setembro de 2016

DALTON PAULA: ÁFRICA, BAHIA E CUBA

Alexandre Araujo Bispo

fotos João Pedro Matos, Paula Rezende e Heloá Fernandes

 

 

 

 

 

Dalton Paula
A promessa (série de fotografias)
2012

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em conversa com o antropólogo, crítico e curador de arte Alexandre Araújo Bispo, o artista goiano Dalton Paula (1982) fala de sua obra “Rota do fumo” preparada para a 32ª Bienal Internacional de São Paulo; sobre sua formação cultural, seus interesses pelos saberes e fazeres mágico-políticos afro e indígenas e destaca o lugar social, os usos e funções de plantas como o fumo e a guiné no Brasil. Ao tomá-las como material artístico ele as apresenta como substâncias de resistência e enfrentamento frente as incertezas que acometem esses segmentos da sociedade brasileira.

 

 

OMENELICK 2º ATO: COMO VOCÊ SE INTERESSOU PELAS ARTES VISUAIS E QUAL A SUA FORMAÇÃO?
DALTON PAULA:
 Meu interesse surgiu na adolescência, por meio dos mangás como os Cavaleiros do Zodíaco. Eu colecionava a revista Herói, copiava os desenhos com papel carbono e coloria com lápis de cor. Hoje tenho consciência que foi esse “colorir” que me levou para as artes. Eu também tive a oportunidade de estudar na Escola de Artes Visuais de Goiânia, que ficava ao lado do Museu de Arte Contemporânea da cidade e essas duas instituições viviam um momento de grande efervescência, com a realização de exposições e visitas de artistas que compartilhavam suas experiências com os estudantes. Com 14 anos, eu pude conhecer o trabalho de artistas como Arthur Bispo do Rosário, Farnese de Andrade, Coletivo Corpos Informáticos e Marco Paulo Rolla. Isso contribuiu de maneira significativa na minha formação, posteriormente aperfeiçoada com o curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Goiás – UFG.

 

 

OM2ATO: VOCÊ VEIO A SÃO PAULO HÁ POUCO TEMPO ATRÁS PARA FAZER UMA RESIDÊNCIA NO ATELIÊ DE ROSANA PAULINO, ARTISTA FUNDAMENTAL PARA ENTENDERMOS A PRESENÇA NEGRA NA ARTE CONTEMPORÂNEA. COMO FOI ESSA EXPERIÊNCIA?
DP:
 Rosana Paulino além de ser importante para o campo da arte contemporânea brasileira, tem um compromisso com a educação, pois está sempre orientando, formando novos artistas. Eu sou um desses alunos e a mão de Rosana Paulino foi fundamental para lapidar meu trabalho. Em 2007, enviei um email pedindo ajuda e mais informações sobre a obra dela, e Rosana prontamente me respondeu, me acolheu e tem sido uma grande incentivadora. A residência no ateliê foi um desdobramento desse processo, que já vinha acontecendo de maneira indireta, com conversas sobre a apresentação do trabalho (portfólio), os materiais utilizados, a coerência entre a ideia e a proposta visual, além de indicações de leituras, escritos de artistas e outras referências. Também a necessidade de desenvolver a prática do desenho, como o caderno de artista foi uma das principais orientações dela. Isso possibilita fazer repetidas experimentações, fotografar os testes e arquivar para comparar com produções posteriores, assim todo esse exercício tem me ajudado muito, especialmente a desenvolver o desenho e também a pintura.

 

 

 

 

DALTON PAULA
Comunhão
Óleo sobre tela e folhas prateadas
2009

 

 

 

 

 

OM2ATO: COMO A SUA BIOGRAFIA, SUA EXPERIÊNCIA SOCIAL APARECEM EM SUAS OBRAS?
DP:
 A minha história e experiência como um homem negro perpassa minha obra, às vezes de forma direta, quando assumo esse personagem-corpo que se coloca nos espaços urbanos, ou assume o movimento, a ação como no vídeo “O batedor de bolsa” 2011; mas isso também é trabalhado de forma indireta, como uma espécie de jogo, que brinca com o pré-estabelecido, lança mão da arte da mandinga, se aproxima, se esquiva, se impõe.

 

 

 

DALTON PAULA
Unguento

Videoperformance
2013

 

 

 

 

 

OM2ATO: DIVINO SOBRAL EM “DALTON PAULA E A ARTE DE AMANSAR SENHORES”, COM ACERTO, OLHA PARA SUA RELAÇÃO DE ENFRETAMENTO COM O ESPAÇO PÚBLICO, QUANDO VOCÊ SE COLOCA EM SITUAÇÃO RITUALÍSTICA. DIGA-NOS O QUE ESSE INTERESSE PELO RITUAL TEM A VER COM SEU TRABALHO “ROTA DO FUMO”?
DP: 
Na apresentação das perfomances há uma metáfora do corpo como meio, como veículo, semelhante aos cultos afro-brasileiros nos quais as divindades incorporam no corpo de seus filhos e filhas. Essa dinâmica ritualística dá forma ao meu trabalho artístico, e mesmo implicitamente, a espiritualidade rege a construção dos personagens, determina a potência desse corpo. Dessa maneira, com o propósito de alcançar outras camadas de sentido(s) que estão silenciadas ou habitam o universo do segredo, do mágico, do encantamento, é que exploro o tema do ritual neste trabalho. Abordar me dá a possibilidade de mostrar que se trata de uma planta ritualística, com potencialidades mágicas e amplamente utilizada nas culturas indígenas e nos cultos de matriz -africana. Geralmente esses usos e saberes se desenvolvem nas aldeias, nos terreiros e quilombos, e essa dimensão espacial muito me interessa. Essa ação de criar espacialidades e formas específicas de conhecimento é uma ação política, uma estratégia de defesa, de sobrevivência, que permanece e se transforma constantemente.

 

 

 

 

DALTON PAULA
Retrato Silenciado
Óleo sobre livro
425 X 28,5 cm

 

 

 

 

 

OM2ATO: NOS CONTE UM POUCO MAIS SOBRE SUA IDA PARA CUBA E À BAHIA, COMO PARTE DA CONCEPÇÃO DE “ROTA DO FUMO”?
DP:
 O interesse por Cuba está nesse lugar que recebeu a diáspora africana e as formas sociais e culturais negro-cubanas ali elaboradas; também as semelhanças com relação ao modelo de produção, como por exemplo, o cultivo da cana-de-açúcar e do fumo; e também as diferenças como o regime político. Me interesso por esse lugar que produz o charuto mais famoso do mundo e os diversos usos do tabaco, inclusive no universo religioso da santeria. Já a Bahia sempre chamou minha atenção, especialmente por possuir a maior população negra fora do continente africano, e também por que há o cultivo de fumo e a produção de charutos, historicamente relevante para a economia da região. Por isso, me interesso em pensar como essa população negra atuou como mão-de-obra escravizada nesse sistema produtivo, mas não apenas isso, como também foi e é capaz de manter, reelaborar suas práticas culturais e artísticas, suas religiosidades em condições ainda tão adversas.

 

 

OM2ATO: EM “ROTA DO FUMO” VOCÊ DEMONSTRA GRANDE INTERESSE PELA HISTÓRIA PREGRESSA DO PAÍS, OLHANDO PARA O PROCESSO DE SUBALTERNIZAÇÃO DAS POPULAÇÕES NEGRAS E INDÍGENAS, MAS TAMBÉM CONSEGUE DEMONSTRAR UMA COMPREENSÃO DE PROCESSOS MAIS COMPLEXOS DE RESISTÊNCIA COMO O USO DAS PLANTAS. NOS FALE MAIS SOBRE SUA PESQUISA EM TORNO DO SAGRADO, MUITAS VEZES NECESSÁRIO, COTIDIANO?
DP:
 Lanço um olhar sobre o passado histórico para compreender melhor como as relações de poder e principalmente, o processo de escravização incide sobre o que vivenciamos no presente, o que me permite vislumbrar alguns questionamentos e apontamentos para o futuro. Essa pesquisa histórica, que também utiliza outras referências, como a botânica e as religiosidades afro-brasileiras e indígenas, transita pela história oficial, mas tem foco nos anônimos, nas histórias e narrativas que normalmente são desconsideradas. Nelas, eu encontro o sagrado em sua dimensão cotidiana, compreendido como resistência porque é indissociável da vida, da natureza, da espacialidade em que se está inserido, é um elemento que coexiste em meio à opressão, por isso sua importância. É por meio desse sagrado, reelaborado a cada dia que as populações negras e indígenas são capazes de sobreviver, de construir outras formas de existir, de manter sua dignidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alexandre Araujo Bispo

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Vive e trabalha em São Paulo. Atua com curadoria, crítica de arte, arte educação e produção cultural. Foi curador artístico, entre outras, das exposições: Aline Motta: Em três tempos: memória, viagem e água (2019); Medo, fascínio e repressão na Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2015 (2015-2016); Negro Imaginário (2008). Curador educativo entre outras, das exposições: Todo poder ao povo: Emory Douglas e os Panteras Negras (2017) e Bienal Naïfs do Brasil (2018). Possui textos em publicações como Contemporary And América Latina; Revista Omenelick 2º Ato; Art Bazaar; Revista ZUM; SP-Arte; Pivô; Co-autor de Cidades sul americanas como arenas culturais (2019); Metrópole: experiência paulistana (2017) e Vida e Grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia (2015).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.