abril de 2014
ARTE AFRO-BRASILEIRA PARA QUÊ?
Alexandre Araujo Bispo
colaboração Renata Felinto
foto Jaílton Leal
SIDNEY AMARAL
Mãe preta ou a fúria de Iansã
Acrílica sobre tela
140 x 210 cm
O título desse texto parafraseia, de certa forma, o título do livro seminal da crítica e historiadora da arte Aracy Amaral (1930) Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira – 1930-1970 (1984). Nele a autora discorre acerca da necessidade de uma arte que dialogue com a realidade não somente dos profissionais do meio das artes, tais quais críticos, marchands, artistas, galeristas, colecionadores, entre outros, mas que trate da sociedade e de seus assuntos, que seja um painel crítico e reflexivo do mundo no qual vivemos, e que se conecte com o simples apreciador de arte.
É essa relação entre arte, sociedade e seres humanos que este texto apresentará, todavia, a partir do prisma das heranças africanas e do que se convencionou denominar arte afro-brasileira.
Podemos afirmar que existe no Brasil uma produção de artes visuais afro-orientadas, isto é, inspiradas em temas, problemas e experiências da história nacional dos afrodescendentes brasileiros?
Sim, podemos. Desde que façamos a distinção entre arte no sentido geral e arte afro-brasileira em particular. Assim para responder sobre a pertinência dessa produção expressiva em contexto democrático e urbano, resolvemos fazer este texto, discorrendo sobre o fato da arte ser uma forma de conhecimento que está intimamente ligada à experiência social das pessoas. Essa experiência fornece inspiração para uma multiplicidade de expressões plásticas: desenho, pintura, escultura, objetos, instalações, fotografias, vídeos e performances.
De Antônio Francisco Lisboa, vulgo Aleijadinho (1738 – 1814), aos artistas contemporâneos, veremos que a arte afro-brasileira se transforma no tempo e no espaço, mantendo noções e técnicas africanas, gestos especializados, mas também é aberta para a incorporação de abordagens, e cada artista resolve a seu modo os problemas que lhe interessam.
A ideia aqui é apresentarmos elementos expressivos, artistas, obras e conceitos que permeiam o entendimento sobre o que, afinal, pode ser chamado de arte afro-brasileira. Contudo ajudemos a definir a expressão, nosso objetivo é ampliá-la de modo a mostrar suas potencialidades enquanto um conceito revelador de uma produção rica, que em nada pretende reduzir a atividade artística dos artistas à categoria “afro-brasileiros”.
Dividiremos esse recorte da história da arte brasileira que foca especialmente nos artistas negros em quatro momentos a partir do século 18, para em seguida trazermos referências e artistas do século 19, posteriormente adentraremos a produção modernista e pós-modernista do século 20 para, por fim, lançarmos luz aos emergentes artistas do século 21 que magistralmente condensam e ressignificam tudo o que havia sido feito até então em termos de uma arte que dialoga com a ideia de afrobrasilidade, negritude, mestiçagem e identidade.
SÉCULO 18 / DAS ESCULTURAS TRADICIONAIS AFRICANAS ÀS TALHAS BARROCAS
MESTRE VALENTIM
Madeira
Século XVII
Certamente que o talento demonstrado pelo escravizado africano, neste primeiro momento do Brasil escravocrata oriundo das populações do tronco linguístico bantu, juntamente ao crioulo e mestiço, foi decisivo para a configuração do barroco singular que se desenvolveu aqui. Decisivo porque esses homens que dominavam a escultura em madeira e a metalurgia trouxeram seu conhecimento ancestral para movimentar a economia brasileira em diversos aspectos. No Brasil colonial quase tudo era produzido pelo negro escravizado, das residências ao santo feito em madeira para o qual se dirigiam pedidos e preces. As tecnologias africanas, portanto, foram decisivas para a estruturação desse Brasil nascente, ainda que os livros de História adotados pela maior parte das instituições de Ensino Fundamental e Médio não abordem esse fato.
No século 18 (ou setecentos), a participação de negros e mestiços na produção de artes e ofício era mais acentuada nos grandes centros, como em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ela era visível em trabalhos como a escultura em madeira, também chamada de talha; na arquitetura; na ourivesaria; na pintura e na música, onde negros e mestiços trabalharam sob o comando de mestres portugueses em corporações ou manumissões.
O domínio da madeira enquanto matéria prima para representação de formas tridimensionais já era uma tradição entre os povos bantus. Assim, para esse escravizado que atuava nas corporações de ofício, muito provavelmente, o manuseio das ferramentas e a conferência de forma a esse material era algo relativamente simples, posto haver esse conhecimento acumulado. Aliás, sabemos hoje que a escravidão de povos africanos que detinham tais habilidades foi fundamental para o sucesso da empreitada exploratória da colônia.
Não foram poucos os negros e mestiços que, anonimamente, imprimiram as suas marcas nas produções artísticas do primeiro movimento artístico brasileiro, já denominado na historiografia da arte como mestiço por incluir brancos portugueses, negros africanos, índios e mestiços. Nesse sentido, podemos destacar alguns nomes de artistas afrodescendentes.
Na pintura, temos, por exemplo, as produções dos fluminenses Leandro Joaquim (1738 – 1798), que também foi arquiteto e coreógrafo, e de Manoel Dias de Oliveira (1764 – 1837), conhecido como o “Brasiliense” e que foi o primeiro professor público de desenho do Brasil do qual se tem conhecimento. Também podem ser mencionados os nomes do mestiço baiano alforriado José Theófilo de Jesus (1758 – 1847), que foi pintor e dourador; e do paulista Jesuíno Francisco de Paula (1764 – 1819), que também dedicou-se à arquitetura e à musica e, ao enviuvar, dedicou-se ao oficio sacerdotal adotando o nome pelo qual tornou-se conhecido, Frei Jesuíno do Monte Carmelo.
Na escultura, sobressaem-se os nomes do baiano Francisco Chagas, conhecido como o “Cabra”, cuja biografia é escassa; e os dos mineiros Valentim da Fonseca e Silva (1745 – 1813), o Mestre Valentim, filho de um contratador de diamantes e de uma crioula (negra nascida no Brasil), e do filho de um arquiteto angolano Antônio Francisco Lisboa (1730 – 1814), eternizado pela alcunha de Aleijadinho.
Indubitavelmente que as produções de Antonio Francisco Lisboa em diversas cidades de Minas Gerais e as de Mestre Valentim, na capital do Rio de Janeiro, são as mais expressivas dentre as dos artistas citados. Notem que ambos eram filhos de africanas com pais portugueses. Mestre Valentim teve a sua formação em Portugal, para onde viajou com a família retornando ao Brasil após o falecimento do pai, enquanto que Aleijadinho teve a sua formação artística junto de seu pai, o reconhecido arquiteto Manuel Francisco Lisboa. Ambos exerceram grande influência sobre os artistas das regiões onde produziram, as escolas mineira e carioca.
Segundo a pesquisadora Myriam de Andrade Oliveira, eles são: “(…) verdadeiros artistas e não meros imitadores, ambos introduziram inovações na adaptação dos modelos europeus ao meio colonial, especialmente os do rococó internacional, principal estilo da época em voga na Europa, na segunda metade do século XVIII”.
MESTRE VALENTIM
Madeira
Século XVII
Aleijadinho destacou-se na área religiosa, enquanto que Valentim nas obras de urbanização. As grandes obras de Antônio Francisco Lisboa são a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e o da de mesmo nome localizada em São João Del Rei. O Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, situado em Congonhas do Campo é sua grande obra reconhecida internacionalmente e tombada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
Segundo o pesquisador Jaelson Britain Trindade, o único grupo de oficiais negros e mestiços livres de que se tem conhecimento é o de Aleijadinho.
De Valentim podem ser mencionadas as obras Passeio Público (1779 – 1783), o Chafariz das Marrecas (1789), o Chafariz das Saracuras (1795), as esculturas em ferro, as primeiras fundidas no Brasil, Ninfa Eco (1783) e Caçador Narciso (1785), que possuem originais no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e na Pinacoteca do Estado de São Paulo. É importante ressaltar que o status de mestre não era comumente alcançado por negros e mestiços.
Observando as obras você pode estar se perguntando o que possuem de afro. Esteticamente, julgando a época na qual os mesmos viveram, não havia interesse para as heranças africanas, o que se produziu foi uma arte sacra cristã a partir de cânones europeus e outra que serviu para urbanizar a recém capital do país com a chegada da Família Real, em 1808.
SÉCULO 19 / PARA MUITO ALÉM DA RELIGIÃO, OUTROS GÊNEROS DA PINTURA
Embora Mestre Valentim seja considerado um dos introdutores dos elementos da estética neoclássica em sua obra classificada também de rococó, foi com a chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil, em 1816, que esse estilo ganharia ampla difusão opondo-se aos estilos antes predominantes: Barroco e Rococó. Segundo o Dicionário Oxford de Arte o neoclássico busca “recriar o espírito heroico, bem como os padrões decorativos, da arte da Grécia e de Roma”; é a partir da imitação em particular dos gregos que os modernos se tornariam grandes artistas. Valentim, como vimos, retoma um tema mitológico grego em sua obra Narciso e Eco. A fundição em bronze indica os novos materiais da arte e faz frente ao uso disseminado da madeira no período anterior. As talhas vão dar lugar a modelagem, a fundição e ao mármore. A pintura de cavalete também é introduzida pela missão que criará a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), cujo edifício foi entregue apenas em 1826. Dessa institucionalização do ensino da arte no Brasil por meio da AIBA são ensinados diferentes gêneros de pintura: pintura histórica, retratos, paisagens e natureza morta. Se a pintura histórica será o gênero mais importante, e seus maiores representantes brasileiros os pintores Pedro Américo (1843-1905) e Victor Meirelles (1832-1903) no campo da natureza morta destaca-se o pintor negro Estevão Roberto da Silva (1844-1891) de quem falaremos mais adiante.
Entre os efeitos da instauração do estilo neoclássico no Brasil estão o desmantelamento das antigas corporações de ofícios, nas quais mestres e discípulos trabalhavam para atender a igreja: seu principal cliente. A produção artística era vista até então como uma atividade manual, mecânica, feita entre nós, fundamentalmente por negros e mulatos. Nessa nova forma de aprendizado sistemático e teórico das artes visuais, os alunos eram admitidos por meio de exames e o aprendizado acadêmico de disciplinas como desenho de estatuária clássica, perspectiva, luz e sombra entre outros, os mais prodigiosos alunos eram premiados em concursos com viagens ao exterior e, se até então predominavam artistas negros e mulatos na feitura de pintura, escultura e arquitetura, a partir desse momento surgem também os artistas brancos como Meirelles, Américo e, mais para o fim do século XIX, também mulheres como Georgina de Albuquerque (1885-1962). A religião cristã, tema dominante no período anterior abre espaço agora para a multiplicidade de gêneros ensinados na academia.
Como Valentim no campo escultórico, José Theófilo de Jesus (1758-1847) pintor, dourador e encanador, pardo e forro baiano, discípulo predileto de José Joaquim da Rocha (1737-1807), é um desses artistas cuja produção híbrida une elementos do barroco, do rococó e do classicismo. É considerado um dos melhores pintores da escola baiana de pintura e sabemos que o estilo neoclássico está em sua obra pelo tratamento de alguns temas mitológicos e históricos, mas também pela influência que recebeu entre os anos de 1797 e 1802, quando esteve em Portugal a estudos, em viagem financiada por seu mestre. Neste período, Theófilo tomou contato com as obras do famoso pintor italiano Pompeu Batoni (1708-1787), na Basílica da Estrela, em Lisboa.
Se Theófilo é um artista de transição, híbrido, sem um estilo definido e que não teve contato com a AIBA, Estevão Roberto da Silva (1845?- 1891), pintor negro será considerado pela crítica da época um dos melhores pintores de natureza morta, gênero que estava no extremo oposto da pintura histórica – então o mais valorizado na França desde o século 18 – para representar a república francesa e exaltar as glórias do império no Brasil. O pesquisador Marcelo de Salete nos ensina que essa pintura de natureza morta “realizada com perícia” por Silva “era considerada o ponto alto do gênero” apresentando “linhas bem definidas” e “cores fortes” típicas da estética neoclássica.
Embora de reconhecido talento, Estevão Silva sofreu todos os constrangimentos de sua condição de homem negro vivendo numa sociedade de forte tradição escravocrata. Em 1879, por ocasião do prêmio da exposição anual da AIBA para os mais destacados pintores de natureza-morta, Silva, o favorito da crítica ganhou o segundo lugar, mas recusou-se diante de D. Pedro II (1825-1891) a receber a premiação. Como resposta a sua indisciplina ele foi afastado por cerca de um ano da AIBA. Reforçava-se aí uma noção difundida na sociedade brasileira ainda hoje de que negros são naturalmente inferiores se comparados aos brancos. O artista não foi expulso da academia devido ao apoio de outros artistas seus, colegas que justificaram que sua atitude decorria de certo “acanhamento da inteligência”.
Com isso, nos diz Salete, sua atitude contestatória ganhou ares infantis, de tal modo que ele não poderia ser responsabilizado pelo que fez.
ARTHUR TIMOTHEO DA COSTA
Estudo de Cabeças
Século XIX
Os irmãos Arthur (1882 1922) e João Timótheo da Costa (1879 – 1932) estudaram com Rodolfo Amoedo (1857 – 1941), João Zeferino da Costa (1840 – 1916), Daniel Bérard (1846 – 1910) e Henrique Bernardelli (1857 – 1936), todos artistas brasileiros de prestígio à época. Premiados em diferentes momentos com viagens ao exterior, os irmãos Timóteo iniciam seus estudos na Casa da Moeda do Rio de Janeiro e, mais tarde, em 1894, na Escola Nacional de Belas Artes. Artur viaja a Paris em 1898 por aproximadamente dois anos, e José vai para a mesma cidade, em 1910. Ambos tomam contato com as inovações modernas de tal maneira que distanciam-se cada qual a seu modo da estética neoclássica ensinada na academia tendendo em vários trabalhos a abordagem impressionista e pós-impressionista. Tratava-se de um novo modo de ver no qual a luz e a cor deviam ser experimentadas ao ar livre, fora do ateliê. Quanto aos temas de suas produções, em Artur destaca-se o interesse pela representação de negros, mas também as relações de trabalho como em A Forja (1911), cuja temática social, como veremos, estará presente no modernismo brasileiro que olha para as vanguardas e ao mesmo tempo para as raízes do Brasil com relativa solidariedade em relação a população negra. Os irmãos realizam juntos, em 1920, o primeiro de uma série de painéis para o Fluminense Futebol Clube terminado apenas por João, em 1924, após a morte de Arthur, em 1922, no Hospício dos Alienados, lugar onde, mais tarde, também João morreria. Embora inovadores e premiados dentro e fora do Brasil os irmãos Costa, em especial Artur, não se tornaram uma referência para os modernistas.
Também da AIBA saíram outros artistas negros como Crispim do Amaral (1858-1911), Firmino Monteiro (1855-1888), Horácio Hora (1853-1890), Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), além de outros artistas que não eram dessa escola, como Emanuel Zamor (1840-1917), pintor e cenógrafo mulato que estudou na célebre Academia Julién, em Paris.
SÉCULO 20 / SUJEITO NEGRO ENQUANTO SÍMBOLO DE BRASILIDADE E DE MARGINALIDADE
Apesar de, ao estudarmos o modernismo não serem mencionados artistas afrodescendentes, mas sim o negro ou mestiço enquanto sujeitos representados em pinturas e esculturas, isso não quer dizer que eles inexistam. Nas Artes, o negro e o processo de miscigenação tinham sido alçados a qualidades da cultura brasileira, que a diferenciava e a valorizava em comparação à norte-americana e à européia. Já em fins de século 19, ambos eram tidos como índices definidores da degeneração e do atraso do país. Contribuiu para essa transformação positiva a publicação do clássico livro de Gilberto Freyre (1900 – 1987): Casa Grande e Senzala (1933), no qual o sujeito negro africano e a miscigenação são analisados de forma otimista. Ou seja, Freyre não atribuía o atraso do país aos negros. Todavia, na sociedade, as manifestações culturais afro-brasileiras ainda eram amplamente marginalizadas e reprimidas até, via a aceitação da miscigenação, passarem por um processo de incorporação e de branqueamento:
“A feijoada, por exemplo, até então conhecida como ‘comida de escravos’, a partir dos anos 1930 se converte em ‘prato nacional’, carregando a representação simbólica da mestiçagem (…) A capoeira reprimida pela polícia do final do século 19 e incluída como crime no Código Penal de 1890 – é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937. Também o samba sai da marginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba e seus desfiles passam, a partir de 1935, a ser oficialmente subvencionados”.
Artistas como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, Lasar Segall e Djanira da Morra e Silva, dentre outros trouxeram essa temáticas às suas pinturas. Djanira, por exemplo, exaltou os orixás, os deuses iorubanos, até então pouco representados enquanto tema e aspecto da cultura brasileira. Entretanto, artistas negros como Heitor dos Prazeres (1898 – 1966), Benedito José Tobias (1894 – 1963), Benedito José de Andrade (1906 – 1979), Wilson Tibério (1923– 2005), Sérgio Vidal (1945) e Yêdamaria (1932), tiveram as suas produções eclipsadas e podemos afirmar que eles são representantes de um modernismo afro-brasileiro que esteve focado na visibilidade da cultura afro-brasileira, mais precisamente, numa esfera particularista, no cotidiano das famílias negras. Cada um representou esse dia a dia familiar sob um prima. Prazeres via a vida nos morros cariocas como que ilustrando sambas de Cartola (Angenor de Oliveira); Vidal enquanto seu discípulo, idealizou as famílias negras de maneira romântica; Tibério retratando as religiões de matriz africana e Yêdamaria trazendo a realidade de famílias negras que já haviam ultrapassado a condição de pobreza a partir de suas mesas elegantemente postas, destacando hábitos de educação e civilidade.
Foquemos as produções de Wilson Tibério e de Yêdamaria que, de certo modo, incorporam também uma das preocupações dos modernistas clássicos que são as experimentações das inovações pictóricas propiciadas pelas pesquisas nas vanguardas artísticas europeias, tais quais o Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Construtivismo, dentre outras.
YEDAMARIA (1932)
Barco na rampa
Óleo sobre tela
75,2 X 100,5 X 3,5 cm
1964
Yêdamaria, primeira professora negra da Faculdade de Belas Artes da UFBA, primeira bolsista negra brasileira a cursar mestrado em Artes Plásticas nos EUA. Foi neste período, em contato com as questões levantadas pelo movimento Black Power, na década de 1970, que ela, após pintar barcos e paisagens no Brasil, identificou-se com a luta de negros e negras por direitos civis no Brasil. Passou a pintar e a realizar colagens com a temática de Iemanjá, entretanto, a orixá era representada branca, e ela alegava que “não era a figuração de Iemanjá, não tinha nada a ver com gente”. Após essa experiência pela temática religiosa, ele passa a dedicar-se às naturezas mortas pintando grandes telas. Como se fosse herdeira de Estevão Roberto Silva, ela pinta atualmente muitos copos, jarras, louças, flores, guardanapos, mesas postas em uma reverência à sua família, cuja mesa era um símbolo de união fraternal. Ela interpreta a sua produção como reflexo de memórias vividas junto aos seus, contrariando a recorrência de famílias negras, pobres, social e afetivamente desestruturadas.
Wilson Tibério, nascido em Porto Alegre, foi pintor e escultor, começou a estudar artes ainda criança como bolsista da Escola Nacional de Belas Artes, posteriormente foi se aperfeiçoar na Europa, onde percorreu diversos países. Também conheceu alguns países africanos. Assim como ocorreu com Yêdamaria, foi a experiência no exterior que fez com que Tibério se voltasse às temáticas afro-brasileiras, dos retratos às cenas de candomblé.
Nesse modernismo afro-brasileiro é a experiência íntima familiar e religiosa que define o interesse dos artistas. Talvez devido a um desinteresse da crítica desse período, seja tão oneroso encontrar informações acerca das obras e, por vezes, das biografias dos artistas.
SÉCULO 21 / COM A PALAVRA O ARTISTA AFRO-BRASILEIRO
MESTRE DIDI
Iwin Ibo – Espírito do Mato
Técnica mista
124 X 80 X 18 cm
2008
Também a produção contemporânea apresenta artistas afro-brasileiros que, inspirados em temas, experiências e problemas comuns a si próprios e a população negra e afrodescendente problematizam em suas obras o corpo, as relações de gênero, a religiosidade de matriz africana e a memória, história e identidades negras. Desde Rubem Valentim (1922-1991), artista que faz o elogio da mestiçagem inspirando-se nas manifestações africanas no Brasil presentes no Candomblé e na Umbanda; passando por Mestre Didi (1917-2013), que opera com as técnicas expressivas e modos de fazer artístico-ritual do Candomblé homenageando os deuses da terra do panteão nagô; Rosana Paulino (1967) e o tratamento que dá à relação entre biografia e experiência sócio-histórica feminina negra, a arte afro-brasileira sinaliza para importância da diversificação histórica da produção de artes visuais no Brasil. Essa diversificação fica mais explícita na arte contemporânea que há muito vem ampliando seus interesses. A revista O Menelick 2º Ato já tratou desses e outros artistas individual ou coletivamente, daí que nesse momento apresentamos outros nomes que vem despontando no cenário nacional e cujas produções, ao se enquadrarem nessa categoria, nos ajudam a entender as potencialidades desses artistas no cenário mais amplo da arte brasileira. Essa delimitação não tem o propósito de reduzir o alcance expressivo ou conceitual dos trabalhos, mas ampliar suas capacidades de diálogo com o público. Afirmar esse intuito é importante para mostrar que o papel desse segmento da arte não é ilustrar problemas sociais como um panfleto político.
PESQUISAS FORMAIS
Comecemos a tratar o tema na contemporaneidade pela apresentação da obra de um artista que embora negro não se inspira na temática afro-brasileira nem evoca quaisquer elementos desse universo. Ele não é o primeiro a fazer isso, muito antes dele Antonio Bandeira (1922-1967) também distanciou-se da temática encaminhando-se gradativamente para a abstração informal, da qual tornou-se um mestre.
Wagner Viana nasceu em 1981, em São Paulo. Professor de artes na rede pública, doutorando em poéticas visuais pela ECA-USP, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp e graduado em Artes plásticas pela Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicações UNESP – Bauru, Viana tem se interessado pela cor como elemento que circula social e geograficamente, e incorpora nesses deslocamentos os nomes dos lugares de onde provém. Sua poética se estrutura por meio de um formalismo abstrato, aparentemente frio e distante, desde que não saibamos as condições de produção de seu trabalho, no qual dirige grande interesse ao comportamento das cores em instalações como: “Projeto Terra de Pirapora 23º 25’ 0” Sul e 47º0’0” Oeste” que foi exibido na exposição Afro como Ascendência Arte como Procedência, no Sesc Pinheiros, entre dezembro de 2013 e março de 2014, em São Paulo.
REPRESENTAÇÕES DE CORPO E GÊNERO
Seguindo uma trilha aberta por Rosana Paulino (1967) que desde o início de sua carreira vem discutindo a relação entre raça, corpo, gênero e história da mulher negra no Brasil, Janaína Barros e Renata Felinto tomam o corpo como plataforma expressiva. Janaína Barros é paulistana, nasceu em 1979, é mestre em Artes Visuais e graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da UNESP, com especialização em Linguagens Visuais pela Faculdade Santa Marcelina. Interessada na discussão sobre memória, corpo e identidade cultural negra e fazeres manuais, a artista reconstrói a relação entre mulher negra e trabalho braçal doméstico em uma série de obras dos últimos quatro anos, como em Bulina-me (2010), no qual ilumina com lantejoulas um avental de cozinha aproximando trabalho doméstico (verso) e festa (frente). A frase que dá nome à obra é bordada em linha vermelha sobre um tecido opaco de mesma cor, nos convidando a chegar mais perto. Com delicadeza, a artista costura roupas para objetos ordinários como luvas de cozinha, puxa-sacos, liquidificador, aproximando artefato e gênero. Tais trajes, dado ao cuidado de sua feitura e decoração, escondem relações desiguais de gênero e classe social, como no trabalho Sou todo seu, na qual a artista reflete sobre o desejo da mulher negra, muitas vezes frustrado, de ser desejada, de encontrar abrigo afetivo em uma relação de igualdade e respeito.
Renata Felinto nasceu em 1978, é paulistana, empresária, produtora cultural, escritora e doutoranda em artes visuais pela UNESP, mestre em Artes Visuais e bacharel em Artes Plásticas pela mesma universidade. Especializou-se em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP. Em sua produção mais recente a artista que tem grande interesse por retratos de família, seus e de outras pessoas, se autorretrata como Brigite Bardot, Kim Bassinger e Marilyn Monroe, loiras famosas, sedutoras e sorridentes. Força relações de alteridade, e sem negá-las transforma-se nelas. Nessa operação, as estrelas das telas do cinema hollywoodiano são antropofagicamente assimiladas. Felinto questiona os padrões de beleza construídos, mas veiculados como naturais pela cultura de massa. Ao brincar com os cabelos louros, cor que no Brasil tem muitas representações positivas e marca o desejo de homens e mulheres em torno desse símbolo erótico, o efeito é uma figura híbrida, irônica e cômica. Há aqui uma paródia da figura de Adelaide, representação altamente negativa da mulher negra brasileira, um dos quadros do programa Zorra Total, da Rede Globo de Televisão. Em White Face and Blonde Hair, parte do projeto Também quero ser sexy (2012), ela investe no travestismo de classe social e se autorrepresenta como uma loura que esbanja riqueza e capacidade de consumo do luxo oferecido na rua Oscar Freire, em São Paulo, na qual fez uma performance desconcertante para aqueles que foram seu público, ainda que sem saber.
RENATA FELINTO
White Face and Blonde Hair
2012
A MATERIALIDADE DA HISTÓRIA
Mineiro de Igarapé, Thiago Gualberto nasceu em 1983, Estudou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, faz bacharelado em Têxtil e Moda, pela USP, e atualmente mora em São Paulo. A temática étnico-racial está presente em seus trabalhos desde que começou a expor, ainda em Minas, em 2005. Como Sidney Amaral (1973), artista apresentado na revista O Menelick 2º Ato em março de 2012, Gualberto coloca sua própria experiência em jogo articulando-a de modo imaginativo e inteligente com a história do Brasil. Em seu site lemos: “Tiago Gualberto, em pesquisa sobre sua própria identidade, atravessa a memória do negro e o processo de miscigenação experimentado em nosso país”. Em sua obra figuram instalações e objetos e não parece haver predileções quanto aos materiais utilizados, a principio lhe interessam caixas de fósforo, coadores de café descartáveis, lâmpadas queimadas, reproduções de fotografias. Por sua vez uma técnica expressiva recorrente em sua produção é a gravura, meio pelo qual ele cria, ou reelabora diferentes interpretações de ícones da arte brasileira. É este o caso da obra O Mestiço (1934) de Candido Portinari (1903-1962). É precisamente esta obra que inspirou a ilustração da capa da edição ZER011. Nela a figura portinaresca torna-se um boneco de papel que pode usar diferentes tipos de roupas e acessórios: óculos escuros, boné, capacete de motoqueiro, blusa de moleton, celular. O leitor pode cortar a figura da capa e fazer sua composição, personalizando o seu próprio mestiço. Evidentemente a obra de Gualberto é mais extensa, mas tomamos esse exemplo facilmente visível que, inclusive, pode estar aí, agorinha mesmo na sua casa.
Sidney Amaral
Bem vindo
Aquarela e lápis sobre papel
2014
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto apresentamos um recorte da arte afro-brasileira, segmento da historia da arte nacional que vai do período barroco, colonial, até a arte contemporânea. Nosso objetivo não foi cobrir toda a produção existente, posto que no passado ela é relativamente grande e ainda bem desconhecida, e no presente tende a crescer dado o processo de qualificação democrática que permite aos artistas problematizarem suas experiências subjetivas e identidade sociais. Como efeito direto dessa atuação artística emerge a demanda por visibilidade do passado, e no presente. Já foi o tempo em que artistas negros eram recolhidos em hospícios e lá morriam como os irmãos Timóteo, ou se matavam como Emanuel Zamor. Outros tempos, velhos conflitos, novas condições sociais para lidar com os racismos que a todo afloram e se atualizam, potentes sim, mas também há outras armas para atacar o império. Para responder aquela pergunta feita no inicio: Arte Afro-brasileira para quê? Diríamos que para ampliar a oferta de produtos multiculturais que levem em conta a diversidade da cultura brasileira que, mesmo no campo da arte contemporânea, ainda muito elitista, vem gerando novas produções, visões e experiências subjetivas e sociais diversas.
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PARA LER
Tecido Social
Alexandre Araújo Bispo.
Disponível em: galeriavirgilio.com.br
Yêdamaria
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
São Paulo, 2006.