outubro de 2015

RANCOR BAIANO E DESEJOS DE REI – A LITERATURA DE FABIO MANDINGO*

Allan da Rosa

 

 

 

 

 

Emanoel Araujo
Sem título (menino e cata-ventos)
1964

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Ao mesmo tempo em que ele dirigia louco pela estrada, ela sangrava uma vida entre as pernas no casebre à beira da maré. Na pista, somente as luzes altas dos faróis, as carretas que passavam carregadas, apressadas levando tudo pela frente, deslocando ar no vácuo de seu peso. Nem o brilho mínimo dos barracos que ladeiam o asfalto. Só o vazio, os carros. Suas pupilas dilatadas de droga como faróis de milha.

Escorreu direto n´agua, uma massa quente e ensanguentada pelo buraco entre as tábuas que usavam como latrina. Ensanguentada e quente. Comida de peixe, de siri. Dor imensa, cabeça estourando, sangue ainda descendo misturado à diarreia. De cócoras na escuridão infinita da palafita, não via nada. Se segurava nas ripas folgadas da parede, inalando a fedentina daquela parte onde a agua salgada estagnava, entre fetos e corpos de cachorros, sacos de lixo, garrafas vazias, fezes. Dor na vagina, parecia estar parindo cacos de vidro” (início de Mara).

 

O conto Mara é uma obra prima que rala de vermelho nossas costelas. Acontece na volta de Enoque pra sua praia suburbana que encontra entre cachimbos de crack e recordes de vídeo-game; entre goladas de chá de raiz e do pior conhaque, entre os velhos fortes do terreiro e os bagaços já entediados e desandados que são seus amigos de infância, agora homenzinhos; entre o tesão e a piedade maldita que ainda sente no trato com Mara, moça que já é um viciado saco de ossos mas ainda lúcida na sua revolta e nas memórias encardidas. Mara estuprada por caga-regras moralistas, pais de família escolados no sinal da cruz e na pesca. Mara é a jovem que “sorriu e a carcaça que se tornara retornou à vida, plena de uma beleza constrangedora”. E Enoque puxado pelas sombras de um lugar que já deu muito peixe fresco e hoje é maré de morte boiando, cenário da sua decepção que evita o vazio e se confunde com ele.

 

 

Mestre Didi
Ejo Lorun Keta (Grande Serpente do Além)
1998

 

 

O autor de Mara é Fábio Mandingo. Professor, estudioso da presença africana milenar e contemporânea, capoeira do Grupo Semente do Jogo de Angola e bem experimentado nos movimentos rueiros, anarco e periféricos de Salvador. Mandingo já lançou pelo selo Ciclo Contínuo três livros de contos: Salvador Negro Rancor (2011), Morte e Vida Virgulina (2013) e Muito como um Rei (2015). Suas letras tem aroma salobro e também exalam o esgoto aberto, trazem o cheiro de urina dos cantos soteropolitanos e as fragrâncias de pétalas nobres. Suas histórias flutuam e se trançam à África antiga e à Salvador sacizeira que suga seus cachimbos de crack pelas penumbras ou a sol aberto. Os parágrafos trazem uma década de 80 pulsante, os isqueiros e velas de um subúrbio que pragueja a luz que caiu bem no meio do jogo ou da novela. Os tempos dos contos de Mandingo são o do padeiro que conta os minutos, a merreca do salário e os dias gotejados de uma juventude que se esvai na labuta que não contempla seu querer, mas que parece estar tatuada em seu destino plebeu. O verbo de Mandingo pinica e coça nas beiradas do carnaval oficial, apresenta os fiapos da folia milionária e as tramoias que são o miolo evitado pela propaganda que joga a isca pros gringos, equilibrando tempo e linguajar em contos sem a noia da velocidade, do “conte-logo-que-eu-quero-acessar-outra-postagem” e também sem o chiclete esticado, prolixo, que amolece a tensão. Moendo estereótipos, soltando vocabulários e mascando dúvidas doídas, contemplando lama, cortiço e alegrias miúdas, sua lâmina pode ser suave e seu humor pode lamber quentinho os destroços da tragédia baiana. Seus diálogos nos beliscam e sentimos bem o timbre da voz que os dicionários e as editoras oficiais do Brasil apenas rebaixam ou estereotipam.

 

Sílvio Oliveira, professor de literatura da Universidade Estadual da Bahia/UNEB, considera que “Mandingo tem um linguajar naturalmente próximo de quem viveu e sentiu as ruas de Salvador. Esse linguajar não alcança só as palavras, a gente percebe o movimento dos corpos, a função do olhar e do próprio silêncio no texto. Sinto do primeiro pro segundo livro um amadurecimento do dizer, uma segurança saída de um lugar que é do escritor mesmo. Quer dizer, há uma identidade de escritor já formatada, mas que avança pra pensar com maior objetividade as estratégias e os sentidos. É como se no início as narrativas escorressem e depois elas ainda escorrem, mas o autor determina alguns desvios, poças, pedregulhos que já dão a ideia de intervenção na narrativa”.

 

“Os tempos dos contos de Mandingo são o do padeiro que conta os minutos, a merreca do salário e os dias gotejados de uma juventude que se esvai na labuta que não contempla seu querer, mas que parece estar tatuada em seu destino plebeu”.

 

 

Em Salvador Negro Rancor, Mandingo afoga no mar lixento toda a casca brilhosa de um tour na Bahia. Expõe o aleijamento, a trucagem, a marra e as máscaras do que se negocia como negritude autêntica chupinhando candomblé e capoeira. Ao mesmo tempo em que apresenta o que há de fundamento e de chão, por ter o pulmão agredido, a respiração da obra de Mandingo é vagarosa e em tom de estopim. Não esconde seus catarros, porém não se limita ao miserê e os escombros. A nostalgia que vem não é a de uma Itapuã de Dorival Caimmi ainda ventando os coqueiros em vitrines de aeroporto, e sim a de quebradas que já choraram seus jovens cadáveres, já se entupiram de carros e já trocaram por biscoitos plastificados o pescado na tarrafa.

 

 

 

 

Eunice Souza, experiente contadora de histórias das periferias paulistanas, fala da obra: “O livro todo me causou admiração e estupor. Contos crus, mas não se enganem. A linguagem é elaborada. A crueza vem das situações limite. Gosto de todos, mas o que me pega é o conto Pipoca. Parece filme. Uma corrida maluca de coelho. O objetivo é chegar inteiro, diante da real que é o Carnaval de Salvador. Você tem aquela roupinha ridícula que lhe dá salvo conduto? NÃO tem? Se vira. Dá seus pulos e chega na casinha. Lá sim é dia de festa”.

 

O carnaval que Mandingo esmiúça é dos fardados especialistas em dar botinadas e chaves de braço nos camelôs, dos gigantes ‘seguranças’ e seus radares piscando a quem tente transgredir os espaços da corda que delimita o pedaço dos abadás bem-pagos, das gangues parrudas que esperam fevereiro pra estourar uns dentes e propagar lendas da sua macheza por mais um ano. É o carnaval do isopor e do saco cheio de latinhas amassadas carregado no cangote, no proveito da estação pra coletar uns vinténs ou doletas. É o carnaval da marmita azeda, da gororoba mal mastigada pra segurar o esqueleto moído na viração.

 

Eunice segue: “Não é como algumas publicações que não nos permitem a viagem. Que dão o bilhete, o hotel, a cama macia, o café da manhã. Cadê o perrengue do desconhecido? Do não revelado? Viajo nas imagens dele, somadas às minhas, que se somam para a grande noite de amor. A literatura é isso. Um encontro. Eu já fui à Bahia ‘N’ vezes. Em várias cidades. E Mandingo fala dessa Bahia que não está nos cartões postais. Uma Bahia muitas vezes, e põe muitas nisso, tão violenta e desigual, mas tão terna, tão nós”.

 

 

fotos Mário Cravo Neto

 

 

O texto de Mandingo não traz as angústias do escritor de classe média e suas agruras sobre “o que escrever diante do papel branco”, nem a falsa camaradagem com a favela ou a ideia geral de universalismo e de democracia racial. Há aquele sereno de quem conta e reconta a mesma história sentado no portão cascando uma jaca, mas também a rispidez de quem chacoalha no trem lotado e o ódio apertado nos dentes cariados. Quem se desenha como leitora esperada na obra de Mandingo não é a que usa turbante por moda nem a que batuca por entretenimento. Sem deslumbramento, mas com respeito e fascínio pelas giras da vida, com regras e humildade, a alma leitora para caminhar por suas linhas não é amaciada com glossário. A íris do escritor é malunga e quem lhe estranha é a padronizada como ‘normal’ desde sempre nos livros didáticos e nos cânones da literatura brasileira.

 

Vagner Souza, poeta linha de frente do Sarau da Brasa, apresenta os percursos de sua leitura: “Mano, em Salvador Negro Rancor, vi um Mandingo bravão, pronto pro revide, no cálculo certeiro de cada pernada. Na elaboração deixou cozinhando e lançou letra afiada. Mas em Muito Como um Rei, já encontrei um Mandingo mais tranquilo, com serenidade de nego véio, menos afobação. Durante quase todo o trampo vai dizendo dos vários tesouros de seu reinado. A cada conto fui diminuindo a velocidade da leitura, pra que o livro demorasse pra acabar.

 

 

 

 

“Rapá, meu irmão era um frangueiro filho da puta. No primeiro jogo, contra os meninos do Estica, o cara tomou um gol em menos de 3 minutos de jogo. Eu espumava. Olhava de canto de olho. Gostava de jogar atrás, na raça, tomando a bola, lançando a bola, nosso time fez um e fez dois. Os meninos do Estica eram muito melhores que a gente. Tinham um, dois anos a mais, numa idade em que isso faz a diferença grande, em que o corpo já começa a ficar forte, mais másculo: Bau, Papa-Capim, Peixe Frito, Nem. Ganhamos o jogo ferrado nesse dois a um, os caras não aceitaram(…) -Essa porra aqui não tem homem – gritou Bau – ninguém aqui tem coragem de sair na mão comigo.

 

A gente se entreolhou, vixe, meu irmão de cabeça baixa, todo mundo olhando pro chão. Eu andava lendo muita revista né, disse: – Eu saio na mão com qualquer um.

 

Seco igual um agdaví, o medo pulsando adrenalina pelo corpo, se fuder, eu tava morrendo de medo, mas tinha lido alguma coisa sobre enfrentar o valentão e ele ficar com medo e dar pra trás. Deu certo, em parte, três deram pra trás, mas Bau ficou”. (trecho de Infanto-Juvenil 1)

 

“Não é como algumas publicações que não nos permitem a viagem. Que dão o bilhete, o hotel, a cama macia, o café da manhã. Cadê o perrengue do desconhecido? Do não revelado? Viajo nas imagens dele, somadas às minhas, que se somam para a grande noite de amor. A literatura é isso. Um encontro. Eu já fui à Bahia ‘N’ vezes. Em várias cidades. E Mandingo fala dessa Bahia que não está nos cartões postais. Uma Bahia muitas vezes, e põe muitas nisso, tão violenta e desigual, mas tão terna, tão nós”.

 

Mandingo oferece uma série de contos intitulados Infanto-juvenis, que atravessam seus dois livros mais recentes. Nesta série que já tem cinco textos, voa uma mirada que encara e defende com humor a própria memória da liberdade e da precariedade, numa recolha às vezes auto-satírica e regada a rasgos de maltrato, com afagos e arranhões também aos leitores que de repente se cortam embalados pela molecagem. Vogam as hierarquias engenhadas, consolidadas ou desafiadas e na descrição das camaradagens de pivete garantidas numa lealdade firmada entre murros, xingos e vexames secretos, florescem as primeiras perebas, que no decorrer da vida passam da epiderme pra dentro do peito. Sobre estes textos “Juvenis”, Silvio Oliveira apresenta sua percepção: “Confesso que tenho o meu próprio jeito de avistar esse ‘juvenil’ nos textos, que são de “gente grande”. Há os tipos, mas há a exigência da vida que se entrosa nos sujeitos e pede linguagem robusta, que não se perde no tempo e, embora cuidadosa, dialoga com as falas das realidades. Mandingo me faz viajar a tipologias muito patentes na cidade dos anos 80 e 90, talvez dos primórdios de 2000. Trata-se de uma leitura que faz sobre a cidade enviesada, inclusive sobre as periferias do Centro da cidade, pois elas existem e até hoje são invisíveis, exceto quando notadas associadas ao crime. Há uma manhã, um modo de falar, de chegar e até de desafiar o outro que só quem experimentou consegue recriar. Refere-se aos becos e às entranhas da cidade, às ruas esquecidas ou aos sujeitos, os mesmos invisíveis, imiscuídos nos grandes cenários.

 

Arrancar unha encravada e cicatriz enquanto se resenha o que veio da maré ou da rua de trás, é o que o adolescente suburbano partilhou antes de se ralar pulando muros ou disputar torneios de futebol de botão, tecendo uma intimidade maloqueira que é seiva de amizades e de uma noção do tempo maior do corpo e do espírito, não do relógio”.

 

Já Vagner Souza problematiza o que sejam os… “Juvenis? Nem sei se os juvenis vão sacar qual é a da letra. Os mulecote estão vivendo as ideias que o Mandingo ta contando. Nóis é que lê e transborda o peito de saudade do futebol na rua, das tretinha com o moleques da rua de baixo, da sensação das primeiras ansiedades amorosas. São os textos do Mandingo em que eu mais viajo, nas várias belezas que ele conta, que me fazem lembrar das belezas vividas por aqui. Várias durezas também, mas hoje rola olhar pra elas com olhar de aprendizado sereno. Me parece que são os textos que ele mais navega, solto mesmo, em mar aberto. E esse balanço também me leva pra viagens distantes gostosas de fazer”.

 

 

 

Salvador Negro Rancor é um óleo de acarajé pronto pra se verter no colo dos desavisados e deslumbrados. É uma obra com esporões, sim, mas ali já se traça uma fresta pras goteiras mais frias, porém ácidas, dos dois próximos livros, que também sabem escarrar e manter suas navalhas ocultas na bola de meia. Os textos juvenis de Mandingo soltam-se de palavras de ordem e não se enrolam na fome por aplausos, a que murcha nos limites vindos do receio em não agradar militantes e em não parecer autenticamente da quebrada. Isso garante aos contos a surpresa e o encanto, mesmo que rasgado. Um texto desvencilhado do óbvio e do previsível, seja no seu estilo ou na condução das tramas: “Ele bota uma prosa pra além do grito fácil que vem na certeza que vai ecoar na torcida. Acho que tem momento que esse grito é necessário, mas o próximo passo também. Daí que Mandingo já chega, com o Salvador Negro Rancor, no passo seguinte. Escritor com letra firme, que anuncia ideia mas deixa a dúvida gostosa de viajar. Vários debates surgem na sombra e não na imagem. Ele fala com propriedade, mas sem querer doutrinar. No seu texto o jogo tá aberto”, completa Vagner Souza.

 

Porém, se nas histórias em que Mandingo traz declarada voz pan-africanista há o valor didático das referências de nomes, lugares e obras importantes da presença e das lutas negras que afloram há séculos da Etiópia ao Harlem e do Rio de Janeiro ao Haiti – referências que são invisíveis e emudecidas pelos medos, deformações e ignorância do apartheid editorial brasileiro – nestas histórias também estão os parágrafos das suas tramas muito esquemáticas, mecânicas sem azeite. Os personagens aqui parecem amarrados pela ideologia do autor, com gestos e diálogos previsíveis, destoando bastante da liberdade nas imagens e da desenvoltura nas narrativas dos meninos que mergulham na Ribeira, das senhoras que sobem o escadão da Liberdade, dos pés rapados da Lapa, dos anciãos na porteira do Quilombo Rio dos Macacos e das bocas que gemem na areia à beira-mar (seja no calor amante entre coxas ou na humilhação da nuca pisada por um coturno)… personagens que ouvimos respirar e que passam o laço em qualquer expectativa furada acesa no faro do leitor. Com suas lógicas, éticas e fundamentos, estes personagens são traduções porosas do ser preto e das artimanhas da necessidade e das ciências do gosto de (sobre)viver. Gente que é labirinto e que sua o cotidiano nas esferas do Segredo, da Teatralidade, do culto à Ancestralidade, do Jogo, da Luta e da busca do bem viver como princípio essencial do passo. Que o autor com desabrido talento contempla e questiona.

 

Nenhuma leitura instrumental vai sequer resvalar na riqueza dessa obra. A fluência e as entrelinhas abertas nas frases, a musculatura da trama que tanto se retesa quanto se relaxa na brisa e na mocambagem dos personagens com suas histórias de encontro e de perda, passam longe de quem quiser bandeira óbvia tremulando nos contos. E as contradições entalhadas pelo autor definhariam nestas abordagens, pois muitos personagens de Mandingo são a própria encruzilhada, esta tão louvada quanto evitada por dentro. Eles flutuam entre a espuma da raiva e os lampejos crescentes de discernimento e ternura. Há o escárnio à politicagem e há a empolgação do vinho, do gol, do motel ou da linguagem. Mandingo incorpora a treta entre o parecer, o assumir e o ser. Na história do pensamento da diáspora africana há o notório embate entre Wole Soyinka (nigeriano, primeiro escritor africano a ganhar o prêmio Nobel) e o movimento Negritude, de Leopold Senghór, Leon Damas e Aimé Cesaire, que quando estudantes de colônias francesas em Paris sentem e anunciam o pulso de sua tez e de suas culturas. Então Soyinka, diante dos manifestos do movimento Negritudedeclara que “o tigre não declara sua tigritude. Ele salta sobre sua presa e a devora”. Mandingo ginga entre estes dois prismas e tanto assume e propaga nos seus títulos e na moldura de seus quadros qual é a do seu arco, como simplesmente é a própria diáspora em sua flecha, no miolo, com seu estilo de compor o que alinha das ruas e do calendário. Na escorrência de suas histórias deslizam a revolta e o engano, a acidez que sorri melancólica ou gloriosa, e aí afloram faces do ser negro num Brasil racista. Lateja e brilha também, feito um grande relâmpago ou uma lamparinazinha trêmula, a Salvador que ainda não desmoronou para a assunção de prédios platinados, a que não tombou de vez em colapso. Mas o fraseado de Mandingo com sua ironia pirilampa e até melancólica não cabe nas correias de leituras que queiram seu texto como comprovação de tese.

 

 

foto Mário Cravo Neto

 

 

Altair Ramos, membro do Grupo de Estudos Literatura e Periferias, da UNEB, considera Mandingo, por seus textos: “um sujeito que debate consigo mesmo o tempo todo, um diálogo interminável numa dialética quase sem fim, percebo em quase todos os textos esta briga mental que envolve conceitos, ideologias e historicidade. Sua literatura é firmada na vivência, na fina percepção e na vontade afirmativa”.

 

“Tirou a roupa e pendurou no cabide de madeira. Abriu o chuveiro. Só o gelo daquela água já era capaz de purificar uma alma. Se enxugou, pegou o balde com o outro banho e mexeu pra sentir subir o cheiro forte de água de alevante e espinheira santa. Jogou no meio da cabeça e deixou a água escorrer lentamente. Bebeu um pouco do banho, lavou todo corpo e vestiu as roupas sem se enxugar”. (trecho do conto Ojuoyin)

 

As músicas, manancial de poesia e política nos ninhos e revides negros, fontes em que se roda junto mas também onde se dedilha e se canta só, estão em versos clássicos de rap que vem como epígrafes ou como ilustrações dentro dos contos de Mandingo. E bailam entre os parágrafos vários versos marotos ou duros das ladainhas angoleiras, do reggae da Rocinha, do ijexá e do afoxé dos blocos afro, dos refrões do rock baiano e dos bregas que ressoam pelos tijolos furados e beirais de janela com o cheiro de feijão na pressão. As letras de música são mapas e recheios pra atmosfera de cada história e perfazem o universo de referências de um vasto leque de escritores das periferias brasis, que prezam tanto as bibliotecas como seus antigos toca-fitas. Marcado o diálogo com o verbo cantado, voga a influência lapidada pela música na métrica e na duração das frases de Mandingo e também no ritmo das narrativas com suas tensões, ondas e picos dramáticos. Mas não é apenas o vocabulário e a musicalidade que tilinta a oralidade na orquestra de Mandingo. Aparece muito o ‘e’, sempre reiniciando uma contação, esse “e” aditivo, tão próprio do causo contado na beira do campo, no banco do ônibus, na cadeira em que se trança o cabelo. O “e” acumulativo da oralidade que nos faz gente pelos ouvidos e pelo colo.

 

Lívia Natália, professora da Universidade Federal da Bahia, utilizou textos de Mandingo num curso de literatura e psicanálise direcionado a pós-graduação. O objetivo do curso era pensar como a literatura equaciona questões emergidas da psicanálise. No caso de Mandingo, pensou-se a literatura como trabalho de luto, sublimando a castração da violência pela via da escrita e da denúncia. Lívia frisa a agilidade da narrativa e “… o modo como as cenas se articulam e têm uma conexão firme com a realidade. O modo irônico e provocativo da escrita também se destaca”. Lívia como autora e como educadora também lamenta a dificuldade de edição e de circulação da obra de Mandingo e de demais autores negros e negras das quebradas brasileiras: “Os livros não circulam tanto, e eu não consegui acesso aos últimos dois. É frustrante”.

 

Diante dos interesses e anestesias do apartheid editorial brasileiro, editoras pequenas e selos com pequena capacidade de circulação, como a Ciclo Contínuo, o Mjiba, a Mazza, o Quilombhoje e a Ogum Toques, ainda são um comichão insistente, frequentemente barrado ou escanteado nas livrarias. Assim, para adquirir os livros de Mandingo, procure o editor Marciano Ventura no email: ciclocontinuo.literatura@gmail.com

 

 

 

 

 

 

*Texto originalmente publicado na edição de agosto de 2015 da revista Caros Amigos

Allan da Rosa

ALLAN DA ROSA é historiador, angoleiro e pedagogo. Criador das Edições Toró. Autor de "Da Cabula" (Teatro), "Vão" (Poesia), entre outros títulos.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.