setembro de 2024

Jess Oliveira

 

 

 

 

Papiloscopia poética da imagem
Dayane Ribeiro
28 de julho de 2021

 

 

 

 

 

 

 

A Tradução se faz antologia negra em AfroDiáspora
a navegar K a l u n g a
Nossas Línguas Afroancestrais enfeitiçam as línguas coloniais
mortíferas para nossas palavras nas traduções predatórias
[…]
Nosso direito fundamental à Tradução da História mapeia a
gramática da escravidão e
mitografa suas zonas de fuga
O nosso direito ancestral às Artes Negras escrevive
o Segredo sem desvelá-lo
Nós…[1]

 

A negridade é uma ameaça aos sentidos
Denise Ferreira da Silva e Rizvana Bradley

 “p
alavrapreta”,[2]

 

Se eu falar dessa maiúscula (isto é, da travessia de Black que se transmuta em Negra, Negro, Negre) como mera exceção ou desafio à regra gramatical dentro da língua inglesa, transportada ao texto traduzido, vou falhar em abarcar seus significados políticos?

 

Se explicar, o faço como tarefa da tradutora, ou manutenção da atmosfera antinegra que insiste em segurar os portões defronte à nossa imaginação?

 

Fato é que eu não gostaria tanto de dissertar acerca do caso da maiúscula (creio que ela já comunica por si), mais do que gostaria de questionar a necessidade de justifica-la.

 

A quem ela incomoda(ria)? E por quê?

 

E se fosse o bastante atestar que a escolha tradutória é guiada pela poética do texto-fonte e se debate nos limites e impossibilidades de línguas, neste caso, europeias?

E seu ressaltar que a tradutora pensa COM o texto, COM a autora, COM a sua tradução?

A necessidade de explicação da aparição capitalizada de determinada palavra já não atesta sobre os efeitos deste texto e desta tradução?

 

Torção na gramática é torção no pensamento.

 

Depois de explicar que “uma razão para grafar Negra, Negro, Negre [na tradução de uma palavra que no con/texto fonte está capitalizada] é que esta,não é uma categoria ‘natural’ [pensando em gramática], mas social, isto é, identidades coletivas – com uma história particular”, seria possível fazer algumas conexões e enxergar que pessoas Negras nascidas no Brasil, e no mundo lusófono, de modo mais geral, são enquadradas, nesta “identidade coletiva” com determinada “história particular”?

 

Informar que pessoas grafam Black com maiúscula para chamar a atenção para o fato do “termo de cor [ser] uma metonímia pobre para o grupo em questão[3].“ seria o bastante?

 

E se eu recontar que W.E.B Du Bois na década de 1920 nos disse que grafar Negro ao invés de negro, pode contribuir para a compreensão de que este é um povo [e não uma cor] específico com cultura particular nos Estados Unidos, que ele inclusive chama de America?

 

E se eu utilizasse uma ferramenta ancestral a partir da qual tatiana nascimento tece aquela metáfora linda[4] pra praticar e teorizar a tradução de textos de autoria Negra lésbica?

 

E se eu desejasse oferecer à leitora um gostinho “diferente”, mas tão conhecido por ela, de Diáspora?

 

E se, após ler as cartas da senhora Ida Van Buren Sharpe, destinadas a equipes editoriais de jornais na década de 1960, que sem nenhum cuidado, usam a língua para massacrar pessoas Negras, eu lhe escrevesse uma Nota [com N maiúscula] em agradecimento pelo seu trabalho de vigília?

 

Por que não grafar Negro/Negra/Negre com N maiúscula? Quais seriam os efeitos de omitir tal gesto político e estético latente nas escritas de autoria Negra além das fronteiras do Brasil?

 

Manter a grafia na tradução de Black ao português brasileiro é o meu modo de cuidado com o texto, é o meu trabalho de vigília.

 

Essa grafia ressoa uma poética e é uma maneira de não usar a tradução como guardiã dos portões do pensamento Negro transnacional. Esta translação de maiúsculas, bem como todo o processo de recriação desta e demais torções gramaticais, ortográficas e semânticas, são possibilidades de conversa com o labor crítico-poético, para além de fronteiras nacionais e linguísticas.

 

Não há, neste emprego-transfiguração, o interesse que tal grafia seja fixa, nem que se torne regra.

 

Principalmente, interessam seus efeitos e possibilidades de conversas em diferentes contextos/espaços/tempos.

 

“ortografia
do
vestígio”

 

E se aqui ela assumisse o papel como atestado de intraduzibilidade, de opacidade, e à leitora se abririam possibilidades: conhecer, pensar, recodificar, criticar, rechaçar, regrafar, recitar, reinventar modos de enxergar e lidar com vestígios, com porquês, com quem nos chamou assim e assado e de como rasusar tais denominações.

 

E se chamássemos B maiúscula / N maiúscula de negridade, de intraduzibilidade, de luz negra?

 

Intraduzibilidade é luz negra, no sentido de que a última “age através daquilo que faz brilhar”[5]

 

E se enxergássemos na N maiúscula radiação ultravioleta recodificando essa matéria intraduzível, liberando sentidos e sensações. Liberando-a.

 

B maiúscula = N maiúscula = marcas, torções presentes e articuladas no texto Negro.

 

Traço, transmutado, transatlântico, transladado, transfigurado pelo trabalho comunitário, transnacional e translinguístico de cuidado num mundo antinegro.

 

E se a N maiúscula já guardasse em si esta Nota/ Prefácio / Ode à Tradução?

 

E se elas pudessem ser a grafia de um arrepio quando escutamos tambores ou o coral daquela Igreja Batista no Tennessee?

 

Afinal, (afro)grafias são epistemologias e desafiar grafias hegemônicas, criando maneiras para falar das coisas difíceis, é o cerne deste livro.

 

A letra N capitalizada em Negra, Negre, Negro nesta tradução é a aparição-transmutação de Black.

 

Atestado de vida (após e apesar das mortes)

É vestígio.

.

 

 

 

Jess Oliveira
Baltimore, junho de 2023

 

 

 

 

 

 

 

  • NOTAS

[1] Nós. Para ler em Voz Alta às vezes em silêncio-Segrado. In: Traduzindo no Atlântico Negro: Dinâmicas Exusíacas em Rotas de Fuga e Performances de ReLigação AfroANCESTRAL. Vol. II. Denise Carrascosa, Feibriss Casilhas, Félix Ayoh’Omidire, Raquel de Souza, Tiganá Santana (Orgs.). Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2023.

[2] tatiana nascimento. palavra preta. 1.ed. Salvador: Organismo, 2021.

[3] Ver “The Case for Capitalizing the B in Black”, por Kwame Anthony Appiah. Disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/06/time-to-capitalize-blackand-white/613159/

[4] tatiana nascimento. Letramento e tradução no espelho de Oxum: teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos. 2014. 185f Tese (Doutorado em Estudos da Tradução). UFSC, Santa Catarina. 2014.

[5] FERREIRA DA SILVA, Denise. Em estado bruto. Trad.  Janaína Nagata Otoch. In: ARS (São Paulo), 17(36), 45 – 56. 2019. Disponível em:  https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2019.158811

 

 

 

 

 

 

 

Jess Oliveira

Jess Oliveira é Doutora em Literatura e Cultura (UFBA), Mestra em Estudos da Tradução (UFSC) e Bacharela em Letras (USP).

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.