maio de 2021

MARÍLIA MARZ: QUANDO TODOS OS CAMINHOS LEVAM AOS QUADRINHOS

Leonardo Rodrigues

 

 

 

 

 

ilustrações marília marz

 

 

 

 

 

 

 

O quadrinho independente vem se fazendo cada vez mais presente na produção artística brasileira. Em meio a uma série de dificuldades dos mercados artísticos – sobretudo o editorial – os quadrinhistas vem mostrando tenacidade e versatilidade para apresentar narrativas diversas, trazendo frescor e dinamismo ao quadrinho brasileiro. Utilizando de artifícios como as redes sociais, financiamento coletivo e um contato direto com os leitores, estes artistas já não dependem de uma editora como único meio de viabilizar seus projetos, construindo assim diferentes formas de trazer seus quadrinhos à vida.

 

Entre tantas e tantos artistas dos quadrinhos nacionais, a paulistana Marília Marz (30) tem se destacado. Formada em Arquitetura e Urbanismo pela Escola da Cidade, Marília possui uma atuação ampla: trabalha com design e expografia, é ilustradora e quadrinhista. Usando sua arte como forma de autoexpressão e ferramenta de resistência, seja por meio dos quadrinhos ou ilustrações, ela sempre destaca o protagonismo negro e a necessidade de construir novos pontos de vista, principalmente das perspectivas de grupos que nem sempre recebem o mesmo espaço e poder de voz.

 

A sua história com os quadrinhos começou de forma um tanto inesperada: durante um intercâmbio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – pelo hoje extinto Programa Ciências Sem Fronteiras – na University of Oregon, Costa Oeste dos Estados Unidos, ela teve uma disciplina de quadrinhos. Assim começou a estudar teoria e prática da arte sequencial, e desde então não parou.

 

Retornando ao Brasil em 2016, decide fazer uma história em quadrinhos como seu TCC da faculdade de Arquitetura – inspirada por Unflattening, trabalho do estadunidense Nick Sousanis que foi a primeira tese acadêmica apresentada como quadrinhos. Assim nasce Indivisível, o primeiro quadrinho da artista. No trabalho, discute por meio da arquitetura as sobreposições de identidades que compõem o bairro da Liberdade, no Centro de São Paulo. O bairro – o favorito de Marília na cidade desde a adolescência, quando o frequentava assiduamente junto de amigas pelo interesse em mangás e animes – é famoso como reduto leste-asiático em São Paulo, mas na realidade possui grande importância na história da população negra da cidade: lá ficava o Cemitério dos Aflitos, o primeiro cemitério público da cidade e no qual eram enterradas majoritariamente pessoas negras escravizadas. Ao descobrir que o seu bairro favorito também possuía uma identidade negra, a artista entendeu que era essa a história que deveria contar.

 

 

Capa da HQ Indivisível

 

 

 

No quadrinho Marília também destaca um importante, embora pouco conhecido, personagem negro da história paulistana: Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, militar do exército brasileiro na época do Império, que segundo relatos, ajudava pessoas negras escravizadas a fugirem – um dos motivos que levou ao seu linchamento na atual Praça da Liberdade. Hoje ele é cultuado como santo popular, especialmente na Capela dos Aflitos – uma das poucas construções da época ligadas à história negra do bairro que segue resistindo nos dias de hoje. Mas a presença negra do bairro da Liberdade vai além da existência do Cemitério dos Aflitos. Um exemplo é a Casa de Portugal, espaço que sediou durante as décadas de 1970 e 1980 diversos bailes blacks, eventos de grande importância para a sociabilidade negra na cidade.

 

Com Indivisível, Marília foi finalista da maior premiação dos quadrinhos brasileiros, o Troféu HQMix, na categoria Novos Talentos – Roteirista, no ano de 2020. A artista vem desenvolvendo trabalhos de ilustração, inclusive para clientes como Sesc, Instituto Moreira Salles e PerifaCon, além de ilustrações autorais e fanzines. Ela também já deu workshops de quadrinhos e narrativa visual, e atualmente está publicando pela Editora Conrad o quadrinho digital Em Ti Me Vejo, parceria com a roteirista Regiane Braz. Ela também é chargista do jornal Folha de S. Paulo, com trabalhos publicadas todos os sábados.

 

Em nossa conversa, Marília divide um pouco de suas perspectivas e vivências sobre temas como: protagonismo negro, histórias em quadrinhos, colorismo e identidade negra. Como a própria artista diz: “Os projetos são muitos e o tempo é curto, mas o que não falta é vontade, bora!”. Confira a entrevista com a artista.

 

 

 

Marília Marz

 

 

 

ATUAÇÃO ARTÍSTICA

Eu sempre desenhei, desde criança, mas demorei para perceber que talvez quisesse desenhar profissionalmente como faço hoje. Também gostava muito da cidade, do desenho da cidade, então fui para a faculdade de arquitetura. Não me arrependo, mas eu acho que, como tinha muito medo de não conseguir viver exclusivamente de arte, eu acabei escolhendo outra profissão por pensar “eu preciso me manter.” Não gosto tanto de projeto de prédio, obras…gosto mais da parte cenográfica, da expografia, e hoje eu trabalho com isso. Mas acho a cidade um tema muito interessante: a vida na cidade, como a cidade funciona, tanto que isso tá muito presente em Indivisível e foi algo que veio da minha graduação.

 

Tudo que é relacionado com a minha carreira artística eu levo em paralelo, porque, talvez um dia eu consiga viver disso. Mas eu acho que as coisas vão se somando: em montagem de exposição a gente trabalha com uma escala diferente. Por exemplo, para imprimir um texto na parede, além do aprendizado sobre como funciona uma gráfica, (é preciso saber do) tamanho de arquivo, e isso tudo acaba ajudando na hora de fazer quadrinhos. Você vai aprendendo coisas que vão somando, e depois quando você consegue tirar aquele tempinho para desenhar acaba querendo testar.

 

 

 

HQ feita para o Instagram do SESC 24 de Maio, como parte do projeto Crônicas Centrais em Quadrinhos, em homenagem ao mês da consciência negra

 

 

 

REFERÊNCIAS ARTÍSTICAS

A primeira é Yuko Shimizu, uma ilustradora japonesa que mora em Nova Iorque. O traço dela é incrível, tem muita personalidade, aquela coisa de olhar o desenho e saber que é dela. Toda vez que eu pego um trabalho de ilustração eu acabo olhando algum trabalho dela como inspiração, tanto em cores, composição ou uso de nanquim.

 

E acho que a minha inspiração máxima é um quadrinhista estadunidense chamado Ronald Wimberly. Ele faz quadrinhos sempre relacionados a temática do negro: sempre fala sobre negritude de forma muito séria, muito responsável, e o desenho dele é maravilhoso. Eu o acho completo, ele é bom em tudo. É uma grande referência tanto de desenho quanto de narrativa e de conteúdo. Ele tem um projeto que se chama LAAB, um jornal em A2 no qual reúne vários artistas negros e apresenta artigos, quadrinhos e tiras curtas sempre em torno desse tema, com provocações muito pertinentes e uma crítica muito boa. É uma militância muito organizada e bem elaborada, e foi inclusive através deste trabalho que eu conheci outros artistas dos quais eu gosto muito, como o Richie Pope.

 

E também gosto muito de uma quadrinhista chamada Lucy Knisley, que faz quadrinhos e tiras cotidianas sobre ela, o filho e o gato dela. Ela é muito boa de texto e muito boa de síntese – com poucas linhas ela faz um desenho lindo que você super entende. Eu queria um dia tentar fazer esse tipo de trabalho, pegar algo banal do cotidiano e transformá-lo em quadrinhos.

 

 

 

Trabalho desenvolvido à convite do Instituto Moreira Salles (IMS)

 

 

 

PROCESSO DE PESQUISA E CRIAÇÃO DO QUADRINHO INDIVISÍVEL

Foi muita leitura histórica sobre o período retratado, sobre o bairro da Liberdade e sobre escravidão no Brasil. Eu tinha uma preocupação muito grande com imagens, pois como era um quadrinho eu teria que reproduzir corretamente os cenários e vestimentas. Então pesquisei muito sobre como eram as casas na época, por exemplo, e li um livro com os uniformes do exército brasileiro. Também li sobre o Cemitério dos Aflitos, porque foi o primeiro cemitério público de São Paulo. Mas ninguém fala sobre isso porque ele não existe mais, porque foi soterrado.

 

Algo que aconteceu durante o trabalho foi ter de recorrer muito à história oral, porque eu ficava desesperada de não encontrar material suficiente sobre o bairro na época. Mas a minha orientadora falava, “você está fazendo uma ficção histórica, tudo bem recorrer também a essas novas fontes”, porque também era importante para o trabalho passar o sentimento de pertencimento dessas pessoas com aquele espaço. Com isso, parte da narrativa veio muito de conversas com as pessoas sobre esse lugar, sobre essa memória, sobre o que aquilo significava para elas.

 

Um exemplo é a Capela dos Aflitos: tem pessoas que falam que os escravos ficavam confinados lá, mas tem pessoas que negam. Existem inúmeras versões dessas histórias. O Chaguinhas, tinha gente que falava que ele era branco, tinha gente que falava que era preto. Fizeram um quadro dele em 2008, e ficou parecido com o Michael Jackson. Para mim isso não é uma simples coincidência, faz todo o sentido: o Michael Jackson, ele era branco ou era preto? Existe essa referência muito clara.

 

Então eu escolhi contar que o Chaguinhas era negro. Porque as pessoas que trabalhavam na igreja falavam: “não, ele não era negro, nada disso”. Só que para as pessoas pretas que vão lá ele era preto, aí você vai falar o que? E a gente sabe que essa narrativa já é apagada, já é totalmente posta de lado em detrimento de uma narrativa branca, sempre. Então eu escolhi fazer ele preto, porque para mim ele é preto. Porque para essas pessoas negras que encontram naquele lugar um espaço de resistência, ele é preto. Também decidi falar que sim, que ele salvava os escravos confinados, que esse foi um dos motivos pelos quais ele foi enforcado. Tem gente que fala que não, que ele foi enforcado exclusivamente por ser líder de uma das revoltas por igualdade de pagamentos na época. São essas decisões que precisam ser tomadas conforme o ponto que você quer marcar. Então o processo de Indivisível foi uma costura de tudo isso, desde livros históricos até conversas com as pessoas e observação dos lugares.

 

 

 

Indivisível

 

 

 

COLORISMO E IDENTIDADE NEGRA

Quando eu vi aquele quadro do Chaguinhas, na Capela dos Aflitos, e as pessoas falando sobre ele, eu pensei diretamente no que aconteceu comigo a vida inteira: eu nunca fui branca, mas ninguém nunca me disse que eu era negra. Mas ao mesmo tempo, quando eu tinha cerca de 15, 16 anos, as pessoas começaram a me elogiar dizendo que eu parecia a Halle Berry, a atriz estadunidense. Ela foi a primeira mulher negra a ganhar o Oscar, e isso não é questionável. Então ao me elogiarem, me comparavam com uma mulher negra; mas ao mesmo tempo eu nunca fui negra… então é essa espécie de limbo no qual o negro de pele clara vive, que é o meu caso, e eu me identifiquei muito ao ver aquele quadro. As pessoas querem tirar a negritude dessa pessoa porque isso é visto como uma coisa negativa, então elas usam todas essas palavras “ah ele era moreno, ah ele era mulato”, palavras que foram usadas para me descrever a minha vida inteira.

 

O meu primeiro encontro com o racismo foi quando eu era criança: fui à cantina da escola com uma colega branca, ela comprou chiclete e eu pedi um, mas ela me disse “não, você é negra!”.

E isso mudou nos EUA. Quando eu cheguei lá eu era negra, sem a menor sombra de dúvidas. Foi uma coisa muito impactante na minha vida, que também me levou a fazer Indivisível, porque pela primeira vez eu fui identificada, eu soube quem eu era, e isso me fez muito feliz. Eu queria fazer um quadrinho sobre esse não-lugar do negro de pele clara. Porque eu nunca fui branca, ninguém nunca me colocou nesse lugar, então por que eu não era preta?

 

Minha mãe é branca, meu pai é preto. Mas o meu pai foi falar de negritude comigo depois que eu fiz Indivisível. Inclusive eu penso nisso: eu puxei o cabelo da minha mãe, mas se tivesse o cabelo igual ao do meu pai com certeza teria rolado muito mais preconceito, e é algo que você percebe. O meu primeiro encontro com o racismo foi quando eu era criança: fui à cantina da escola com uma colega branca, ela comprou chiclete e eu pedi um, mas ela me disse “não, você é negra”. Já me questionaram sobre o que é a negritude, sobre a minha negritude, e quando digo para a pessoa me imaginar de black power, não restam dúvidas. Mas e aí? Você vai definir o negro pelo cabelo? Pó, e aí? O Cauã Reymonds e o Donald Trump são considerados brancos, e ninguém questiona isso, apesar de serem totalmente diferentes um do outro. Então ainda é isso, lutar por essa imagem que foge desses signos.

 

 

 

HQ feita para o Instagram do SESC 24 de Maio, como parte do projeto Crônicas Centrais em Quadrinhos, em homenagem ao mês da consciência negra

 

 

 

NEGRITUDE E CULTURA POP JAPONESA

Hoje eu leio mais sobre pessoas negras que são fãs de anime e que fazem cosplay. E eu identifico um lugar pelo qual eu sempre passei, mas não soube nomear por ser muito nova. Eu e minhas amigas éramos muito fãs de cultura pop japonesa, a gente ia para a Liberdade toda semana. Eu fiz cosplay de Luffy (personagem do mangá One Piece) quando eu tinha 16, 15 anos, e eu lembro de não falar para ninguém por medo de me zuarem, porque eu não era da cor do Luffy. Não só do Luffy mas de todos os meus cosplays, eu lembro desse medo. Mas eu nunca disse nada, e lembro também de pirar nessas coisas mas ao mesmo tempo não ter essa identificação, essa representação. Não tinham muitos personagens pretos.

 

Eu tenho essas reflexões hoje, mas eu não sabia o que estava acontecendo quando eu realmente consumia essas coisas. Isso nunca foi algo que veio à tona, só pensava muito sobre sem saber nomear isso. Porque eu não sabia o que eu era, eu nunca soube o que eu era. Tudo é uma dúvida, é um não-lugar. São questionamentos que você não consegue pontuar e dizer “ah é por isso”, sabe? Mas eu sempre fui muito muito fã de anime, e por causa disso ia muito na Liberdade com as minhas amigas, e por isso que é o meu bairro preferido até hoje. Passava muito por lá e resolvi fazer o trabalho por causa disso. Eu não sabia que o bairro era um bairro negro, eu resolvi fazer porque era o bairro que eu mais gostava, eu queria falar sobre essa identidade, e quando eu descobri que ele tinha esse lado que era relevante para a cultura negra, eu falei “nossa não tinha a menor dúvida que esse era o trabalho que eu deveria fazer!”.

 

 

 

Indivisível

 

 

 

QUADRINHO SOBRE A VINDA DA ANGELA DAVIS AO BRASIL EM 2019

Foi um quadrinho curto, mas que eu gostei de ter feito, justamente para imortalizar esse momento que eu passei e para mostrar para as pessoas algumas coisas que ela disse. A Gabi Borges, do Mina de HQ, me convidou, porque ela tem esse site sobre quadrinhos feitos por mulheres, e perguntou se eu gostaria de fazer uma tira sobre esse dia. De manhã fomos na coletiva de imprensa e à noite eu fui com a minha mãe e a minha tia na palestra no Auditório do Ibirapuera. Foi muito massa, porque ela é uma inspiração, é um símbolo de luta e resistência muito forte até hoje. Ainda velhinha ela continua representando tudo isso. Eu fiquei muito feliz, muito honrada com esse convite da Gabi.

 

Angela Davis é uma lenda, toda a luta da história dela dentro e fora dos Panteras Negras foi muito importante. Conhecer essas pessoas dá uma força assim, sabe: “nossa vou continuar fazendo o meu trabalho”. Pessoas pretas em lugares de destaque, em lugares importantes dão um incentivo.

 

 

 

Angela Davis, New Haven, 1996 / Chuck Martin

 

 

 

QUADRINHO EM TI ME VEJO, COM REGIANE BRAZ

É um quadrinho sobre uma mulher negra que vai ao cabeleireiro e decide cortar a parte alisada do cabelo, para ver o seu cabelo verdadeiro pela primeira vez em muitos anos. A transição capilar é um tema muito legal, que inclusive está sendo muito discutido hoje em dia. A experiência é bem diferente para mim, porque eu sempre fiz os meus próprios roteiros, sempre, e nesse o roteiro é da Regiane Braz, minha amiga, e eu faço a narrativa visual.

 

É a primeira vez que eu faço um trabalho no digital, o que é legal, mas eu descobri que eu prefiro fazer a mão, prefiro o desenho no papel. Hoje eu também tenho muito menos tempo do que eu tinha quando eu fiz Indivisível – eu fiz uma conta e eu tenho três vezes menos tempo para produzir hoje. Eu faço umas nove, dez páginas por mês, mais ou menos um capítulo. Estamos tentando lançar mensalmente até terminar a história, creio que até julho/agosto, e ano que vem queremos lançar um livro impresso da história.

 

 

 

 

 

 

MEMÓRIA E QUADRINHOS

A memória é muito importante para mim, porque é tudo o que se tem no final: as coisas que te fazem feliz ou não, estão totalmente relacionadas a sua memória. Quando eu morei nos EUA eu fiquei longe de tudo que me era familiar por um ano, e o que me dava vontade de voltar ao Brasil era pensar em todas as pessoas que eu gostava, e eu acessava isso através da memória.

 

Para mim tem essa relação entre memória e o fazer de quadrinhos porque, para mim, o quadrinho é a minha melhor forma de expressão; portanto é a melhor forma de registro de memórias que eu posso produzir. Acho que esse processo é uma forma de imortalizar esses momentos, porque eu tenho muito essa preocupação de “não queria que isso acontecesse e eu não fizesse nada a respeito”, porque só a sua memória não é o suficiente, pelo menos pra mim. Depois de um tempo você já não lembra de tudo, por isso é legal você escrever ou produzir alguma coisa.

 

Eu acho que o trabalho para o Instituto Moreira Salles, no qual eu falava sobre uma viagem que fiz com o meu pai, foi algo muito mais pessoal do que Indivisível de certa forma. O que me impulsionou a fazer Indivisível foram motivos muito pessoais – essa descoberta da minha identidade como negra, mas ele fala mais de um espaço coletivo e de como essa memória é importante para a cultura negra, para os negros que frequentam esses lugares. Enquanto eu fazia o trabalho para o Instituto Moreira Salles, eu tinha essa sensação, de que eu estava contando uma história que talvez não tenha tanto por aí. Hoje eu entendo que eu sou uma pessoa negra fazendo quadrinhos, ainda sou minoria, ainda mais por ser mulher, então eu tenho essa força que me motiva do tipo: “eu preciso falar”, porque você não vê muito. Não é só por mim, mas é importante, eu acredito que seja importante. É uma coisa que me incentiva.

 

 

 

Ilustração produzida para a revista do SESC

 

 

 

IMPORTÂNCIA DOS PROTAGONISMOS NEGROS NOS QUADRINHOS

Negros consomem muita cultura pop. E existimos, mas não nos vemos. E tudo isso molda a sua autoestima. Você não se enxerga nesses papéis de protagonismo. Quando se é mais novo, as referências passam muito pela cultura pop, pela mídia, pela televisão, pela propaganda, então você não consegue se enxergar. Pelo menos eu me sentia assim.

 

Meu cérebro “explodiu” pela primeira vez vendo o filme de Sin City porque tinha a Gail, uma personagem negra de pele clara, da minha cor, e essa foi a primeira vez que, de certa forma, eu vi que eu poderia estar em uma posição de liderança, sabe? E é muito louco pensar, que essa experiência para mim é constante se você é branco. Você sempre é o herói, a menininha, a mocinha que todo mundo quer ser.

 

“Hoje eu entendo que eu sou uma pessoa negra fazendo quadrinhos, ainda sou minoria, ainda mais por ser mulher, então eu tenho essa força que me motiva do tipo: “eu preciso falar”. (…) Não é só por mim, mas é importante, eu acredito que seja importante”.

Hoje eu penso sobre representatividade, agora que eu entendo melhor como funciona. Fiz um desenho do Spike Spiegel, do anime Cowboy Bebop, negro, e fiquei pensando: “como seria a nossa cabeça, como seria a nossa autoestima se esses caras que eu acompanhei a vida inteira tivessem a minha cor?”. É muito louco você pensar isso. Eu cresci em uma realidade totalmente branca, com a família da minha mãe, fiz escolas particulares… Eu sempre fui a única negra do rolê. Sempre, sempre, sempre. E até me entender negra, nossa. Hoje, sabendo da minha identidade, eu volto para inúmeros pontos da minha vida e eu falo: “era isso que estava acontecendo”. E em qualquer situação: seja em um evento de anime, numa festa, sabe assim, você vai traçando todas essas… E eu tenho essas reflexões. Eu lembro do meu sofrimento totalmente silencioso de achar que alguém ia rir de mim porque eu não era da mesma cor que o personagem que eu estava fazendo cosplay, sabe? E é muito louco você perceber que, de certa forma, é quase um terror psicológico que existe sem ninguém nunca ter te dito nada em relação a isso de tão opressor que é, e de tanto que essas coisas não são discutidas. Então eu acho que é muito importante a representatividade justamente por isso. É uma forma de empoderamento, de enxergar as possibilidades. Para você e para as pessoas da sua cor. Onde você pode estar, onde você deve estar.

 

 

 

 

 

 

 

Leonardo Rodrigues

LEONARDO RODRIGUES é paulistano, radialista, ilustrador, colecionador e pesquisador de quadrinhos. Especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP; graduado em Design Gráfico pela Universidade Anhembi Morumbi. Autor da pesquisa "Protagonismo nos quadrinhos do Brasil: Quadrinhistas negros (re)desenhando a história".

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.