abril de 2019

ACORDEI NA NEUROSE: UMA VISITA AO ATELIÊ DE NO MARTINS

Claudinei Roberto

 

 

 

 

 

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

Quem se aproxima da obra pictórica de No Martins é logo surpreendido pelo vigor e a contundência das imagens que ele constrói e apresenta, em geral narrativas que tem por tema central retratos de negrxs, e é também impactado pela qualidade do seu desenho, pelo domínio que o artista exibe dos meios que dispõe para a construção dessas representações, ora gigantes como grandes bandeirões de estádios, ora delicadas como relicários. Em qualquer um dos casos, são notáveis a qualidade e solidez do desenho e da pintura, expressa por uma paleta intensa e profunda que alterna cores quentes e frias, notadamente azuis, roxos, vermelhos, amarelos e seus derivados; na superfície dos suportes nem sempre convencionais que recebem essas cores. De fato, lonas, placas de metal, madeira, tecidos e outros materiais são utilizados pelo artista durante a execução de sua obra, esses materiais não se apresentam de maneira aleatória, mas são escolhidos resignificados e dispostos de maneira a adensar as narrativas que o artista cria. Essas narrativas confirmam uma trajetória, exprimem uma experiência que vai paulatinamente constituindo um caráter muito marcado pela indignação diante das injustiças que são a marca de nossa sociedade.

 

 

 

O bairro da Barra Funda em São Paulo é ainda hoje um dos resilientes redutos do samba na cidade, a essa antiga tradição foi incorporado um contemporâneo acervo representado pelo graffiti e pelo pixo. Foi nesse bairro que No Martins instalou seu ateliê. Encontrei o artista trajando o avental que utiliza na execução do seu trabalho, as longas tranças da cultivada cabeleira rastafári arranjadas num coque que ele posteriormente desfez. Como alguns entre nós, ele estava chocado com o assassinato de um jovem, por estrangulamento, nas dependências da loja de uma grande rede de supermercados no Rio de Janeiro. Indignado, o artista lastimava a impunidade do assassino, aliás, um agente de segurança a serviço do infausto estabelecimento. Impunidade, além disso, amparada por certa parcela da sociedade que alegando insegurança avaliza atrocidades como aquela transmitida pelas TV’s. A esse sinistro acontecimento, outros que competem em horror vieram somar-se ao mural das desgraças cotidianas que vão compondo o painel da nossa atual (e passada) tragédia social. Mas ao contrário da maioria, a indignação do artista diante do desastre não se resumiu a um protesto pelas redes sociais. No confessou-me que diante da notícia e do horror causado por ela, dormiu mal e ”acordou” de um sono inquieto, “injuriado”, angustiado e perguntando-se: o que posso fazer?

 

 

Uma gravata extra
Acrílica sobre algodão
1,89 X 1,50 m
2019

 

 

 

Quantos artistas diante de quadros similares não se impuseram a mesma pergunta? Muitos, porém o horror a injustiça, por genuíno e sincero que seja, quando transmutado em arte não garante a qualidade de um projeto que pretenda expressar a náusea diante do horror. Mas também é verdade que a preocupação social na arte brasileira tem gerado obras que por sua importância transformaram-se em marcos incontornáveis, e isso desde pelo menos os anos 20 do século passado até o advento e o fim – também no século passado – da ditadura cívico–militar que entre nós vigorou por mais de 20 anos. Neste sentido, No Martins participa de uma “família” artística que trás na preocupação social uma pauta que interfere, em maior ou menor grau, na concepção de suas obras. Essa sensibilidade esteve manifesta em artistas do Modernismo, desde os “Clubes de Gravura”, no sul do país, e também na arte Pop e Nova Figuração; contemporaneamente esta sensibilidade manifesta-se entre artistas negros brasileiros como Sidney Amaral, Rosana Paulino e Moisés Patrício, para citar apenas três que rompem com o preconceito em torno da abordagem conteúdistica da obra em favor de narrativas plásticas de forte preocupação social e de denúncia.

 

 

Campo minado
Acrílica sobre tecidos, placa de trânsito
e instalação de áudio
4,30 X 2,20 m
2018

 

 

 

“No Martins participa de uma ‘família’ artística que trás na preocupação social uma pauta que interfere, em maior ou menor grau, na concepção de suas obras”.

 

Nascido há 31 anos na periferia da Zona Leste paulistana, o artista No Martins construiu um interessante percurso onde estética e ética enredam uma trama sensível que têm resultado em pinturas e performances notáveis pelo vigor e pela engenhosidade das soluções formais encontradas pelo artista. É extraordinário e revelador que ele tenha vivenciado nas ruas as virtudes da sua classe e “raça”, que dão sentido a sua coragem. Coragem além do mais necessária as suas ações de pixador, grafiteiro e pintor; três categorias distintas, mas que se contaminam de maneira sútil. No Martins pertence aquele grupo dos autodidatas, homens e mulheres que pautados pela necessidade construíram um percurso á margem da academia. Ele, no entanto, não a despreza, mas acrescenta na sua interlocução com o universo da arte elementos até bem pouco tempo tidos como marginais a ela, como o Hip-Hop, com toda a riqueza de cultura oral, musical e visual que gravita ao redor dessa manifestação urbana, periférica e negra.

 

      


 

 

No Martins é um pintor contemporâneo e também um homem negro brasileiro atento aos incitamentos que essa condição lhe impõe, e responde a esse desafio incorporando a sua poética os elementos e sinais de uma visualidade urbana que capta através da experiência do pedestre e do ciclista. Nisso ele se corresponde com o escritor Lima Barreto, um artista que foi cronista das ruas e do povo pobre e discriminado no seu tempo. Mas essas narrativas plásticas são filtradas por uma competência técnica cultivada desde os tempos em que No Martins frequentava com disciplinada assiduidade os ateliês oferecidos pela Oficina Cultura Oswald de Andrade, no bairro de Bom Retiro, em São Paulo. Ali adquiriu intimidade com os processos da gravura, absorvendo a experiência de mestres como Kika Levy e Ulysses Boscolo; foi lá também que, em 2007, encontrou na artista Rosana Paulino uma excelente e exigente professora, orientadora e referência. Seja dito de passagem que a experiência do artista nesses ateliês mantidos pelo Estado, nos informa sobre a necessidade de manter (com qualidade) e expandir esses serviços, tornando-os cada vez mais acessíveis a artistas que, como No, tiveram no primórdio dos percursos de sua formação que se debater para superar as dificuldades próprias a sua condição social e étnica.

 

 

Xis 4
Vídro e algema de aço niquelado
2018

 

 

“No construiu um interessante percurso onde estética e ética enredam uma trama sensível que têm resultado em pinturas e performances notáveis pelo vigor e pela engenhosidade das soluções formais encontradas pelo artista”.

 

 

É também interessante que o artista, como ele diz “esteve na rua até 2015” querendo expressar com afirmação que trabalhou o graffiti até aquele ano e que paralelamente a essa atividade frequentava cursos superiores de História e Educação Artística, ambos abandonados sem conclusão; e que ainda trabalhava como educador em algumas exposições e em projetos que assistiam populações socialmente vulneráveis.

 

 

#JÁBASTA! I
Acrílica sobre tecidos
2,38 X 1,87
2018/2019

 

 

#JÁBASTA III
Acrílica sobre tecidos
2,60 X 2,10
2018/2019

 

 

A arte afro-brasileira dá sinais de enorme vitalidade a partir de trabalhos que como esse afirmam a peculiaridade da condição cultural e social do negro brasileiro, sem, no entanto, fechar-se a influência da pintura ocidental. No Martins. é um jovem e promissor artista que confirma na excelência do seu trabalho a primazia do caráter resistente de um povo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Claudinei Roberto

CLAUDINEI ROBERTO DA SILVA é professor, artista visual e curador independente. Graduado pelo Departamento de Artes da USP, foi coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, realizou diversas curadorias entre as quais "O Amor, o Banzo e a Cozinha lá de casa" de Sidney Amaral no museu Afro Brasil, 13ª Bienal de Arte Naifs do Brasil do Sesc, também para o Sesc SP a exposição " PretAtitude - Insurgências, emergências e afirmações na arte afro brasileira contemporânea "

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.