setembro de 2016
ARTE NEGRA / ARTES DE NEGROS UMA CONVERSA ENTRE FORMA, TEMA, AUTORIA E COR EM “TERRITÓRIOS”
Helio Menezes
fotos MANDELACREW e Edouard Frainpont
Mestre Valentim
Caçador Narciso (esq.)
Bronze
1785
Ninfa Eco (dir.)
Bronze
1785
O Brasil era ainda uma colônia de Portugal quando, lá nos idos de 1780, Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), “filho de um fidalgote português contratador de diamantes e de uma crioula natural do Brasil”, nas palavras do crítico e historiador da arte Araújo Porto-Alegre (1806-1879), esculpe as primeiras estátuas em metal fundido da história do país. Ninfa Eco e Caçador Narciso, que compunham o antigo Chafariz das Marrecas, foram confeccionados para integrar o então recém inaugurado Passeio Público do Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa, que há pouco se tornara capital e sede da administração colonial no Brasil, ganhava assim o primeiro parque público das Américas. Espaço cujo planejamento e execução caberiam também a esse excepcional entalhador, urbanista e escultor negro, não por acaso apelidado de Mestre Valentim.
Passados mais de dois séculos, réplicas fidedignas dessas duas obras-primas do barroco brasileiro, situadas no centro do primeiro dos núcleos de Territórios – artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, denominado “Matrizes Ocidentais”, recepcionam os visitantes que chegam ao quarto andar da Estação Pinacoteca. Ladeados por obras de outros artistas afro-brasileiros, Eco e Narciso ajudam a compor um espaço expositivo múltiplo, no qual variados temas, motivos, estilos, técnicas e faturas são postos em diálogo. Esse é também um espaço formado pelo cruzamento de muitas temporalidades: o arranjo curatorial de Tadeu Chiarelli, guiado a expressar a grande diversidade – formal e semântica – da produção de artistas brasileiros afrodescendentes cujas obras integram o acervo dessa respeitada instituição paulista, reúne num mesmo plano peças que datam do século 18 aos dias atuais, borrando as fronteiras lineares do tempo que as separa.
A disposição das telas nas paredes da sala retangular segue um critério pautado no gênero das obras, aproximando-as com base em suas similitudes: no lado direito, retratos de si e de terceiros agrupam nomes como Arthur Timótheo da Costa (1882-1923) e Maria Lídia Magliani (1946-2012) enquanto, no lado esquerdo, naturezas-mortas sucedem o tradicional gênero de paisagens, cotejando artistas como Estêvão Silva (1845-1891) e Firmino Monteiro (1855-1888). Ao fundo e, não à toa, nas esquinas com as paredes laterais, Antônio Bandeira (1922-1967), Genilson Soares (1940) e Rômmulo Vieira Conceição (1968) compõem um conjunto de artistas que, por questões de conveniência e síntese, denominaremos “geométricos”.
Toda exposição, como toda obra de arte, é uma espécie de tese em andamento, aberta a tantas interpretações e leituras quantas forem as pessoas que lhe dediquem o olhar. Se a filósofa estadunidense Donna Haraway (1944) tem razão ao afirmar que “todos os olhos, incluindo os orgânicos, são sistemas perceptivos ativos, construindo traduções e maneiras específicas de ver”, então os sentidos de uma imagem serão sempre tributários, em maior ou menor grau, das especificidades e interesses contingentes de quem a observa. Bem como das relações tecidas com as demais imagens que a ela se acercam. O modo de apresentação das obras em Territórios, possibilitando alguns encontros curiosos entre telas que há muito se flertavam, vem corroborar essa ideia.
O avizinhamento do tríptico Representatividade: O Óbvio (2013), de Rômmulo Vieira Conceição, com a também tripartida Am. 1-Memória (1979), obra de Genilson Soares, é um desses casos. Nesta última, espaços perspectivados, formados por cores e linhas que convergem para um ponto de fuga extremado à direita, criam o efeito de espaços intercalados no qual objetos comuns, como cadeiras, escadas e corredores, convivem numa certa estranheza. A superposição de diferentes momentos de uma mesma coisa, como numa sequência de “fotos” quase idênticas que se sobrepõem, reforça a impressão. Dentro, fora, entre: a fusão do tempo com o espaço, ambos dispostos em camadas, é tema caro ao fazer artístico de Rômmulo. A inspiração nas obras de Genilson, em franco diálogo com tópicos pertinentes à sua produção, especialmente entre as décadas de 1970 e 1980 – como a criação de espaços geometrizados no interior de outros espaços, fundindo-os num mesmo plano; bem como o uso da luz em movimento, formando linhas que demarcam espacialidades de aparente solidez – é trazida à evidência com a contiguidade das telas.
Rômmulo Vieira Conceição
Representatividade: O óbvio I, II e III
Acrílica sobre papel vegetal
2013
O arranjo expositivo possibilita ainda outras tantas e imprevistas conversas entre telas, autores e temas, inseridas, entretanto, numa variedade tanto formal quanto semântica irredutível a qualquer unidade. Diante de tanta diversidade, os visitantes haverão de se perguntar: estes artistas e obras dispõem de alguma característica comum? À parte o fato de cada um, a seu modo e em seu tempo, imprimir às suas criações uma releitura original de linguagens artísticas e convenções acadêmicas de origem europeia, alterando-as enquanto as incorporam, haveria algum fio condutor subjacente a tamanha variabilidade? As indagações se ampliam à medida que avançamos nos outros espaços, ou “ilhas”, que dão corpo a Territórios. Também em “Matrizes Africanas” e “Matrizes Contemporâneas”, o mínimo denominador estético comum às obras expostas e artistas selecionados (alguns, inclusive, presentes em mais de uma sala) é a própria irredutibilidade do conjunto a uma narrativa única ou a um critério classificatório exclusivo.
Por certo, uma série de paralelos e influências pode ser traçada entre as técnicas empregadas nas xilogravuras e esculturas em madeira de Emanoel Araújo (1940), as serigrafias de Rubem Valentim (1922-1991), as litografias de Octávio Araújo (1926-2015) e os múltiplos suportes que dão corpo à obra de Edival Ramosa (1940-2015) agrupada, junto às demais, sob a (vaga e imprecisa) rubrica de “africanas”[1]. Engana-se, entretanto, quem acredite encontrar nesse núcleo alguma unidade temática ou formal: embora filhos da mesma diáspora, a gama de preocupações desses artistas extrapola suas relações com a África – seja esta real, mítica, vivenciada ou reinventada no Brasil.
De modo similar, os diálogos e referências bastante fecundos que as artes contemporâneas de Sidney Amaral (1973), Rosana Paulino (1967), Flávio Cerqueira (1983), Jaime Lauriano (1985), Rômmulo Vieira Conceição e Paulo Nazareth (1977) travam entre si, não esgotam as múltiplas potencialidades de sentido que cada peça abarca. Tampouco são capazes de vocalizá-las num só discurso: embora a preocupação em revisitar criticamente a história do Brasil e de repensar as experiências socioculturais dos (e das) afrodescendentes se configurem como motivos subjacentes à maior parte das obras reunidas nesse núcleo expositivo, essas inspirações não encerram, nem poderiam pretender, o conjunto de ideias e inquietações que impele os artistas a produzir.
Essas afirmações podem parecer óbvias ao leitor acostumado à ideia moderna de que a todo artista é dada liberdade para fazer a arte que quiser, como quiser, sobre o que quiser. Não se espera de artistas europeus que suas obras versem exclusivamente sobre a Europa, nem que as obras de artistas mulheres se refiram unicamente ao universo feminino. Quando se trata de artistas negro/as, da África ou fora dela, entretanto, frequentemente nos deparamos com a busca – por parte tanto de curadores, diletantes, críticos, historiadores da arte como de pessoas nela só ocasionalmente interessadas – de sinais de africanismos ou negritude em suas obras, tenham seus autores deliberadamente optado por esse caminho ou não. Por quê?
Essa pergunta, que animou boa parte das discussões suscitadas na mesa de encerramento do Seminário sobre a exposição, promovido pela Revista O Menelick 2o Ato em parceria com a Pinacoteca, fez brotar outras tantas indagações. Composta pelos artistas Rômmulo Vieira Conceição, Genilson Soares e Flávio Cerqueira, a mesa, intitulada Artistas e a forma: É preciso criar para existir, contou ainda com a mediação de Tadeu Chiarelli e tratou questões de difícil doma. Qual espaço nos mercados das artes para artistas negros cujo processo criativo, ou ao menos parte dele, se pauta em motivos do universo sociocultural afro-brasileiro? De maneira inversa, como se dá a inserção de artistas negros cujas obras não necessariamente dialogam com essa temática, enveredando por outras escolhas – como os trípticos de Rômmilo e Genilson que há pouco comentávamos? Teriam essas questões algo a ver com os perversos e persistentes processos de esquecimento e embranquecimento de artistas afrodescendentes na história das artes brasileiras, ao menos na versão oficial que nos é contada?
ESCOVANDO A HISTÓRIA (DA ARTE BRASILEIRA) A CONTRAPELO
O debate é longo e tem raízes antigas. Para entendê-lo, precisamos dar corda à memória e revisitar alguns persistentes equívocos que historicamente o acompanham. Refiro-me, especialmente, 1) à suposta vinculação inescapável da cor da pele de um artista às características de sua arte, como se produtor e produto se determinassem mutuamente, numa espécie de conaturalidade de destino. Refiro-me também à 2) delimitação restritiva de temas pertinentes ao artista negro, como se este só pudesse se expressar sobre determinados assuntos e de determinadas maneiras; bem como ao 3) apagamento histórico da decisiva presença negra na criação e desenvolvimento das artes nacionais, da Colônia aos dias correntes. Em comum a todos esses entendimentos, a manifestação de diferentes facetas do racismo, mesmo quando este não se expressa de maneira intencional.
Se não, pensemos nas naturezas-mortas de Estêvão Silva, pintor que pertenceu à última geração da Academia Imperial de Belas Artes e que também integra Territórios.
Luís Gonzaga-Duque Estrada (1863-1911), um dos primeiros no país a se dedicar sistematicamente à crítica de arte, assim se referia às cores fortes que tanto caracterizam a produção desse artista: “essa prodigalidade de vermelhos, de amarelos e verdes não é nem pode ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instinto colorista, vibrátil às sensações bruscas, como é peculiar à raça de que veio”. Para o crítico, que descrevia Estêvão como um “descendente de africanos, conservando ainda traços profundos e radicais”, a condição racial do pintor seria fator determinante no resultado de suas obras. Como se à base da criação do artista negro residissem não influências e métodos propriamente estéticos, frutos de sua criatividade, mas antes condicionamentos raciais que lhe servissem de guia.
Em entrevista recente, publicada na edição 14 da Revista O Menelick 2o Ato, Emanoel Araújo, diretor executivo e curatorial do Museu Afro Brasil (São Paulo), ajuda a desfazer parte do engano: “Estevão Silva tem uma cor quente e a gente pode atribuir a ele alguns aspectos, além da sua própria origem. Mas isso não quer dizer que a arte dele seja afro-brasileira. É uma arte quente de um artista negro, com características de sua própria vivência”, sentenciava, estendendo o pensamento também à produção dos irmãos Arthur e João Timótheo da Costa (1879-1932), ambos negros. Quando perguntado se a fatura de sua produção guardaria indícios africanos, sua resposta é taxativa: “eles são muitos mais voltados à sua formação eurocêntrica do que preocupados em procurar uma legitimidade africana”. E nem poderiam: “para estes artistas”, complementa Emanoel, “a África sempre foi um passado muito remoto, no qual nem os próprios africanos [no Brasil] puderam se expressar como uma cultura material, porque era proibido. E aqueles que tentaram tiveram sua obra destruída pelas batidas policiais”.
Estevão Silva
Natureza Morta
Óleo sobre tla
1888
A assertiva faz referência à perseguição e invasão sistemáticas a terreiros e casas de candomblé, entre as quais o infame “Dia do Quebra”, de saque e destruição de diversos Xangôs alagoanos nos idos de 1910, é certamente o episódio mais emblemático de um racismo religioso ainda infelizmente em curso no país. Refere-se igualmente, e de maneira crítica, à subsunção da pluralidade de experiências, escolhas e escolas que orientam a produção multifacetada de artistas negros a uma única categoria artística, como se a afro-descendência de um sujeito se estendesse de maneira automática a seu objeto. Mal entendido que nos leva ao segundo ponto de nossa releitura dessa história tão mal contada: haveria um repertório predeterminado de assuntos supostamente mais “válidos” que outros à inspiração de artistas negros?
A esse respeito, o crítico de arte Clarival do Prado Valladares (1918-1983), em seu conhecido artigo “O negro brasileiro nas artes plásticas” (1968), já afirmava que “a sociedade ‘branca’ sabe armar o circo de suas exposições e promoções, porém, necessita injetar, de tempos em tempos, quotas de validade do contexto histórico e cultural. Estas são as oportunidades em que artistas negros, hoje com mais frequência procedentes do autodidatismo e do primitivismo, são descobertos, assimilados, promovidos e amplamente consumidos pela sociedade ‘branca’”.
A preocupação de Valladares é justificada. Já à sua época, a produção de uma arte controversamente denominada “primitiva”, ou naïf, encontrava um espaço tanto específico quanto diminuto para artistas negros no mercado da arte. Um nicho formado por um olhar com forte tendência folclorizante, pautado na busca de uma genuinidade popular e de uma autenticidade artística pretensamente livres de convenções. Artistas afrodescendentes, indígenas e oriundos de camadas sociais mais pobres, assim como um número expressivo de mulheres de variadas procedências raciais, compunham (compõem) a grande maioria dos artistas merecedores desse rótulo, numa “coincidência” que mal disfarça a parcialidade de seus critérios ditos técnicos de classificação.
Com efeito, e desde então, parte significativa dessa produção tem sido também denominada de “arte popular” – produtos de menor prestígio, à margem, por assim dizer, do hierárquico sistema das artes –, a despeito das reconhecidas habilidades técnicas, sofisticadas soluções formais e criativa abordagem temática de seus autores. Agnaldo Manuel dos Santos (1926 – 1962), cuja primorosa arte escultórica fora chamada de “instintiva” pelos críticos (incluindo o próprio Valladares), e Heitor dos Prazeres (1898-1966), cujas telas são continuamente identificadas como “arte genuína”, são dois dos exemplos mais flagrantes, embora não únicos.
É certo que hoje os tempos são outros. Mas bem sabemos que a história navega sem bússola: vai e vem, ignora rotas para logo tomá-las, carregando muita continuidade no correr de sua mudança (o inverso é igualmente verdadeiro). Artistas negros têm conquistado cada vez mais espaço nos circuitos de crítica e circulação da arte, ainda que encontrando muitas pedras, portas fechadas e remunerações mais baixas no meio do caminho. Mas também não é verdade que os mercados da arte, predominantemente brancos, masculinos e frequentemente conservadores na eleição de suas preferências, ainda hoje apliquem critérios difusos de “autenticidade” sobre as obras de artistas negros, privilegiando aquelas menos “incômodas”, preferencialmente não relacionadas a questões raciais pungentes? Essa mesma lógica não estaria por trás do efeito paralelo de estranhamento que obras com conteúdo distante da “temática negra” frequentemente causam a tantos curadores, críticos, público e marchands desavisados que se deparam com sua autoria negra?
A história oficial da arte brasileira reúne uma vasta coleção de estranhamentos semelhantes. Ao desconsiderar a contribuição decisiva da mão afro-brasileira no desenvolvimento das artes no país, essa história parece mais convidar a equívocos do que desfazê-los, se convertendo numa narrativa cheia de vazios e omissões. O antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009), para quem “a história nunca é a história mas a história-para”, certamente não pensava nisso quando escreveu a famosa frase de O Pensamento Selvagem (1962). Seu sentido, contudo, parece-me perfeitamente extensível, especialmente se levarmos a sério o ensinamento do historiador Manuel Querino (1851-1923) de que “foi o trabalho do negro que aqui sustentou, por séculos e sem desfalecimento, a nobreza e prosperidade do Brasil; foi com o produto de seu trabalho que tivemos as instituições científicas, letras, artes, comércio, indústria etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilização brasileira”.
O caráter peremptório da afirmação tem procedência: em todos os ramos artísticos nacionais, da arte sacra à música, passando pela pintura, ourivesaria e literatura, são muitos os nomes de afrodescendentes importantes. Alguns célebres, como Aleijadinho (1730-1814), Teodoro Sampaio (1855-1937) e Machado de Assis (1839-1908); outros nem tanto, como José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), renomado músico da corte imperial, engrossam o caldo de referências negras fundamentais à constituição de nossa arte, cultura e identidade(s) nacional(is). A história, entretanto, tem sistematicamente ocultado, quando não deliberadamente branqueado, a pele de inúmeros deles. Esse processo de embranquecimento da cultura, justamente denunciado por Abdias do Nascimento (1914-2011) como uma “estratégia de genocídio” da população negra, é uma velha (e recorrente) conhecida da história do Brasil, como bem sabemos.
Mas o que tudo isso tem a ver com Territórios?
UM ESPELHO COM MUITOS REFLEXOS
A resposta, embora resultante de caminhos tortuosos, é relativamente simples: porque o arranjo de Territórios expõe, e de maneira inequívoca, a multiplicidade e inventividade dos modos históricos de ser negro, de ser artista. Na receita desse bolo não há ingredientes ou etapas obrigatórios: um artista negro será sempre e, antes de tudo, um negro artista. Não se trata aqui de mero jogo de palavras: “a consciência negra é imanente a si própria”, como já bem ensinava o filósofo martinicano Frantz Fanon (1925-1961). Levar na pele a cor da terra, a cor escura da terra, numa sociedade racialmente hierarquizada como a nossa, é fator constitutivo da própria personalidade e entendimento de si do artista negro. Sua vivência e trajetória, como as de todo artista, incidirão inescapavelmente em suas obras, versem estas sobre questões raciais ou não. E nem poderia ser diferente: a produção dos artistas afrodescendentes, diversa por definição e princípio, é causa e consequência da diversidade mesma de ser negro, das diversas maneiras de ser negro e estar no mundo. Em outras palavras, e fazendo uso de outra formulação sintética de Fanon: “não há um preto, há pretos”. Exigir-lhes um afinamento temático ou formal na feitura de seus trabalhos é como querer que alhos e bugalhos, massas e maçãs, pela similitude de seus nomes, tenham o mesmo gosto ou atendam aos mesmos propósitos. Uma missão impossível, além de descabida.
Flávio Cerqueira
Antes que eu me esqueça
Espelho, madeira e pintura
eletroestática sobre bronze
2013
É também querer que uma imagem na sala de espelhos seja sempre idêntica a si mesma, esquecendo que seu reflexo pode tanto duplicá-la quanto distorcê-la, reduzi-la ou aumentá-la. Talvez seja tempo de recordar o trágico enredo de Narciso, que tanto inspirou nosso Mestre Valentim para suas esculturas do Passeio Público carioca. A imagem que só vê a si, como bem demonstra o mito, pode acabar se afogando no próprio reflexo. Além, é claro, de perder de vista a bela ninfa Eco que, condenada a repetir infinitamente a fala de terceiros, segue um destino tão melancólico quanto o do vaidoso caçador por quem se enamorara sem correspondência: a perda da própria voz.
Quem sabe não aprendemos a domar o espelho, pautando a liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística, com toda sua pluralidade de temas, formas, materiais e motivos? Liberdade para falar da cor da pele ou das cores do mundo, quiçá de ambas – ou mesmo de nenhuma delas. O garotinho de Antes que eu me esqueça (2013), obra de Flávio Cerqueira que integra Territórios, talvez nos sirva de boa inspiração: com os pés erguendo o próprio corpo, olhos fechados de quem está antes olhando para o bronze dentro de si do que buscando o reflexo porcelanizado no espelho, saltar em direção ao mundo – e ao próprio beijo.
[1] Em outro artigo (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/O-lado-negro-da-arte-sobre-Territorios-artistas-afrodescendentes-no-acervo-da-Pinacoteca-/39/35408), comento com mais vagar a ideia genérica e exotizante de África que parece subjazer ao argumento expositivo desse módulo de Territórios.