outubro de 2016

ARTISTAS E INSTITUIÇÕES: É PRECISO COLORIR PARA ENXERGAR

Janaina Barros

 

 

 

 

 

 

 

No texto Descolonizando o conhecimento da escritora, professora e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba, com procedência em Ilhas São Tomé e Príncipe e Angola, ao utilizar numa passagem de sua escrita a figura da Escrava Anastácia, encarcerada numa máscara de folha de flandres que silencia a sua voz e sua autonomia, a artista metaforiza os lugares contemporâneos da fala de indivíduos que historicamente encontram-se numa condição subalternizada.  Para isso, ela levanta as seguintes questões norteadoras: “Quem pode falar? Quem não pode? E, acima de tudo, sobre o que podemos falar? Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada? Por que ela, ele ou eles/elas tem de ser silenciados/as? O que o sujeito o Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que o sujeito branco teria que ouvir?” [1]  Neste sentido, Kilomba coloca justamente em questão uma narrativa hegemônica que define o que pode ser caracterizado como conhecimento. Além da maneira como se dá a sua estruturação nas agendas oficiais, e também sobre aqueles que são reconhecidos oficialmente como agentes e produtores de conhecimento. Analogamente, torna-se possível traçar uma história dita universal, objetiva, neutra, racional e imparcial, constituída numa relação assimétrica, que realmente não conta outra perspectiva histórica sobre aqueles, outros culturais, que são postos numa atuação política restrita. Portanto, esta narrativa hegemônica e eurocêntrica localiza estas autorias para delimitá-las dentro do campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da imparcialidade. Logo, não há o reconhecimento de qualquer forma de sapiência que esteja fora de certos paradigmas eurocêntricos. Sobremaneira, estabelece-se uma relação hierarquizada e racializada quanto a valores culturais, estéticos e morais. A construção em torno de uma Europa Moderna como protagonista, centralizada, e paradigmática acerca de uma História Mundial, alicerçou uma história de poder em que consequentemente, outras formas culturais são identificadas como periféricas. Então, trata-se daquilo que o filósofo argentino Enrique Dussel, no artigo Europa, Modernidade e Eurocentrismo, aborda sobre o etnocentrismo europeu moderno. Este pode ser definido como universal/mundial produzindo numa lógica de poder eurocêntrica uma confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta. Isto é decorrente de uma invenção ideológica de uma Europa Moderna que linearmente se fundou em Grécia/Roma/Europa no fim do século XVIII durante o Romantismo alemão.  Era uma espécie de aparato de manipulação conceitual posterior do “modelo ariano” de viés racista e racializante. O “modelo ariano” referenciava negativamente diferentes grupos étnicos e suas produções tecnológicas, intelectuais e culturais.  É imprescindível não deixar de citar as contradições do Iluminismo, onde em seus países de origem reivindicava a implantação de uma sociedade burguesa pautada no principio de igualdade e liberdade. No entanto, os iluministas defendiam a diferença entre os homens baseando-se num naturalismo que formulou um determinismo biológico, no qual sistematizou as teorias raciais que ainda justificam as desigualdades sociais entre os indivíduos na contemporaneidade. A Europa Ocidental deve ser relida na cifra de uma invenção moderna no qual traduz uma história de poder, por meio do processo colonial onde cria um sistema de dominação e exclusão, que constitui formas de subalternidades referentes à África e a América. Os lugares hierarquizados e desprivilegiados construídos para indivíduos ou grupos considerados racializados.[2] Em síntese, refere-se sobre aquilo que seja Europa contraposta com aquilo que seja não/Europa.  Dessa maneira, a Europa estabeleceu-se historicamente assumindo o controle sobre os diferentes mecanismos atrelados ao trabalho, ao capital e, também ao mercado mundial.

 

Portanto, um (a) artista quando se define como negro (a) reivindica o seu lugar de fala, no qual traduz politicamente a urgência de seu tempo e de sua história numa tentativa de reescrita de outras narrativas. Ao mesmo tempo, este (a) produz metodologias visuais como forma de estruturação e/ou ordenação de poéticas que mesmo que se refira ao debate étnico-racial não são homogêneas a outras produções artísticas. Pode-se retomar a palestra proferida pela pesquisadora Renata Bittencourt[3] As instituições brasileiras em relação à produção de artistas afrodescendentes, durante a programação do seminário sobre a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, no qual trata inicialmente sobre a percepção imediata de sujeitos negros naquilo que o olhar do outro inegavelmente capta: a cor da pele. São corpos visíveis. No entanto, esta existência aparece de maneira não tão visível quando se analisa do ponto de vista de uma presença de artistas negros e negras em galerias, museus e instituições culturais, mesmo que estas produções existam com temas e modalidades artísticas distintas. A pesquisadora enfatiza o papel das instituições culturais em propor diferentes formas de leituras de produções de artistas negros (as), na mesma medida, visibilizá-las distantes de uma história representada de modo específico sobre estes (as). Pois, estas instituições se encontram no campo da cultura e não podem ser vistas apenas como espaços de neutralidade, e sim como espaços de fomentação, diálogo educativo e abordagem de diferentes narrativas culturais e visuais. Podem-se observar relações de proximidades formais ou situações de encontros entre Kerry James Marshall (Birmingham/Alabama, EUA-1955) e Rosana Paulino (SP, 1967), William Henry Johnson (Florence/South Carolina, EUA, 1901-1970) e Heitor dos Prazeres (RJ, 1898-1966). Neste cenário contemporâneo é possível elencar uma série de produções de artistas negros, onde formulam, sistematizam e operam formalmente suas experiências sociais em temas e práticas artísticas diversas. Neste sentido, a exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca  reelabora  um espaço reflexivo para a abordagem de diferentes narrativas culturais e visuais. Soma-se ainda, a proposição de diálogos e leituras compartilhadas por meio da criação de material de apoio à prática pedagógica e de seminário em parceria com a revista O Menelick 2 º ato durante o período de 30 de abril e 07 de maio de 2016. O Seminário Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca ocorreu com a presença dos seguintes pesquisadores e artistas: Emanoel Araujo, Tadeu Chiarelli, Nabor Jr., Renata Bittencourt, Janaina Barros, Nelson Inocêncio, Alexandre Araújo Bispo, Jaime Lauriano, Sidney Amaral, Rosana Paulino, Renata Felinto, Peter de Brito, Flávio Cerqueira, Rommulo Vieira Conceição e Genílson Soares. A exposição divide-se nos seguintes territórios: Matrizes Ocidentais, Matrizes Africanas e Matrizes Contemporâneas. Neste último território estão as pesquisas visuais dos artistas Genilson Soares (1940), Rosana Paulino (1967), Rommulo Vieira Conceição (1968), Paulo Nazareth (1977), Sidney Amaral (1973),

 

 

 

WILLIAM H. JOHNSON
Blind Singer
Guache sobre papel
1940

 

 

 

 

Jaime Lauriano (1985) e Flávio Cerqueira (1983).[4] No texto Mostra da Pinacoteca mantém preconceito com gueto negro, publicado na Folha de São Paulo em 24/12/2015, Fabio Cypriano acusa a escolha curatorial de quando opta por expor artistas negros promove uma prática de compensação de políticas públicas de discriminação. Ao invés disso, o autor sugere à instituição a elaboração de estatísticas de retrospectivas de artistas afrodescendentes nas últimas décadas como postura política relevante.  O jornalista rotula e classifica como gueto a gama de visualidades de artistas negros, sinalizando como pouco relevante destacar a cor da pele de um (a) artista na mostra apresentada pela Pinacoteca. Para Cypriano, a cor da pele de um artista é irrelevante para determinar a qualidade do objeto artístico, e a cor não deveria ser enfatizada. Não obstante, o lugar desta crítica reafirma a construção de um olhar colonizado, cristalizado e homogeneizante para estas produções. Decerto, ele em sua análise não nomearia da mesma forma visualidades de outros grupos culturais como guetos, entre os quais, artistas ítalo-brasileiro, franco-brasileiro, nipo-brasileiro e etc., cuja presença é forte na Pinacoteca.

 

A importância da exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca segundo o diretor geral e curador Tadeu Chiarelli é visibilizar as diferentes narrativas de produtores negros ou afrodescendentes, olhando para a história do próprio acervo, e sua contribuição para o debate historiográfico da arte brasileira.  O museu completou 110 anos em 2015.  E, a exposição Territórios apresenta 106 obras destes artistas de período e modalidades artísticas distintas de seu acervo. Este debate inicia-se com a gestão do artista Emanoel Araújo na Pinacoteca (1992-2002), uma figura relevante neste cenário. Destaca-se neste período no acervo, um autorretrato do pintor Arthur Timótheo da Costa (RJ, 1882-1922) de 1908, doado em 1956. Logo, há a ampliação do acervo com produções desde o século 18 até o momento presente. Acresce-se ainda, a recente aquisição de obras de artistas negros pela gestão de Tadeu Chiarelli.

 

O debate sobre uma produção de autoria negra na arte brasileira possui um percurso histórico onde se destaca a atuação do artista, gestor e curador Emanoel Araújo na criação do Museu Afro Brasil em 2004. Araújo organizou uma vasta publicação sobre uma autoria negra como maneira de contribuição para a história enquanto memória e produção de arte, ciência e cultura brasileiras. Ressalta-se a exposição A mão afro-brasileira   com curadoria de Emanoel Araujo, sediada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM- SP), paralelamente a publicação do catálogo homônimo  em comemoração ao centenário da abolição, lançado em 1988. E, posteriormente uma versão reeditada e ampliada em dois volumes em 2010. Um dos objetivos do catálogo era fazer o mapeamento de artistas negros contemporâneos. O olhar de Araujo destaca-se por tecer diferentes perspectivas históricas para a releitura de lacunas do passado, para repensar e tensionar o presente e alinhavar o futuro.

 

 

ARTHUR TIMOTHEO DA COSTA
Autorretrato
Óleo sobre tela
1908

 

 

 

 

O pesquisador Nelson Fernando Inocêncio[5] na Mesa Redonda Artistas e Instituições  analisa a partir do tema Artistas afrodescendentes no acervo do Museu Afro Brasil uma revisão de uma história constituída pela produção estética e política de autoria negra ou afro-brasileira. Inocêncio observa criticamente as circunstâncias que antecederam a criação do museu como espaço representativo de pesquisa, produção e circulação de visualidades que se encontram num sistema de exclusão racial.  Cita o Projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) que patrocinou durante a década de 50 pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. A tese era de que não existia racismo no país assim, no decorrer das pesquisas, o mito de origem freyreana sobre a existência de uma democracia racial tornava-se uma falácia.

 

O termo arte afro-brasileira aparece nos estudos de Mariano Carneiro da Cunha, considerado pelo autor de caráter conceitual, quando cita uma visualidade atrelada a uma estética tradicional africana e/ou que desempenha o papel de culto dos orixás ou, então aproximada a tema ligado ao culto. Trata-se de temas ordenados de cunho afro-brasileiro, nomeadamente em seu sentido lato e estrito, como a presença cultural do ‘caboclo’ como representação de ancestrais indígenas presentes nos ritos afro-brasileiros, como por exemplo, na umbanda. Por outras palavras, são formas demarcadoras de brasilidade ou o processo dinâmico de ressignificação cultural.  Numa breve digressão, no artigo Ensaio de uma estética afro-brasileira do sociólogo francês Roger Bastide, publicado no jornal O Estado de São Paulo, durante o período de 1948-1949, Bastide analisa o caráter místico-estético presente nos pontos riscados das macumbas no Rio de Janeiro ou espiritismo na umbanda como expressões estéticas afro-brasileiras. Em síntese, o termo afro-brasileiro para Cunha aparece de maneira ambígua e provisória em razão de traduzir determinados dinamismos de aspectos culturais africanos no Brasil. Porventura, justificar-se-ia em razão de haver a presença de muitos artistas brancos, um tanto de mestiços e poucos negros que abordam esta temática de modo incidental ou recorrente em suas poéticas. Anteriormente, o artista, dramaturgo e pesquisador Abdias do Nascimento depois do 1º Congresso do Negro Brasileiro realizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) a partir de uma comunicação de Mário Barata sobre A escultura de origem africana no Brasil em 1950, começa a colecionar trabalhos de artistas negros ou afrodescendentes.  Em 1955, propõe um concurso em artes visuais com o tema Cristo Negro. Neste percurso, cria o Museu de Arte Negra, sem sede própria e, apenas com uma única exposição ocorrida no Museu de Imagem e do Som (MIS) no Rio de Janeiro, em 1968.  [6]Abdias do Nascimento coloca em questão a importância de destacar a cor da pele de uma autoria artística, pois evidencia relações de assimetria e desigualdades sociais tecidas por uma história de colonialidade de poder. Certamente, não existe um sujeito sem cor e composto por uma total neutralidade. Segundo ele, somente a restituição de um autorrespeito e autoestima permite a totalidade de uma pessoa em formas de representatividade e reconfiguração histórica.

 

 

 

 

 

 

Em resumo, o debate étnico-racial nas artes visuais contemporâneas ainda é pertinente como articulação política na delimitação de uma dada autoria. A autoria traz o sentido de pertença e reescrita de narrativas hegemonizadas. E, justamente insere-se no debate a respeito do equivoco ocidental de um universalismo na Arte, debatido no livro O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois escrito pelo historiador de arte alemão Hans Belting e publicado em 1995. Ou ainda, a impossibilidade de leitura de objeto artístico que não esteja moldado as grandes narrativas ou a acepção de universais da arte, abordado no livro Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história pelo filósofo e crítico de arte americano Arthur Danto publicado em 2006. A exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca propõe a leitura de uma narrativa hegemonizada que deve ser analisada fora de uma construção no campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da imparcialidade. Pois, é a única forma de descolonizar as diferentes narrativas poéticas. É imprescindível criar novas estratégias de leitura para repensar outras escritas para uma produção vista como homogeneizada, não formal esteticamente e aprisionada a determinados paradigmas eurocêntricos. Só assim é possível analisar criticamente uma visualidade plural em sua potência criativa, formal e conceitual.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

+
NOTAS DE RODAPÉ

 

[1] Grada Kilomba apresentou este artigo inicialmente na forma de palestra-performance, a convite do Goethe-Institut São Paulo, na 3° Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP) no Centro Cultural São Paulo no primeiro semestre de 2016. Trecho citado do texto com os grifos da autora. O texto integral pode ser acessado em: goethe.de

 

[2]Vale a pena destacar três exposições interessantes para o debate a respeito de narrativas hegemônicas e multiculturais, bem como atuam para construções de marcadores de identidades na redefinição do papel da arte na tradição ocidental. São elas: Primitivism in 20th Century Art ocorrida no Museum of Modern Art (MOMA) de Nova Iorque, em 1984.  A ideia de primitivismo estava exclusivamente fora da cultura ocidental. A exposição Magiciens de la terre,  no Centro Georges Pompidou de Paris, em 1989. O debate encontrava-se numa empreitada pós-colonial para a redefinição de estratégias de expor diferentes narrativas multiculturais. E, mais recentemente, a exposição Afro Modern: Journeys through the Black Atlantic, no Tate  Liverpool, Inglaterra, em 2010.

 

[3] Doutora em História da Arte pelo IFCH- Unicamp é coordenadora da Unidade de Formação Cultural da Secretaria de Estado de Cultura (SP) e gestora de programas Fábricas de Cultura, Oficinas Culturais e SP Escola de Teatro.

 

[4] E, ainda pode-se ampliar esta lista com outros nomes, tais como Eustáquio Neves (1955), Ayrson Heráclito (1968), Peter de Brito (1967), Renata Felinto (1978), Wagner Leite Viana (1981), Priscila Resende (1985), Michelle Mattiuzzi (1980), Luiz de Abreu (1963), Juliana dos Santos (1987), Olyvia Bynum (1990), Lidia Lisboa (1970), Sonia Gomes (1948), Rafael RG (1986), Tiago Gualberto (1983), Dalton Paula (1982), Aline Motta (1974), Moisés Patrício (1987) e etc.

 

[5] Doutor em Artes pela Universidade de Brasília (UNB). Atua profissionalmente como Professor Adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília.

 

[6] Havia obras dos artistas Agnaldo Manoel dos Santos, Julia Van Roger, Otávio Araújo, Lúcia Fraga, Aldemir Martins, José Barbosa, Manoel Bonfim, José de Dome, Agenor, Nilza Benes, Lito Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Maria Albuquerque, Holmes Estevão, Juarez Paraíso, Emanuel Araújo, J. Tarcísio, João Alves, Solano Trindade e etc.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Janaina Barros

JANAINA BARROS SILVA VIANA é artista visual, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo. Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista. Atua como formadora do Núcleo de Educação Étnico-Racial (NEER), Diretoria de Orientação Técnica (DOT), Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.