para contar a história de Jonas, jovem negro que, ao discutir com um segurança, é covardemente assassinado em uma agência bancária na Baixada Fluminense. A origem desse “engano”, como mostrado pelo filme, está no fato de Jonas ter a chamada “cor padrão”, expressão usada pela polícia para quem tem a pele escura. O curta retrata uma história que é também a de muitos outros jovens de “cor padrão”, e denuncia, de forma sensível, mas direta (com as pausas sonoras já usadas em Carolina) o silencioso genocídio enfrentado pela juventude negra brasileira. A primeira cena do filme, a de Jonas estatelado no chão da agência bancária, deixa um nó na garganta.
“Só de raiva, filmo com amor”
Mas antes da produção deste curta/documentário, De quis tratar do preconceito e do racismo entre crianças, e assim nasceu Narciso Rap (2004). Na produção, o cineasta une diferentes elementos que fazem parte do universo infantil, como a afetuosa relação entre amigos e contos como o do gênio da lâmpada. O filme apresenta a história de Narciso, um garoto negro, morador da periferia que, ao encontrar um gênio da lâmpada (bem brasileiro, diga-se), tem como pedido ser rico. Mas com um porém: os brancos o enxergariam branco e os pretos o veriam preto. Um garoto branco e rico faz o mesmo pedido e é aí que se instala o conflito do curta.
A produção, contudo, peca ao apresentar um roteiro simplista demais, beirando o nonsense. Mesmo sendo voltado para o público infantil a história poderia não subestimar tanto a inteligência da criançada. A gritante diferença de idade entre os dois garotos (o branco e o negro), por exemplo, deixa no ar um ponto de interrogação. A estética da produção também deixa a desejar. O filme, porém, tem o mérito de trazer a reflexão étnica ao público infantil.
Numa citação presente no livro Dogma Feijoada e O Cinema Negro Brasileiro, com os roteiros de alguns dos curtas do cineasta, De afirma que, só de raiva, filma com amor. E esse amor é percebido em suas produções. Um amor não apenas pelo cinema, mas pela possibilidade de mostrar a figura do afrodescendente brasileiro de forma real. E ele está dando seu recado. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, dos próximos filmes.