outubro de 2014

O MULATO PERNÓSTICO

Marcio Macedo

 

 

 

 

 

O mulato pernóstico, assim como toda a categoria dos mulato/as em geral, também é uma espécie em extinção. Isso se dá pela atual ascensão de figuras mais sintonizadas com a ideologia racial bipolar do movimento negro como os “negr@s metid@s.” O mulato pernóstico é o famoso “mulato bacharel” ou “mulato de caneta”: sujeito pedante a falar em linguagem rebuscada e de pouco acesso aos não iniciados em termos comuns ao direito, sociologia, antropologia, filosofia, ciência política e outras disciplinas em que se estuda muito e tem-se pouco rendimento.

 

A referência a caneta remete, inicialmente, a pena (ancestral da caneta) dos tempos da colônia e do império quando a habilidade de ler e escrever era vedada a pretos, mas aberta a mulatos que geralmente eram tidos como um rebento bastardo do senhor com alguma negra bonita (as más línguas irão dizer que foi um estupro, desconsideremos esses comentários maldosos). Mais contemporaneamente a caneta, um símbolo do saber, começa a ser exibida por mulatos em solenidades especiais nos quais o ápice era a assinatura de um contrato, tratado ou autografo de um livro. Não é de se estranhar que mulatos pernósticos mais aquinhoados e/ou presentes na política colecionassem canetas de formatos, materiais e nacionalidades diversas. As mais cobiçadas eram, obviamente, de ouro e prata, além da moderna platina. No que diz respeito ao país de origem, havia uma subdivisão que obedecia a área de formação do pernóstico: os poucos engenheiros entre eles preferiam as norte-americanas e alemãs enquanto os mestres e doutores em humanidades almejavam as tinteiras de fabricação francesa. Com o passar do tempo, já em meados do século 20, as canetas passaram a ser exibidas mais livremente geralmente no bolso da camisa e se constituíam em acessórios chics assim como broches, abotoadoras, lenços e prendedores de gravata. Diz-se “acessórios” porque eram opcionais e diferentes de relógios de bolso ou pulso e óculos, itens obrigatórios na vestimenta de um pernóstico uma vez que esses indivíduos nunca se atrasavam para um compromisso e a maioria tinha a vista sempre prejudicada por algum problema como miopia, astigmatismo ou estrabismo devido a leitura de catataus pesados e complicados durante horas a fio.

 

Mulatos pernósticos também povoam o universo da literatura: Jubiabá, de Jorge Amado (1935), O Mulato, de Aluísio Azevedo (1881), Isaías Caminha, o jornalista frustrado de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) dentre outros.  A distribuição de mulatos pernósticos se deu de forma equilibrada entre as principais capitais brasileiras com uma atenção especial para aquelas que havia um vibrante cenário econômico, social e político. Destacam-se aí as cidades de São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo do Piratininga e São Salvador da Bahia de Todos os Santos, localidades que produziram ou deram morada a destacados pernósticos como Guerreiro Ramos, Nina Rodrigues Edson Carneiro, Teodoro Sampaio, Machado de Assis, Manuel Quirino, Fernando Góis, Lima Barreto e as figuras mais claras dos Irmãos Rebouças.

 

Nos EUA, onde mulatos pernósticos não eram separados dos negros, mas que no passado receberam a alcunha racial de colored, houve várias figuras de relevo que no Brasil seriam imediatamente vistos como pernósticos dentre eles o grande intelectual W.E.B. Du Bois e o escritor James Weldon Johnson. Esse último deu a sua autobiografia ficcional um título sugestivo: The Autobiography of an Ex-Colored Man (1912). No Brasil, é interessante notar o contraste entre mulatas e  mulatos. Enquanto ela é entendida como carregada de exuberante emoção, amor e luxúria, o mulato é racional ao extremo. Teóricos contemporâneos irão dizer que esses são elementos sinalizadores da representação de gênero vigente na sociedade, ou seja, o que se entende como atributos de homem e mulher. Mulatas e mulatos dificilmente estabelecem relações afetivas e matrimoniais entre si e com negr@s em geral, pois ambos tem incutido no seu projeto de vida um processo de melhoramento da raça do qual eles já são fruto.

 

Interessante notar que o início do definhamento social e histórico do mulato pernóstico começa justamente quando a mulata exportação desponta como novidade entre os anos 1950 e 1960. Um momento de inflexão nesse processo foi quando a caneta deixou de ser um marcador de status na sociedade, algo que sinalizava uma tímida expansão do sistema educacional entre populações mais carentes. Em meados dos anos 1950, um nobre francês chamado Barão Marcel Bich fundou uma companhia cujo principal produto causaria uma revolução na escrita: as canetas de plástico Bic. A Bic Cristal, que podia e ainda pode ser adquirida por uma soma irrisória, passou a ser usada nas funções mais comuns possíveis substituindo o pouco nobre lápis. A partir daquele momento, qualquer indivíduo leigo carregava suas Bics de diferentes cores no bolso da camisa. Atitude máxima de desrespeito para um mulato pernóstico tinham indivíduos que penduravam e carregavam canetas acima da orelha como comerciantes, caixeiros e vendedores dos mais diversos tipos, num comportamento que antes era reservado somente aos lápis usados para fazer contas rápidas e anotações simples em papéis pardos de embrulho.

 

 

As canetas Bic Cristal significaram o fim de uma era onde a caneta elegante de materiais nobres, produzidas além mar e de preço elevado, como a norte-americana Parker, era demonstração de saber e poder. Assim, mulatos pernósticos começaram a escassear, não eram mais visíveis na fauna social a menos que se prestasse atenção em outros sinais de sua categoria como os óculos de aro grosso e a linguagem rebuscada. A situação se complicou mais ainda com as transformações no mundo da moda a partir dos anos 1960 e 1970 quando o terno e gravata deixaram de ser modelos de se bem vestir. Mulatos pernósticos, que se gabavam de seus ternos bem cortados e alinhados, começaram então a ser confundidos com seguranças de shopping centers.

 

O estilo criado com os movimentos “Black Power” e “Black is Beautiful!” nos anos 1960 também colocava no centro da cena negros retintos exibindo seus pixains levantados como se fossem troféus. Não, não havia mais espaço para o cabelo discreto, curto e forçosamente repartido ao lado do mulato pernóstico. Mesmo assim ele se negava a render-se a essa “coisa” chamada garfo e mantinha-se fiel ao seu tradicional pente Flamengo. Mas o padrão de beleza agora estava incorporado em crioulos como Richard Roundtree (“Shaft”) e naquele considerado o negro mais bonito do Brasil, o modelo e ator Zózimo Bulbul. Até mesmo um cantorzinho de quinta categoria como Tony Tornado estava a passar a classe do pernósticos para trás. Valha-me Deus! Não dava mais, o mulato pernóstico havia perdido o posto. Não era mais desejado, não era mais respeitado. Seu conhecimento em ciências e letras, a caneta de ouro ou prata, seu relógio suíço, os óculos de grau de formato e aro grosso, o terno preto ou azul marinho bem cortado, a gravata com nó Windsor ou borboleta, o sapato preto engraxado e reluzente, o cabelo crespo curto repartido do lado com pente flamengo e o bigode ralo de nada mais valiam. Todos estavam a se engraçar com crioulos cabeludos que usavam camisas de cores berrantes, calças justas com boca de sino, sapatos plataforma e óculos de sol Ray-Ban até mesmo na escuridão da noite. Ninguém mais queria ouvir o conhecimento que emanava dos seus queridos gregos Platão, Aristóteles e Sócrates ou dos modernos franceses como Voltaire, Descarte e Proust. Estavam todos aí a querer saber dos escritos de  crioulos norte-americanos como um tal de Eldridge Cleaver e outro martinicano agraciado Frantz Fanon: mas que raios esses pretos tinham a dizer ou nos ensinar? As coisas estavam realmente pretas. Mas o tiro de misericórdia foi quando mulatos pernósticos começaram a ver o mal adentrar seus próprios lares.

 

Mulatinhos pernósticos filhos ou juniores também estavam deixando o cabelo pixaim crescer, dançando soul em festas que ocorriam aos finais de semana, usando roupas espalhafatosas iguais ao dos crioulos revolucionários que mais pareciam palhaços e cantando a canção de um crioulo chamado Jorge Ben intitulada “Negro é Lindo!”. Mas o fim de tudo foi quando essas pequenas criaturinhas pardas ou de cor bege resolveram desposar mulheres pretas mais escuras que eles. Não havia maior desgosto para um pernóstico pai. Bem resumiu um deles de forma desconcertada e magoada nas suas memórias: “Tanto esforço para nada! Meu primogênito, Sófocles, um dia olhou-me com o atrevimento que só os mais jovens possuem e disse: ‘Larga mão, pai. Sou negro e eis de desposar uma mulher retinta como a noite!’ Perdi a cabeça, vire-lhe um tapa no rosto. Depois, caído em prantos, pensei com meus botões: ‘Tanto esforço para nada. Filhos ingratos, malditos… Traidores da raça!’” Triste fim para a classe dos mulatos pernósticos que só permanecem vivos na memória de nossos pais e avós.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcio Macedo

MÁRCIO MACEDO é doutorando em sociologia pela The New School for Research (EUA), mestre em sociologia e bacharel em ciências sociais pela USP. Professor Assistente no curso de Comunicação Social da FIAM-FAAM Centro Universitário.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.