outubro de 2019
TROUXESTES A CHAVE?
NABOR JR E NEIDE ALMEIDA
fotos chuck martin
Parafraseando o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), no poema Procura da Poesia, o decano da literatura negra brasileira, Oswaldo de Camargo (1936), define o modo como a mais elaborada arte literária era perseguida pelo velho amigo, Paulo Colina. “Você está escrevendo, que bom! Mas você trouxe a chave? Essa chave é o estudo, o conhecimento das palavras, da ocasião do seu emprego, do seu peso… E o Colina, nesse ponto, era rigoroso (…) foi um autor elaboradíssimo, dos mais elaborados que conheci”.
“bastaria ao poema apenas
a cor da minha pele?”
Autor desta celebrada estrofe, presente no poema Corpo a corpo, Paulo Colina e sua obra estão sendo revisitados atualmente. E Oswaldo de Camargo é um dos responsáveis por este movimento. Encontros, zines e a possível reedição dos quatro livros publicados pelo poeta – Fogo Cruzado (1980), Plano de Vôo (1984), A Noite Não Pede Licença (1987) e Todo o Fogo da Luta (1989) – estão previstos para ocorrer entre outubro deste ano e o primeiro semestre de 2020, quando Colina completaria 70 anos. Em colaboração com essas ações, que visam resgatar a produção coliniana, a revista O Menelick 2° Ato publica as fotografias inéditas do poeta exibidas ao longo deste texto. De autoria do fotógrafo norte-americano Chuck Martin, as imagens foram capturadas nos anos de 1992 e 1994, na cidade de São Paulo e, além do seu caráter documental, transmitem a espontânea descontração que o afeto negro produz. “Logo que cheguei ao Brasil, o Colina foi me buscar no aeroporto e me conduziu por diversas regiões da cidade”, recorda-se Chuck.
Paulo Eduardo de Oliveira (1950-1999), nascido em Colina, no interior de São Paulo, e Oswaldo de Camargo se conheceram nos anos 1970, no extinto Bar Mutamba, no centro da capital. Apesar de um bar ser o pano de fundo para o início da amizade entre os dois, foi a literatura que os uniu: “de preferência uma literatura que tivesse a marca de ser uma literatura de buscas a respeito do negro”, ressalta Camargo. À época, Oswaldo era revisor do prestigioso Jornal da Tarde, já tinha um livro publicado e costumava tomar café no Bar Mutamba, que ficava encostado ao prédio onde funcionava a redação do jornal. Sabendo das prerrogativas literárias do autor, que a época já destacava-se na tímida comunidade de autores negros de São Paulo, Colina, quase 15 anos mais jovem, foi procurá-lo. Nascia ali uma grande amizade. “O que mais me honrava quando o Colina falava ao meu respeito, é que mesmo ele tendo um irmão, ele costumava dizer pra todos que eu era mais irmão dele do que o próprio irmão de sangue que ele tinha”.
Em entrevista, Oswaldo de Camargo relembra episódios vivenciados junto ao boêmio poeta, e fala sobre o refinamento, a sofisticação e a urgência da obra do célebre autor que, ao lado de Abelardo Rodrigues e do próprio Oswaldo de Camargo, formavam – devido a proximidade dos três – o chamado Triunvirato: “Diziam, com ironia, que nós, o Triunvirato, estávamos procurando a glória literária. Mas tudo isso vem ao encontro dessa expansão que o Colina procurava para a nossa literatura. E eu também procurava, assim como o Abelardo. Nós procurávamos fazer com que a nossa literatura não ficasse presa apenas a um território”.
O fotógrafo e pesquisador Oubí Inaê Kibuko e Paulo Colina: “Se houver outra vida, quero ser mais negro”, disse certa vez o poeta.
OM2ATO: Buscando ler mais sobre a obra de Paulo Colina, algumas coisas nos chamam muito a atenção. No caso, mais os poemas do que a prosa. Chamam a atenção, por exemplo, sua capacidade de síntese, o modo como trabalha com as marcas que ficaram da nossa história negra e as formas de resistência a esse processo. Enfim, parece que ele trabalha esses elementos tanto do ponto de vista da construção social, como pensando nas questões amorosas, afetivas. Gostaria que falasse um pouco dessa produção poética dele.
OSWALDO DE CAMARGO: O autor que tem formação, formal ou informal, sabe o momento em que o poema deve ser curto, e quando deve ser longo. Quando é possível se resolver a questão em poucos versos, ou quando se faz necessário algo prolongado. Muitas das vezes em que eu me encontrava com o Colina nos bares e restaurantes, eu chegava e invariavelmente ele estava escrevendo. Muito provavelmente seus poemas mais curtos eram escritos nessas ocasiões, no bar. Mas a hipótese mais importante é que, devido a sua formação, quando ele escrevia o poema já estava destinado a ser curto. Uma das marcas do autor é não se espalhar demais, ser retórico. Colina tem uma síntese muito grande, que é fruto das suas leituras de autores modernos, tais como Drummond, João Cabral de Melo Neto, alguns autores africanos também, como Agostinho Neto, José Luandino Vieira, já que houve uma época em que líamos muito os autores africanos. Preferencialmente autores que trabalhavam muito bem a forma. Ele também tinha muita influência dos autores norte-americanos que lia. Bons autores americanos. Então, ele teve várias influências e referencias que outros autores da época não tiveram. Nota-se, por fim, na produção do Colina, que se trata de uma pessoa que leu muito, e isso transparece na sua produção.
“Outra característica que eu reparei em Paulo Colina, especialmente devido às viagens que fizemos juntos, era o amor pela noite”, recorda-se Camargo.
OM2ATO: Pensando neste momento que vivemos hoje na literatura negra. Um momento em que temos um grande número de autores produzindo, inclusive gente muito jovem. E considerando que atualmente nós não temos acesso a esses livros do Colina – inclusive em sebos – o que você considera como fundamental, sobretudo para esse pessoal que está produzindo literatura negra hoje, que conheça da produção de Paulo Colina?
OC: Da produção do Colina, fundamental são os seus poemas. Tenho a impressão que o melhor livro dele é Plano de Vôo. Seria este o livro que eu recomendaria pra quem quiser iniciar uma aproximação com a obra do Paulo Colina.
“Quando sonhamos
com o horizonte,
a precisão é fundamental”.
Olha aí a síntese absoluta! Não há nada sobre o negro aqui, mas se você pensar bem, nós sonhamos com o horizonte e não podemos errar. Então, a interpretação para o branco, que não tem problemas raciais, é puramente a literária. Já para nós – e este é um perigo da nossa literatura às vezes – mesmo em textos em que não há uma ilação negra, nós procuramos uma ilação negra. Como o Colina é negro, e eu tenho dito várias vezes, a nossa cor escura faz parte da nossa fala. Me vem a memória a poetisa negra do século XIX Auta de Souza, que é muito venerada pelas mulheres e que escreveu um livro só, e faleceu com 23 anos. Ela não tem um só verso que diga da sua condição racial, nenhum! Pelo menos até onde eu examinei. Ela é uma poeta mística. Mas eu volto a falar, a cor da pele de um negro faz parte da sua fala. Quando você lê Auta de Souza, queira ou não, você está lendo uma autora negra. E você vai trazer à tona as implicações de ser uma mulher negra no final do século XIX início do século XX, educada por freiras, falando francês, em uma cidade pequena na Paraíba. Um branco por sua vez, vai ler em Auta de Souza puramente o que está ali. O negro, por natureza, já vai procurar as ilações da cor. É o mesmo caso da Carolina Maria de Jesus, o personagem da Carolina é a fome.
A Noite Não Pede Licença é outro livro fundamental dele.
“Colina conhecia muito bem o inglês e, diferente da maioria nós, tinha condição de ler os originais de grandes autores negros norte-americanos. E ler o original é diferente de ler a tradução. O tradutor é sempre um traidor”.
OM2ATO: Paulo Colina teve o reconhecimento da sua qualidade literária ainda em vida?
OC: Sim!Colina teve o reconhecimento da sua excelência literária. O Colina foi, neste ponto, até um privilegiado. Ele teve prefácios, matérias em revistas produzidas pelo Clóvis Moura, por mim, que escrevi no Jornal da Tarde a respeito da poesia dele. Houve fora do nosso meio um reconhecimento enorme, especialmente do PCO (Partido da Causa Operária).
“ser marginal todavia só interessa à paixão”
Quando dos dez anos do falecimento do Paulo Colina, foi feito um caderno inteiro sobre ele. O pessoal do PCO se encantou com o lado social da poesia coliniana. Mesmo ele não tendo nenhum tipo de vínculo com o partido. Por exemplo, aquele verso dele: “a princesa esqueceu-se de assinar nossas carteiras de trabalho”, encantava o PCO, pois ia ao encontro do que eles procuravam.
O nome do Colina sempre apareceu em antologias da literatura negra, era imprescindível que aparecesse. Um dos poucos reconhecimentos que existe, sobretudo para o autor negro, é ele ser convidado para simpósios, palestras… e isso ocorria muito com o Colina também.
“Foi com Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Cuti e o escritor argentino Jorge Lescano, que fundamos, em 1978, o Quilombhoje”.
OM2ATO: O que você quis dizer com a afirmação: “Paulo Colina foi um poeta do claro e do escuro”?
OC: Há várias interpretações para essa frase. Ela está, de fato, aberta a interpretações. É um poeta que tem a esperança de que nós vamos alterar algo através da literatura. Sair da escuridão. Aquele brilho que vai nos levar adiante pela literatura, com a palavra. Vejo o Colina como um autor que abrange esses dois elementos – e seus significados – dentro dos seus poemas. Não estou afirmando que tudo que ele escreveu está dentro disso. Nenhum poeta fica o tempo todo dizendo sou negro, mas é fundamental que na hora em que ele fale, essa afirmação tenha toda a conotação de arte, beleza e convencimento. Características que faltaram a muitos autores que falavam: “eu sou negro!” Mas e daí!? Isso eu posso afirmar numa tese, num livro de sociologia. Você, enquanto poeta, tem que chegar a esse ponto de trazer a sua identidade com uma alta arte. E isso o Colina conseguiu: trazer essa identidade com uma arte elaborada.
Paulo Colina traduziu vários poetas japoneses para o português. Seu conhecimento, aliado as traduções da poesia japonesa refletem-se em seu trabalho, que prima muitas vezes pela síntese.
É como aquela frase famosa do Drummond de Andrade, que ele faz a pergunta: “Trouxestes a chave?”. Quer dizer, você está escrevendo, mas você trouxe a chave? Essa chave é o estudo, conhecer as palavras, o peso de cada palavra. Cada palavra tem o seu peso, sua cor… Bonito é uma coisa, belo é outra. Eu não posso, num poema, usar essas palavras como sinônimos, o próprio som que elas emitem é diferente. E o artista domina isso. É igual o pintor com a sua palheta, ele a domina. Mas esse domínio não é dado de graça, há muito estudo. E o Colina, nesse ponto, era rigoroso.
Paulo Colina e Abelardo Rodrigues (à direita): “Pelas ruas, cada ponto de ônibus é um cão vadio roendo silêncios”.
OM2ATO: E sobre a inserção de Paulo Colina fora do meio negro?
OC: Antes de me conhecer, o Colina já tinha uma vida literária agitada em São Paulo. Ele já circulava por aí. Então ele encaminhar-se para a Associação Brasileira de Escritores (UBE) foi a coisa mais normal. O fato a se considerar é que ele levou para o centro da entidade os problemas do negro. (…) Estando na ABE, o Colina os deu a conhecer o escritor negro, e isso foi importantíssimo. O pessoal começou a saber que havia gente escrevendo no nosso meio. Foi através dessas relações que ele tinha que se arquitetou a participação de autores negros na Bienal Nestlé. Este era um evento literário importantíssimo na época. E participar das bienais foi fundamental, pois tivemos contato com nomes como Rachel de Queiroz, Ruth Guimarães, Lígia Fagundes Telles, e tantos outros nomes da literatura brasileira em geral que ficaram nos conhecendo a partir dos nossos próprios depoimentos. O intelectual branco não sabia que havia gente escrevendo sobre a temática negra e que eram negros que estavam fazendo isso.
“Poeta lírico, social, poeta autêntico da Negritude. Colina tinha a inquietação por uma estética que não fosse tão-só justificada ou medida pela quantidade de livros, mas que fosse o esteio para obras que perdurassem no tempo, por serem autênticas, elaboradas e sancionadas por um alto sentido estético”.
OM2ATO: E o episódio com a escritora Toni Morrison?
OC: Se não me engano, a Toni Morrison veio ao Brasil como convidada da Flip. E, muito provavelmente, alguém da própria organização do evento deve ter dito a ela que havia em São Paulo um grupo de autores negros atuantes na cena literária da cidade. Enfim, marcou-se um encontro. E o Colina, que falava muito bem inglês – e isso já era um grande diferencial a aquela época – foi o intérprete do nosso grupo. Tudo que ela falava era ele que traduzia.
Não me lembro exatamente quais as pessoas que estavam lá. Sei que estava o Arnaldo Xavier com a esposa. O Abelardo. Enfim, não me lembro exatamente porque a foto que eu tenho mostra apenas um lado da mesa, não me recordo dos demais que participaram. (…) Esse não foi o único encontro da Toni com a gente. Ela já era uma figura conhecida aqui, devido aos livros dela como Amada e etc. Ela era uma pessoa muito agradável, atenciosa. Adorou nossa caipirinha, tomou duas!
Pressentimento
Maio,
treze,
mil oitocentos e oitenta e oito,
me soam como um sussurro cósmico.
A noite sobressaltada
por sirenes me sacode.
Reviro os bolsos à procura do passe
que me permite, São Paulo, cruzar ruas
em latente paz.
A Princesa esqueceu-se de assinar
nossas carteiras de trabalho.
Desconfio, sim, que Palmares vivo
é necessário.
O poeta no túnel entre as avenidas Paulista e Rebouças: “Meu peito é um vão por onde toda a cidade transita”.