setembro de 2018

FRÉDÉRIC B. BOUABRÉ: ESCREVENDO CERTO POR LINHAS TORTAS

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

 

 

Os traços simples de formas quase ingênuas e aparentemente despretensiosas que remetem ao universo lúdico das criações infantis, ao mesmo tempo em que flertam com o que conhecemos como arte naïf; escondem, na verdade, uma intensa investigação intelectual que, nas palavras do seu próprio criador, refletem a essência do seu pensamento: “atingir a universalidade e unir a humanidade”.

 

Nascido em Zéprégué, uma aldeia localizada no oeste da Costa do Marfim, Frédéric Bruly Bouabré (1923 – 2014), que em 2012 expôs parte do seu trabalho na 30º edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, possui uma trajetória artística, se assim podemos definir a originalidade que permeia sua produção criativa, bastante peculiar. Fundamental salientarmos que Bouabré pertenceu a primeira geração de marfinenses educados pelo governo colonial francês. Ou seja, o artista teve sua formação educacional baseada no sistema formal do Ocidente.

 

Em 11 de março de 1948, por volta dos 24 anos de idade, Bruly Bouabré teve uma experiência reveladora que viria não apenas influenciar, mas como também modificar significativamente sua vida. Na referida data, o artista teve uma visão: “os céus abriram-se perante mim e sete sóis coloridos descreveram um círculo ao redor da sua Mãe-Sol. Eu me tornei Cheik Nadro: ‘Aquele que não esquece’”, afirmou certa vez o artista sobre o sonho revelador.

 

Qualquer semelhança com o despontar da produção do sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909/1911 – 1989), que em 22 de dezembro de 1938, teve delírios e alucinações que o fizeram anunciar que era um enviado de Deus, encarregado de julgar os vivos e os mortos, não é mera consciência. Bruly Bouabré e Bispo estiveram juntos na 30º Bienal de São Paulo e, um ano depois, na Bienal de Veneza. O filósofo, físico e matemático francês René Descartes (1596 – 1650), é outro importante personagem da história ocidental que, tal qual Bruly Bouabré e Bispo, também teve uma visão em um sonho (em 10 de novembro de 1619). No caso de Descartes, de um novo sistema matemático e científico.

 

A partir da mencionada experiência “divina”, Bruly Bouabré – que até o ano de 1982 trabalhou como secretário, assistente, escriturário e outras diferentes funções burocráticas em órgãos públicos do governo estatal marfinense – buscando uma forma de transmitir conhecimento nos campos das artes e tradições, poesia, lendas, religião, estética e filosofia ao povo Bete (grupo étnico, quase extinto, situado na Costa do Marfim e que possui uma língua não escrita) inventou um alfabeto de 448 pictogramas monossilábicos de forma a representar sílabas fonéticas. Conforme definição do próprio artista, esses sinais formam o que ele chama de Alfabeto do Oeste Africano. Cada hieróglifo é desenhado em um mapa e sua tradução em francês é escrita ao redor da imagem. A criação deste novo alfabeto, com o qual o artista transcreveu todos os sons humanos, reflete a essência do seu pensamento: “atingir a universalidade e unir a humanidade”. O fato também lhe rendeu comparações com o estudioso francês Jean-François Champollion (1790 – 1832), conhecido por descobrir a chave para a compreensão dos hieróglifos egípcios.

 

 

 

 

Entre as revelações recebidas por Bouabré há o conceito que Deus é um escritor, e Bouabré crê que a “escritura divina” de Deus seja constituída de objetos animados e inanimados, de seres vivos e dos fenômenos físicos: através de todos os objetos e seres do mundo.

 

Foi nos anos 1970 que Bruly Bouabré começou a transferir o seu pensamento para centenas de pequenos desenhos com formato de cartão postal, usando caneta esferográfica e lápis de cor. Estes desenhos, juntos, sob a designação de Connaissance du Monde (Conhecimento Mundial), formam uma enciclopédia de conhecimento universal.

 

Quando em vida, Frédéric Bruly Bouabré qualificava seus desenhos como “a representação de tudo o que é revelado ou ocultado – sinais, pensamentos, sonhos, mitos, a ciência, as tradições”, e enxergava o seu papel de artista como um chamamento. “Agora que somos reconhecidos como artistas, o nosso dever é organizar a sociedade, e assim criar condições para a discussão e a troca entre os que adquirem e os que criam. Daí poderá resultar uma feliz civilização mundial”, dizia.

 

Interessante notar na fala de Bruly Bouabré o “reconhecimento”, tardio, que recebeu como artista. Vale lembrar que a produção de Bouabré foi “descoberta” pela Ocidente através da icônica mostra “Magiciens de la Terre (Os Mágicos da Terra)” de 1989, no Centro Georges Pompidou, na França. Assim, a arte de Bouabré pode ser considerada, conforme conceito desenvolvido pelo antropólogo Nelson Graburn, como arte “por metamorfose”, ou seja, rotulada posteriormente como arte, geralmente por sociedades distantes da do produtor.

 

 

 

 

Durante muito tempo sua produção foi pouco considerada e apoiada em seu país. A primeira mostra da qual participou em território africano foi “L´Afrique e la Lettre”, em 1986, no Centro Cultural Francês, em Lagos, na Nigéria, e conforme o título da exposição, seu intuito era discutir o papel da escrita entre os povos africanos. Muito provavelmente esta não validação de Bruly Bouabré enquanto artista dentro da sociedade africana possa ser entendida na fala da escritora e estudiosa da arte africana Sidney Kasfir. “Tradicionalmente, a profissão de escultor, ou qualquer outra que resulte na criação de artefatos (moldes em metal, tecelagem, peças de olaria, etc.) está relacionada a uma atividade que não é muito diferente da agricultura, da reparação de rádios ou da condução de um táxi. Isto não significa que não seja uma atividade ‘séria’ – o trabalho é sempre sério – só que essa atividade é vista de um modo pragmático. Faz-se o que é necessário, para se tornar um artífice com sucesso”.

 

Em seu trabalho, Bouabré indiretamente questiona o conceito de autenticidade da arte africana defendida por parte de estudiosos, museus, marchands e colecionadores ocidentais mais proeminentes, para os quais a arte criada num contexto colonial ou pós-colonial não é autêntica por ter sido produzida posteriormente ao advento da economia monetária e das novas formas de patrocínio por parte de missionários, administradores coloniais e, mais recentemente, de turistas e da nova elite africana.

 

 

 

 

 

Esse questionamento está no fato da produção artística de Bouabré estar, sim, ligada a influência ocidental no continente africano (aliás, todos os aspectos da vida cultural africana contemporânea foram influenciados pela transição das sociedades africanas através do colonialismo), mas com olhos voltados a independência intelectual do seu povo, uma vez que a criação do alfabeto Bete tem como um dos seus objetivos principais incluir os nativos da etnia e reforçar a tradição escrita da África pré-colonial.

 

Os hieróglifos do artista, transpostos em fichas de arquivo, integram na transição fonética e na forma de cada letra, desenhos inspirados em costumes, tradições e intervenções. Se por um lado os cartões possuem sempre o mesmo modelo, os temas abordados, por sua vez, são infinitos. Bouabré compartilha o seu alfabeto com várias organizações no Senegal, Costa do Marfim e no seu vilarejo natal, onde diversos habitantes e membros da Ordem aprenderam a lê-lo e escrevê-lo corretamente.

 

“Agora que somos reconhecidos como artistas, o nosso dever é organizar a sociedade, e assim criar condições para a discussão e a troca entre os que adquirem e os que criam. Daí poderá resultar uma feliz civilização mundial”, Frédéric Bruly Bouabré .

 

Outro ponto instigante que circunda a trajetória de Bruly Bouabré diz respeito a não necessidade deste em distanciar-se dos seus antepassados. “Na era da reprodução mecânica, o individualismo estético, a caracterização da peça artística como pertencente à obra de um indivíduo e a incorporação da visa do artista na concepção do seu trabalho podem ser vistos, precisamente, como formas de identificação dos objetos para o mercado”. Assim, a vida individual de Bouabré torna-se significativa para a história futura dos seus trabalhos. Na contramão das relações entre Arte Tradicional Africana e o Ocidente – que até pouco tempo colecionava e identificava a arte africana como sendo própria de grupos étnicos e não de indivíduos ou de ateliês, as obras de Bouabré são identificadas como suas pelo mercado. Ao mesmo tempo, não trata-se de uma produção neo-colonial, conceito que Kwame Anthony Appiah, professor de filosofia e literatura na Universidade Duke, qualifica como um gênero artístico de produções destinadas a atender o Ocidente.

 

Tal qual grande parte da produção artística africana, quase que a totalidade dos desenhos de Bouabré pertencem a Coleção de Arte Africana Contemporânea (CAAC), do empresário italiano Jean Pigozzi (1952).

 

“Ironicamente, aquilo a que poderíamos chamar de arte africana canônica – peças que são colecionadas e exibidas e, portanto, autenticadas e valorizadas como ‘arte africana’ – foi e é produzida apenas em condições que, só por si, deveriam interditar o próprio ato de colecionar. Encarado de uma perspectiva ideológica anti-colonial, colecionar arte africana constitui uma atividade hegemônica, um ato de apropriação, de uma perspectiva histórica, pode ser considerado um empreendimento marcadamente colonial e, de uma perspectiva antropológica, é a consequência lógica de uma concepção evolucionista do outro”.

 

Para o venezuelano Luiz Pérez-Oramas, curador da 30º Bienal de São Paulo, e que teve como título ‘A Iminência das Poéticas’, “o destino da Bienal era achar um lugar que deveria estar entre o mercado, a feira de arte e o museu”. A reflexão apresenta o não-lugar, ou a dificuldade que, inclusive especialistas em arte possuem em separar, ou encontrar, a dimensão artística de uma obra da dimensão etnográfica da mesma.

 

 

 

 

 

Esteticamente, os trabalhos de Bouabré estão sempre acompanhados de textos, e seus desenhos versam sobre a vida, a morte, o amor, as relações do homem com o mundo e a natureza. Impossível resistir ao olhar sensível do artista que busca compreender os vários aspectos da existência humana, representando tudo o que pode ser revelado ou ocultado. Ao mesmo tempo, sua produção possui a importante função social e histórica de documentar e arquivar as crenças, folclore, costumes e os conhecimentos de seu povo. Sábio, fundador da sua própria religião, inventor do seu alfabeto pessoal, escritor, caçador de sinais, Bouabré é, se não um artista na plena concepção da palavra (como querem os ocidentais), uma das mais importantes figuras na luta pela preservação da cultura africana do século XX, e também um exemplo do caráter híbrido que influenciou, para o bem ou para o mal, a produção artística ao redor do mundo durante o colonialismo e o pós-colonialismo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.