julho de 2012

À PROCURA DE UMA IMAGEM: REFLEXÕES SOBRE A NEGRITUDE NO CINEMA BRASILEIRO

Ceiça Ferreira

 

 

 

ilustração Miro

 

 

 

Se atualmente temos diversos estudos e pesquisas que discutem as representações da população negra nos meios de comunicação, no cinema e nas artes, isso é certamente uma conquista da luta de várias lideranças, estudiosos e autores negros, que se atentaram para a produção simbólica como um espaço privilegiado de reconhecimento das identidades, e também um continuum das relações de poder.

 

Dentre tantas figuras importantes, vale lembrar a trajetória intelectual e a história de vida da historiadora, ativista e poeta Maria Beatriz Nascimento, com sua pesquisa sobre os quilombos, suas reflexões acerca do racismo e da situação da mulher negra no Brasil, e principalmente sua colaboração no documentário Ôrí, lançado em 1989.

 

Beatriz Nascimento nasceu em Sergipe, em 1942, e aos sete anos migrou com a família para o Rio de Janeiro, onde se formou em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou de um grupo de ativistas negras/os que posteriormente formariam o Grupo de Trabalho André Rebouças, na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde continuou sua carreira acadêmica com o curso de pós-graduação no qual desenvolveu o projeto “Sistemas alternativos organizados pelos negros dos quilombos às favelas”. Também é autora de vários artigos sobre racismo, quilombos e cultura negra; além de ter promovido e participado de cursos, conferências, palestras e simpósios no Brasil e no exterior.

 

Em janeiro de 1995, período em que era mestranda em Comunicação Social na UFRJ, sob orientação do professor Muniz Sodré, Beatriz Nascimento foi assassinada ao defender uma amiga de seu companheiro violento, deixando uma filha (Bethânia Gomes).

 

 

Seu trabalho mais conhecido e de maior circulação é a autoria e a narração dos textos do documentário Ôrí (palavra de origem iorubá, que significa cabeça). Iniciada na década de 1970, essa produção é o encontro da pesquisa cinematográfica da socióloga e cineasta de origem judaica, Raquel Gerber, sobre a identidade negra no Brasil, com a investigação histórica de Beatriz, a cerca dos quilombos como organizações políticas e de resistência cultural negra de matriz africana (bantu), recriadas no Brasil.

 

O filme, relançado em formato digital no ano de 2009, registra ainda o processo de formação dos movimentos negros das décadas de 70 e 80, e articula o quilombo, a religiosidade de matriz africana e outras espacialidades, como por exemplo, a escola de samba, enquanto elementos capazes de restituir a humanidade negada na escravidão, e reconstruir as identidades negras.

 

Durante toda a narrativa desse documentário, dirigido por uma mulher, e ancorado no texto poético e na narração de Beatriz Nascimento, mulher, negra e nordestina, acompanhamos a constante reflexão sobre a condição de subalternidade a que é submetida a população negra na produção simbólica. Na Conferência Historiografia do Quilombo, promovida em 1977, durante a Quinzena do Negro na USP (Universidade de São Paulo), Beatriz revela sua reação com o interesse da Universidade pelo negro apenas como escravo, como se a contribuição desse grupo social fosse somente como mão-de-obra.

 

Mesmo após vinte anos, e embora homens e mulheres negras constituam mais da metade da população brasileira, esse pensamento ainda permanece. As representações da negritude, suas expressões religiosas, culturais e artísticas continuam associadas a estereótipos, e podem ser facilmente observadas na pele de empregados dóceis, malandros, prostitutas, favelados, macumbeiros, jagunços, “mulatas”, entre outros. Essa estratégia discursiva consolida os meios de comunicação e o cinema como principais matrizes culturais das sociedades contemporâneas, e também campos estratégicos de manutenção do poder vigente.

 

Em sua pesquisa sobre a representação e a participação da população negra na telenovela brasileira, no período de 1963 a 1997, o cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo reafirma a cumplicidade desse veículo com o ideal de branqueamento dos brasileiros, que se expressa na tentativa de confirmar o mito da democracia racial e a invisibilidade de homens e mulheres negras.

 

Também nos textos jornalísticos, na publicidade e no cinema brasileiro as representações da negritude são marcadas por distorções e simplificações, com destaque para a folclorização e a desqualificação da cultura e religiosidade afro-brasileira, o que ratifica a oportuna afirmação do jornalista e escritor Muniz Sodré, de que a situação do negro na mídia brasileira é como a de um vampiro, que se olha no espelho, mas não se reconhece, não se vê.

 

 

Ainda sobre essa questão, o documentário Ôrí discute a dor a e angústia causadas pela perda da imagem, quando, por exemplo, Beatriz Nascimento assume o lugar de personagem e revela sua experiência pessoal com a falta da imagem, perdida na diáspora. Ela afirma não se reconhecer na foto de sua carteira de identidade, ao mesmo tempo em que narra sua relação com a foto da irmã (Carmem), ícone de trajetória intelectual; e com a imagem do mito, a estrela de cinema, Marilyn Monroe, ideal eurocêntrico de beleza; e relata ainda sua busca por Deus, mesmo em uma foto de sua primeira comunhão, anunciando seu distanciamento do pensamento cristão, e compartilhando com o espectador seus conflitos e dúvidas. Os movimentos de câmera, que se aproximam das fotografias, podem ser considerados uma tentativa de enfatizar essa procura de Beatriz por sua identidade.

 

Com o conceito de quilombo como fio condutor de sua narrativa, Ôrí vai à procura dessas origens no continente africano e de sua reconstrução no Brasil, com Palmares no século XVII, mas mostra também como essa organização se atualiza nos anos de 1970 e 1980. Essa pesquisa histórica se junta à busca de Beatriz (narradora e personagem), que revela suas subjetividades, lutas e migrações, com as quais se misturam esse conceito de nação africana e a figura de Zumbi dos Palmares, seu herói civilizador.

 

A narração de Beatriz indica a necessidade da terra, tanto no quilombo como na religiosidade de matriz africana. Ela salienta ainda a ressignificação do conceito de quilombo: “A terra é o meu quilombo, o meu espaço é o meu quilombo. Onde eu estou, eu estou, quando estou eu sou”. Assim, o quilombo passa a designar diferentes espacialidades negras, como as congadas, a favela, a cultura hip-hop e o terreiro. Mas permanece como nova concepção de nação brasileira, capaz de atuar de forma diferente, contra-hegemônica.

 

Ao relacionar imagem e corpo à construção da identidade, Beatriz reflete sobre sua busca por visibilidade. “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que se tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade, então eu conto a minha experiência em não ver Zumbi, que pra mim era o herói”.

 

 

Essa invisibilidade remete novamente ao lugar social da população negra, pois mesmo depois de 124 anos de abolição da escravatura no Brasil, homens e mulheres negras, suas culturas, tradições e religiosidades, foram e ainda permanecem invisibilizadas. Assim como a história de Zumbi dos Palmares foi distorcida ou simplesmente ocultada, também a de João Cândido, o Almirante Negro; Luiza Mahin; Carolina Maria de Jesus, e tantos outros, que muitas vezes desconsiderados, tiveram uma atuação significativa na construção da sociedade brasileira, e na luta pela liberdade do povo negro.

 

Ao analisar a representação da negritude, o teórico jamaicano Stuart Hall enfatiza que o poder na representação é o poder de marcar, atribuir e classificar, o que inclui o exercício do poder simbólico. Por isso, o autor elucida que “estereotipar é um elemento-chave neste exercício da violência simbólica”, subentendida nos discursos e narrativas midiáticas e cinematográficas, e que difunde a estética do racismo, ao reproduzir as desigualdades sociais e econômicas como a ordem natural do mundo; ao ocultar ou distorcer a história, as formas de resistência e as contribuições das sociedades africanas; ao desqualificar o corpo negro e, principalmente, ao impor o embranquecimento cultural e um padrão estético eurocêntrico, que cotidianamente incute em homens e mulheres negras a necessidade de negar a si mesmos.

 

 

Por meio da imagem fílmica, Ôrí parece colocar o espectador no lugar daquele que foge, compartilhando a situação dos africanos que, segundo a narração, empreenderam no século XVII a migração para o Sul do país, adentrando na floresta tropical em busca do quilombo.

 

Os movimentos da câmera que entra no mato, corre, revive a fuga e o desejo por um novo destino, revelam a procura por um lugar social que não seja o do trabalhador/a escravizado/a. A narrativa destaca ainda a importância do corpo na construção da identidade, porque o corpo é ao mesmo tempo individual, traz marcas e lembranças da subalternização histórica que classifica o corpo negro como feio, exótico, inferior; mas é também coletivo, é registro de sua história e de suas migrações. E é também memória, que se revive em ritmo e movimento, seja nos bailes black, no carnaval ou na linguagem do transe. Por isso, Beatriz afirma: “a memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento. Não é à toa que a dança para o negro é um fundamento de libertação. O negro não pode ser liberto, enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto, que ele não é mais um cativo”.

 

O destaque que o filme, e principalmente a narração, reserva ao simbolismo do ôrí, remete a importância da cabeça nas religiões de matriz africana. Por meio dela é que se dá a ligação entre o ser humano e o sagrado; e assim como os orixás (divindades), ela também recebe oferendas, em um rito chamado borí (retratado no documentário), e que busca a renovação de forças do indivíduo. Há até um provérbio que diz “Ori buruku, kossi orixá”, ou seja, “cabeça ruim não dá orixá”.

 

Também é por meio do ôrí, que Beatriz apresenta a religiosidade afro-brasileira como uma filosofia de vida, outra visão de mundo e de poder, uma possibilidade de reencontro com os elementos materiais e simbólicos que restituem, por meio de um contínuo renascimento, a humanidade negada na escravidão. Segundo ela, o “ôrí significa a inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento ali”.

 

 

Na narrativa, o ôrí se refere à religiosidade, ao retratar o iaô (filhos-de-santo que ainda não completaram os 7 anos da iniciação no Candomblé) em transe; ou é ressignificada, em espaços onde homens e mulheres negras são capazes de reconstruir sua identidade, encontrar seu núcleo. Vale salientar ainda outro significado dado à ôrí, relacionado à formação do movimento negro. “O processo de ôrí é uma recriação de identidade nacional através do Movimento Negro da década de 1970. Nós, na década de 70, éramos mudos. E os outros eram surdos a nós. A partir de 70, começamos a falar sociologicamente”, ressalta Beatriz Nascimento.

 

Neste documentário, ao narrar sua própria história, Beatriz se junta às migrações, aos conflitos, às tensões e às angústias de homens e mulheres negras, o que significa mudanças na própria linguagem cinematográfica. Logo, Ôrí apresenta subjetividades, compartilha com o espectador a dúvida, a dor e a poesia dessa mulher negra; opta por enquadramentos, nos quais rostos e corpos negros estão de forma predominante no centro ou em destaque, talvez com o intuito de oferecer-lhes a visibilidade negada historicamente.

 

 

Essa capacidade de apresentar dimensões que estão relacionadas à memória e às emoções do indivíduo reafirma o caráter performático de Ôrí, característica que segundo o escritor norte-americano Bill Nichols refere-se a filmes que trabalham licenças poéticas, estruturas narrativas menos convencionais e formas de representação mais subjetivas, o que significa também um envolvimento e modos de representação distintos, que constitui um novo olhar sobre a população negra e sua religiosidade, pois aquele/a que normalmente seria o objeto torna-se o sujeito e narra sua própria história. Beatriz Nascimento é narradora, pesquisadora e também uma personagem, relata suas experiências, dirige-se aos espectadores de maneira emocional, divide com eles suas angústias e alegrias, convida-os a experimentar seu “lugar de fala”, compartilha com outras mulheres, como a própria diretora, Raquel Gerber, o “ser” mulher, negra, nordestina e diaspórica.

 

 

 

 

 

Ceiça Ferreira

CEIÇA FERREIRA é jornalista e doutoranda em Comunicação na Universidade de Brasília. Atua nas áreas de cinema, culturas negras e comunicação em movimentos sociais.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.