junho de 2020
JOHN SIMS: MATEMÁTICA E ARTES A SERVIÇO DAS CATARSES ANTI-RACISTAS
Fabiana Mendes de Souza
(Esq) Confederate Gothic
John Sims
2004
(Dir): The Proper Way to Hang a Confederate Flag
Ohio University
John Sims
2017
fotos cortesia do artista
Há quem diga que as ciências exatas, as humanidades e as artes ocupam espaços distintos e paralelos na produção do conhecimento. O artista conceitual interdisciplinar John Sims, porém, nos prova que esse tipo de pensamento é limitado. Bacharel em Matemática, Sims iniciou o doutorado na mesma área e coordenou o curso de Matemática na Faculdade Ringling de Arte e Design, onde desenvolveu um currículo de matemática visual para artistas. Foi também curador de mais de 15 exposições e desde então dedica-se à arte em tempo integral, bem como à prática da escrita.
Através da área que cunhou como MathArt ou Arte Matemática, produziu uma série de performances, vídeos, filmes experimentais e, no primeiro trimestre de 2020, criou um jogo online onde o jogador tem de exterminar o coronavírus, de modo a experimentar certa sensação de agência nessa fase transpassada pelo medo, dúvidas e prostração diante da realidade. As produções de Sims se propõem, desse modo, a romper as barreiras da descrição fria da realidade através da linguagem matemática, colorindo e dando alma aos processos sociais com auxílio das artes. Trata-se de uma tentativa de extravasar os não ditos do mundo que nos cerca. Assim, busca ampliar as leituras de Pitágoras e Da Vinci, valendo-se da leitura de mundo de nomes como James Baldwin, Richard Pryon, Martin Luther King Jr, Malcon X e Harriet Tubman.
“Para o artista, a queima da bandeira dos confederados é um processo catártico, que objetiva a cura e a transformação das crises raciais no país”.
A iconografia da escravidão tem sido um grande mote para a produção artística de Sims, especialmente a bandeira dos confederados, referência à Guerra de Secessão (1861-1865), que dividiu os Estados Unidos entre Confederados (estados do sul do país) e União (representada pelos estados do norte). Nessa guerra, os estados do norte, voltados para o avanço da produção industrial, baseada na mão de obra livre e assalariada, rompia com a base escravocrata e de produção agrícola defendida pelos estados do sul do país. Nesse contexto, os confederados passaram a lutar pela manutenção da escravidão, ao passo que o norte lutava pela abolição da mesma. A bandeira dos confederados foi associada a pensamentos e comportamentos racistas e é usada, até os dias atuais, como símbolo de movimentos que pregam a supremacia racial branca, como a Ku Klux Klan, por exemplo. Hoje, nos Estados Unidos da América, hastear tal bandeira pode ser considerado crime de ódio racial em muitos estados.
O crescente interesse na bandeira dos confederados e sua iconografia ganhou corpo nas produções de Sims quando da chacina de Charleston, em 2015, onde o racista Dylann Roof abriu fogo e matou vários afro-estadunidenses em uma igreja da cidade. Na ocasião, John Sims organizou a intervenção denominada Nationwide Burning (Queima Nacional) em que a bandeira dos confederados foi queimada. A mensagem desse ato era: a guerra civil acabou e a supremacia branca será confrontada. Para Sims, a queima da bandeira dos confederados, portanto, é um processo catártico, que objetiva a cura e a transformação das crises raciais no país. Em seus últimos trabalhos, Sims, além da queima da bandeira, tem adotado outra forma de intervenção artística utilizando a mesma bandeira dos confederados, porém, recolorindo-a com as cores do Pan africanismo: vermelho, preto e verde.
Em 2004, John Sims descobre que no Brasil, mais precisamente nas cidades de Americana e Santa Barbara d´Oeste, localizadas no interior paulista, há descendentes de migrantes confederados que fugiram da guerra civil estadunidense no final do século XIX. Para sua surpresa, esse grupo ainda usava a bandeira como símbolo identitário.
Em 1876, Dom Pedro II, imperador em um Brasil ainda escravagista, visita Washington DC e participa de um evento na Filadélfia. Na ocasião, ele oferece asilo aos confederados, que sofriam com as consequências da derrota na Guerra de Secessão. O interesse do império era não só a tecnologia do cultivo do algodão, pois os Estados Unidos da época contava com um sistema mais moderno, como também, interessava embranquecer a população do Brasil. Para os confederados, que já haviam perdido totalmente ou boa parte de suas terras na guerra, o Brasil poderia ser um destino interessante pois além dos subsídios que receberiam para se instalarem no país, a região brasileira de destino tinha um clima parecido com os estados do sul estadunidense, além de terra fértil e a disponibilidade de mão de obra escrava, então proibida nos Estados Unidos.
No intervalo de 20 anos, de 1865 a 1885, estima-se que mais de 10 mil confederados entraram no Brasil. Boa parte deles se dirigiu às cidades de Americana e de Santa Barbara d´Oeste e, alguns, em menor quantidade, para as regiões portuárias de Santos e Rio de Janeiro.
John Sims e a instalação The Proper Way to Hang a Confederate Flag (A maneira correta de pendurar uma bandeira confederada), montada em frente ao Kennedy Museum of Art, na Universidade de Ohio, em 2017.
Trimestralmente, os descendentes dos confederados no Brasil, reúnem-se no cemitério do Campo, em Santa Bárbara d´Oeste, onde a Fraternidade Descendência Americana organiza sua festa anual, a Festa Confederada. Neste evento há a venda de comidas típicas do sul estadunidense e bailados de country music, com dançarinos vestidos à moda da época da Guerra de Secessão.
Há alguns anos os movimentos negros do Brasil, principalmente a UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), tem feito atos à entrada do festival, alertando para a correlação entre a bandeira dos confederados e os movimentos racistas nos Estados Unidos. Em 2015, houve um debate público envolvendo ativistas negros e a Fraternidade Descendência Americana, que nega qualquer defesa da entidade ao racismo e a relação da bandeira com os movimentos racistas estadunidenses. Para a fraternidade, excluir a bandeira das comemorações e sua vinculação com o grupo está fora de cogitação.
John Sims, como afirma na entrevista abaixo, está desde 2014 tentando fazer sua performance Nationwide Burning, no Brasil. Sua ideia original era utilizar os museus das cidades de Americana e de Santa Barbara d´Oeste. Porém, não teve sucesso nas negociações. Com essa impossibilidade, o artista tem buscado outros espaços no país onde possa apresentar o seu trabalho. Para Sims, o processo de cura das feridas do racismo no seu país, e aqui, no Brasil, requer a suplantação dos ícones da simbologia racista, que ainda persiste em terras brasileiras, através do hasteamento da bandeira dos confederados no interior paulista. Assim, nesse contexto, para que a catarse antirracista ocorra, a destruição (a queima) ou a ressignificação (a recoloração da bandeira com cores pan-africanistas) precisa ser feita lá (Estados Unidos) e aqui também. Nas linhas que seguem, John Sims nos conta sucintamente sua trajetória e sua luta antirracista através da arte matemática.
entrevista///
FABIANA MENDES DE SOUZA – Você tem uma trajetória interessante, passando pela matemática até a concepção de produção multimídia, que parece ir além da ideia de uma mera intervenção artística. Como tem sido essa sua caminhada profissional? Quais são as inspirações para sua trajetória?
JOHN SIMS – Enquanto estudava matemática na faculdade, comecei a fazer arte. Depois, lecionei em uma faculdade de arte, onde criei um currículo de matemática para estudantes de arte. A partir daí, comecei a me concentrar em fazer arte matemática e curar uma série de exposições de MathArt. O trabalho de MathArt se tornou a base do meu projeto Ritmo da Estrutura. Mais tarde, comecei a trabalhar em performance, poemas em vídeo e filmes experimentais. Em um certo momento, fiquei interessado nos símbolos da supremacia branca, particularmente na bandeira confederada e na iconografia da escravidão americana, levando ao meu projeto Proclamação de Recoloração. Esse trabalho me levou a criar o John Sims Projects, um laboratório de arte para a pesquisa e criação de trabalhos em sistemas de grande escala que exploram idéias em matemática, música, natureza, amor e busca da justiça humana.
Eu tenho sido inspirado por muitas coisas e pessoas. Do lado da matemática, Pitágoras e sua escola de pensamento e prática interdisciplinares; do lado da arte, Da Vinci, MC Escher, Joseph Beuys e Sol LeWitt. Do lado da literatura e da performance, estão as palavras de James Baldwin e o humor provocador de Richard Pryor. E no lado político, há Martin Luther King Jr., Malcolm X, Harriet Tubman e o espírito da Revolução Francesa. No entanto, é a interseção da estrutura limpa e da verdade da matemática, a mágica da expressão criativa e a política da justiça social que mais inspiram minha humanidade. Tudo mais flui disso.
O convite para a intervenção Enforcamento Público da Bandeira dos Confederados, realizada em 2017.
FMS – Sabemos que a matemática é a linguagem pela qual os fenômenos naturais são expressos. De outro lado, temos as artes visuais, que, a priori, não responde a algoritmos de forma direta. Qual a relação entre essas duas áreas para você? Como a matemática te auxilia na produção artística e vice-versa?
JS – Matemática e arte são parâmetros da cognição humana que moldam o processo e a experiência da realidade ao nosso redor. Ambos nos dotam da capacidade de “ver” além da superfície da ótica biológica, e ver a alma e a estrutura das coisas, capturando um ritmo em que as formas do físico e as idéias da metafísica dançam em harmonia. Para mim, o processo de linguagem e pensamento da matemática informa meu trabalho em um nível fundamental, dando-me acesso a uma realidade conceitual a partir da qual posso recorrer a estruturas e sistemas que me ajudam a criar um trabalho que examina e responde ao mundo ao nosso redor.
A arte e o processo de visualização me ajudam a entender a matemática em um nível mais profundo, inspirando a criação e a descoberta de novas conexões matemáticas. Essas duas partes se cruzam como MathArt. Um estilo de vida cognitivo e espiritual é a base da minha prática criativa e perspectiva política.
Burn, Recolor and Hang, John Sims – 2017
Down South Americana, John Sims – 2020
FMS – Boa parte da sua produção nos últimos anos se refere a um momento nevrálgico na história nacional estadunidense: a Guerra de Secessão. Há bastante referência à bandeira dos Confederados e, em uma das suas obras, a queima dessa bandeira. Qual sua intenção com essa temática? Como tem sido a repercussão nos Estados Unidos da América?
JS – Como nativo de Detroit, uma cidade predominantemente negra, não vi muitas bandeiras confederadas na vida real. Para mim, essa bandeira não é um símbolo do orgulho do sul, mas um símbolo do orgulho branco do sul, supremacia e vergonha de perder a Guerra Civil. No final dos anos 90, houve um grande problema na Carolina do Sul sobre a bandeira da Confederação sendo posicionada na cúpula do edifício do Capitólio. Em resposta a isso, comecei a recolorir as bandeiras confederadas nas cores pan-africanas (vermelho, preto e verde) em várias apresentações no Soho e Harlem (NY), além de Gettysburg, onde ocorreu a maior batalha da Guerra Civil. A peça que apresentei lá, A maneira correta de pendurar uma bandeira confederada, inspirou um enorme clamor nacional dos Filhos dos Veteranos Confederados.
“Embora existam algumas diferenças nas relações raciais no Brasil e nos EUA, há uma resistência coletiva e criativa semelhante que foi empreendida contra o profundo colonialismo e a escravidão e que moldaram nossos caminhos paralelos rumo à liberação psicológica e material”.
Essa reação foi intensa e, como resultado, os elementos da exposição foram suprimidos ao ponto que boicotei meu próprio show. Em 2015, para o aniversário de 150 anos do fim da Guerra Civil, organizei 13 funerais de bandeira confederada no Memorial Day, com poetas, artistas e ativistas comunitários de cada um dos 13 ex-estados confederados. Cerca de três semanas depois, nove pessoas foram mortas em uma igreja em Charleston, Carolina do Sul, pelo racista Dylann Roof. Em resposta a isso, organizei uma queima nacional da Bandeira Confederada, em 4 de julho, Dia da Independência. Este evento evoluiu para o evento anual Burn and Bury (Queimar e Enterrar).
A intenção com este trabalho evoluiu de confrontar meus medos pessoais em relação a esta bandeira para organizar uma resposta coletiva. Com Queimar e Enterrar, quero enviar uma mensagem de que a Guerra Civil acabou, e a bandeira da Confederação e a supremacia branca serão confrontadas. Também quero comemorar os soldados da justiça social que lutaram contra a escravidão, aqueles que lutaram pelos Direitos Civis e aqueles que continuam a lutar contra a supremacia branca institucional e cultural contemporânea. É hora de pegar a bandeira confederada e usá-la como um símbolo da ação catártica, dando origem a um novo ritual para todos se envolverem: um espaço de cura e transformação.
FMS – Soubemos que você tem tentando expor seu trabalho no Brasil, pois uma das cidades brasileiras, Americana, localizada no interior paulista, foi “fundada” por migrantes estadunidenses, durante a Guerra de Secessão, pertencentes ao grupo dos confederados. Por que você quer fazer essa exposição no país? Como tem sido a negociação para expor esse seu trabalho?
JS – Em algum momento depois da minha apresentação em Gettysburg, em 2004, descobri a história da cidade de Americana e como ela foi fundada a partir de fugitivos confederados após a Guerra Civil, a convite do imperador Dom Pedro II, de Portugal, que estava interessado no fortalecimento da indústria do algodão no Brasil. Achei essa cidade e sua conexão com o Alabama e a Confederação interessantes, especialmente porque minha família é do sul dos Estados Unidos, então comecei a pensar em maneiras de trazer algum trabalho de Proclamação de Recoloração para lá, como uma maneira de compartilhar o outro lado da história da herança confederada em termos da experiência afro-americana e da escravidão nas Américas.
Em 2014, iniciei um diálogo com um espaço de museu, em Americana, sobre a realização de uma exposição e a apresentação da minha bandeira afro-confederada como um presente para a cidade em memória dos escravos americanos e brasileiros que sofreram sob o poder desses ex-patriotas confederados. Devido a reformas, cortes no orçamento posteriores e possivelmente outros motivos, a exposição nunca aconteceu.
Em 2016, me juntei à incrível Roberta Estrela D’Alva, uma poeta e artista performática brasileira. Depois de muitas conversas, convidei-a para responder a uma das minhas faixas do CD AfroDixieRemixes. Este projeto foi criado para examinar subversivamente o hino da Confederação, Dixie, remixando, remapeando e se apropriando de uma coleção de 14 faixas nos diversos gêneros da música negra: espiritual, blues, gospel, jazz, funk, calypso, samba, soul, R&B, house e hip-hop. Roberta traz uma poderosa expressão e percepções sobre essa história amplamente desconhecida de Americana, conectando as lutas de escravos de ascendência africana nos EUA e no Brasil através de elementos de um remix de samba/bossa nova Dixie.
Down South Americana, resposta da artista multidisciplinar Roberta Estrela D’Alva ao Projeto AfroDixieRemixes, de 2016.
FMS – Para finalizar, gostaríamos de saber qual sua percepção, como estadunidense, sobre as relações raciais no Brasil?
JS – Nunca tendo estado no Brasil, minha visão é certamente limitada. No entanto, sinto nas minhas discussões com meus amigos e colegas brasileiros que o racismo, o colorismo e a supremacia branca estão tão vivos e prósperos quanto aqui nos Estados Unidos. Tenho certeza de que a divisão de classes, a história da escravidão, a política de raça mista e a contínua opressão dos nativos compõem os problemas e a jornada para a equidade e a inclusão e tal jornada é muitas vezes insuportável e traumatizante.
Considerando que as pessoas de ascendência africana são a maioria no Brasil, elas parecem invisíveis dos espaços e lugares de poder. Isso é inacreditável, principalmente se você pensa em um Brasil sem pessoas negras e marrons. Quando você acrescenta a brutalidade policial, a violência armada e as disparidades econômicas que afetam nosso povo nos dois países, devemos chamar atenção, devemos engajar ideias, palavras e ação.
Embora existam algumas diferenças nas relações raciais no Brasil e nos EUA, há uma resistência coletiva e criativa semelhante que foi empreendida contra o profundo colonialismo e a escravidão e que moldaram nossos caminhos paralelos rumo à liberação psicológica e material. Fico encorajado pelo trabalho que está sendo feito no Brasil para abordar algumas dessas preocupações e sou solidário com esse momento persistente. Eu saúdo a memória de vida e obra da ativista assassinada Marielle Franco e de todos os demais trabalhadores empenhados na justiça social brasileira, enquanto continuamos nessa jornada global e na luta por cura, pela autodeterminação negra e por um mundo justo e livre de supremacia branca.
saiba mais/// JOHN SIMS
Tradução da entrevista: Luciane Ramos-Silva