março de 2017
O EU LÍRICO, A FARSA E A DESCONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM NA OBRA DE CUTI
Sidney Santiago Kuanza
colaboradores entrevista Abelardo Rodrigues e Marciano Ventura
texto Nabor Jr.
fotos MANDELACREW
De fisionomia séria, semblante sereno, corpo esguio, passadas largas e andar gingado, Cuti caminha conosco pelos corredores do edifício da Biblioteca Mário de Andrade, no centro histórico de São Paulo, em uma típica manhã de verão no hemisfério sul. Próximo de completar 40 anos de uma intensa e bem sucedida vida literária – seu primeiro livro Poemas da Carapinha foi publicado em 1978 – o escritor leva consigo nas costas uma mochila cor azul-marinho. No bolso da camisa de mangas curtas, quatro canetas sacolejam pra lá e pra cá ao passo que atingimos a área de convivência externa do imponente prédio, considerado um dos marcos do estilo art déco na cidade.
Aos 64 anos, Luiz Silva, conhecido pelo pseudônimo Cuti, tem no currículo 20 livros autorais (além de textos publicados em várias antologias no Brasil e no exterior), dentre os quais se encontram os dois mais recentes Negrhúmus Líricos (poemas) e Tenho Medo de Monólogo (coautoria com Vera Lopes) / Uma Farsa de Dois Gumes. Sendo os dois últimos textos peças de teatro negro-brasileiro reunidos em um único volume, ambos publicados em 2017 pela Ciclo Contínuo Editorial.
Nesta entrevista, o doutor em literatura brasileira, o escritor, o militante, o pai, o intelectual, o dramaturgo e, finalmente, o homem com suas inquietações e fragilidades se revelam por de trás do conhecido pseudônimo, discutindo com amigos de vida e labuta temas que vão desde literatura, teatro e política até assuntos como as armadilhas do processo coletivo de construção de textos dramatúrgicos, racismo, Lima Barreto, negros e brancos em cena, metáforas, poéticas e outras problemáticas.
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SIDNEY SANTIAGO: Nestas suas mais de três décadas de produção literária, com destaque especial a sua produção de textos dramatúrgicos para teatro negro, você viu muitas vezes a multidão em cena, como também produziu dramaturgias para a interpretação coletiva. Mas você já escreveu monólogos também e, agora, em 2017, com a publicação de Tenho Medo de Monólogo, retoma o formato. Como surgiu a provocação para a feitura desta obra?
CUTI: A provocação surgiu da seguinte maneira, Vera Lopes e eu temos uma amizade bastante longa e faz tempo eu pretendia escrever um texto especialmente para ela. Então, num certo dia, telefonei para a Vera dizendo que finalmente escreveria o texto, mas que seria um monólogo. E ela me respondeu: “Cuti, eu tenho um medo de monólogo”. E eu respondi: “bom, o título nós já temos (sic)”.
E porque a minha insistência em voltar ao monólogo? Creio que é uma preocupação de sairmos do coletivo. Nós, negros, por uma insistência da produção sociológica somos vistos apenas como coletivo. E a maioria das peças produzidas pelos grupos tem este apelo a um grande número de atores no palco. E com isso, como resultado, nós continuamos enfatizando essa ideia que não somos singulares, que nós não somos indivíduos. E os atores, por sua vez, ficam com muita pouca possibilidade de mostrar o seu talento. Em geral (os espetáculos encenados por um grupo) são peças onde cada ator faz um pedacinho, tem uma fala muito curta e são representações cênicas muito reduzidas em termos da participação de cada um. A minha preocupação foi possibilitar que a atriz negra tenha a possibilidade de realmente ter diante de si o desafio de um texto longo onde possa realmente demonstrar o seu talento.
SS: Como se deu este desafio de escrever a quatro mãos, no caso, em parceria com a escritora Vera Lopes. E como foi mediar essa subjetividade da mulher negra, sendo você um homem e tendo como parceira de escrita uma mulher. E mais, como se deu esta comunicação entre sul, sudeste e nordeste, regiões por onde vocês circularam durante a feitura da obra?
CUTI: Foi um grande aprendizado. Uma vez que na feitura do texto propriamente dito, me vi diante de duas mulheres: a Vera e a personagem (Ana Cruz), que também é uma mulher. O aprendizado para mim foi muito grande também pelo fato que eu não estava diante de seres catequisados pelo machismo, muito pelo contrário. Tanto a Vera como a personagem são mulheres de um novo tempo, da atualidade. São mulheres com consciência crítica perante o machismo muito aguçado. Então as oficinas que nós fizemos deram para mim um desgaste bastante grande. Tanto é que nós demoramos aí quase um ano entre essas oficinas e aos nossas brigas e desavenças. Mas felizmente, tendo em vista nossa amizade bastante antiga, Vera e eu temos um trato: nós podemos brigar, mas não podemos ficar de mal. Então isso garantiu que o trabalho fosse feito.
Agora, com relação ao trânsito entre as regiões sul, sudeste e nordeste. Na realidade está foi mais uma questão de termos muitos amigos em todos estes espaços. A Vera é do sul, onde temos muitos amigos em comum, e ela está em Salvador, onde também temos muitos amigos em comum. E este acolhimento de amigos e parceiros facilitou, e continua facilitando, muito o nosso trabalho. Creio ainda que estes ambientes também possibilitaram uma configuração de uma personagem que incorporasse noções de feminilidade destes três espaços: sul, sudeste e nordeste.
SS: Ainda sobre Tenho Medo de Monólogo, como foi trabalhar todos estes dramas, que não são novos, mas que são dramas nossos. São dramas de mulheres negras como a questão do encarceramento, da violência doméstica, do medo do ensino superior, não apenas na entrada na universidade, mas da possibilidade de não conclusão, enfim. Como foi orquestrar estes dramas e lá no final você ter a superação, não ter um lugar óbvio? Gostaria que falasse também da questão afetiva, já que ficou brilhante o modo como foi construída e como é desvelada a personagem.
CUTI: Orquestrar dramas diversos é algo que exige muita sensibilidade e muita composição. Pressentiu a nossa concepção a noção que o indivíduo é um todo, e que o indivíduo é complexo. A gente já vem discutindo nos encontros de teatro negro essa questão da humanidade da personagem negra. Ora, quando falamos de humanidade estamos falando também de complexidade. Nenhuma pessoa é tábula rasa, as pessoas são complexas. E nessa complexidade os dramas se cruzam. Portando, quando começamos as primeiras oficinas, que foram em Salvador, começamos a nos deparar com o processo da elaboração de Ana Cruz. Evidentemente que em um dado momento nós percebemos que a personagem começou a reagir a nossa manipulação, buscando nela mesma a sua coerência. Então a personagem se tornou realmente um terceiro elemento de produção do texto. Muitas das coisas que queríamos acrescentar a própria personagem recusou. Isso por conta de buscar a sua coerência e a sua complexidade singular. Então ao final da peça percebemos que Ana Cruz ganhou a sua independência no momento em que ela não é uma personagem óbvia, e que ela resistiu à tentativa dos seus criadores de manipularem os seus sentimentos, a sua perspectiva de vida, e também a sua noção de presente, passado e futuro. Ele é realmente uma personagem complexa e, portanto, se concebe inacabada.
SS: Fale mais especificamente sobre a construção da personagem Ana Cruz e do processo da peça? Como foi essa troca com a Vera? Quais foram os materiais utilizados?
CUTI: Já é a segunda vez que eu entro neste processo. A primeira foi em Terramara (1988) quando trabalhei com Arnaldo Xavier e Miriam Alves, ou seja, a construção de um texto envolvendo três pessoas. Mas lá, não era um monólogo. Com relação à Tenho Medo de Monólogo, trabalhamos em dois e constituímos essa terceira entidade que passou também a interferir no seu próprio processo de criação. As oficinas, do ponto de vista mais objetivo, se constituíram em encontros presenciais e em encontros à distância, nos quais eu formulava questões para a Vera, ou melhor, para Ana Cruz, e Ana Cruz, através de Vera, respondia a essas questões. E assim a personagem foi sendo constituída. E depois de uma grande briga que tivemos, Vera e eu ficamos um tempo afastados, e neste tempo fui buscar soluções para as complexidades que o texto havia nos colocado. Depois, em Porto Alegre, fizemos a última oficina, realizada no salão de um prédio que uma amiga e nós ficamos lá reelaborando várias partes no texto. Neste momento Ana Cruz já estava muito madura para dizer: “isso eu quero e isso eu não quero para a minha vida”.
Então foi mais ou menos este o processo. Evidentemente que quando passamos a fazer as leituras, várias partes dos textos foram modificadas porque a leitura também previa adequações de linguagem que Vera ia descobrindo no decorrer das apresentações.
SS: Tem um trecho de Tenho Medo de Monólogo, localizado na página 34 do livro, que eu acho um trecho lindo por trazer a questão da maternidade de uma forma diferente, especialmente quando pensamos a mulher negra na dramaturgia nacional e a mulher negra como mãe. Tanto na produção audiovisual como na produção teatral a gente não se toca, ou se toca muito pouco. Isso faz parte do processo de desumanização. Como foi chegar neste tema?
CUTI: Este é um tema (a desumanização) bastante caro para nós, porque a produção cultural brasileira nega a nossa solidariedade, que é o ponto mais forte que temos enquanto comunidade. Que é sermos por nós mesmos. Neste caso que você citou, temos um casal de negros que adota crianças negras. Creio que a importância disso vem da nossa experiência, minha e de Vera, uma experiência de militância. A experiência da militância toca neste ponto fundamental: nós negros temos que ser solidários entre nós. Há uma preocupação de algumas pessoas de que a nossa solidariedade venha constituir um racismo às avessas, por isso muitas pessoas são contrárias à montagem de grupos negros, a montagem de entidades negras, a montagem de associações negras, ao fortalecimento das associações culturais e religiosas… Creio que este é um ponto muito sensível no texto, talvez retratando essa experiência e essa preocupação nossa com a solidariedade, uma preocupação que a gente trás de exemplos das nossas próprias famílias. Então quando me preocupo, tanto no teatro, como no conto e na poesia, de que nós precisamos falar e promover a nossa humanidade, estou dizendo exatamente isso: a nossa humanidade se constitui também, e principalmente, de solidariedade entre nós, de acolhimento entre nós. Então este tema da adoção de um casal negro para com crianças negras toca neste ponto, um ponto bastante sensível para a gente desenvolver.
SS: A dramaturgia de Tenho Medo de Monólogo é dívida em quadros. E no quadro 6 temos exposto a ruptura de mais um de nossos dramas que é o genocídio, a ausência do corpo, quando o elemento trágico se apresenta. Qual a função dramatúrgica ali, naquele momento?
CUTI: A função dramatúrgica neste momento do texto é possibilitar uma reflexão e, possibilitar também, uma catarse. Nós temos medo de morrer assassinados, isso é uma verdade. Nós temos medo de ser presos injustamente, e isto também é uma verdade que está posta neste drama e tragédia de tanta violência que nos atinge no Brasil desde que para cá nossos ancestrais vieram. E também possibilitar a seguinte reflexão: como é que a gente consegue, agindo por nós mesmos, contribuir para a superação disso? Parece-me que Ana Cruz assume uma postura desesperada, mas ela vai contar com outra estratégia do seu grupo, que é a estratégia mais ousada da sobrevivência.
SS: Qual foi o impacto do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff na criação de Uma Farsa de Dois Gumes?
CUTI: Este texto tem mais de 20 anos, portanto ele é anterior a tudo o que a gente tem visto no Brasil nos últimos anos. Ele surge lá pelo período do governo Bush, e surge como um extravasamento, tendo em vista que houve um momento onde disse para mim mesmo: essa sociedade brasileira é muito hipócrita e estou de saco cheio dessa hipocrisia e vou escrever alguma coisa que consiga pelo menos esvaziar estas minhas inquietações. E aí a farsa se fez assim, como um processo mesmo de despejo, de vômito intelectual. Evidentemente que a partir do momento que o texto estava concebido, escrito, ele passou por inúmeras modificações, até o momento mesmo da edição do texto eu estava modificando, tentando colocar novos elementos.
SS: Tem uma questão que é o vozerio, a multidão, muitos personagens em cena, e por outro lado há uma dificuldade, especialmente que o século 20 enfrentou, que é como colocar o branco na cena. E aqui, tendo uma farsa, você tem possibilidades. Porque você pode trazer elementos do risível, do grotesco, e você o trás. Tendo esta informação que eu não tinha, do texto ter sido produzido nos anos 90, qual o impacto você acha que teria a montagem deste texto hoje?
CUTI: Seria um impacto interessante pois, no meu entender, esta é uma farsa do gênero farsa, ou seja, ela se contrapõe até mesmo ao próprio gênero. Creio que os elementos que ela trás são elementos perenes a sociedade brasileira. E por ser de dois gumes, ela pega, como é próprio da farsa, todo mundo. Não deixa ninguém incólume. Ela poderá levar a um processo de conscientização do quão grotesco é, por exemplo, o modo de se fazer política, e como grotesca é à maneira dos grupos sociais no Brasil se relacionarem. Creio que esta farsa tem um potencial crítico neste sentido. E acho que até mesmo os processos de tentativa de superação das dificuldades por meio dos movimentos sociais, acho que até isso passa por um processo de reflexão, já que nós não podemos ser ingênuos com uma elite extremamente cruel e vaidosa que nós temos no Brasil.
SS: Há uma cena presente no primeiro ato de Uma Farsa de Dois Gumes em que um personagem se dirige ao outro e diz: “O movimento negro está recrutando, vai lá tentar alguma coisa”. Você acha que atualmente os nossos militantes estão se vendendo muito fácil? Como você vê essa relação entre visibilidade e mercado nos dias de hoje?
CUTI: Nós temos um problema sério quanto a isso. As oportunidades são poucas. O racismo reserva para nós as migalhas do poder, e muitas pessoas se conformam com essas migalhas. Ou seja, há um lugar de oportunidades muito restrito. O processo de cooptação é um processo previsível. Nós vimos no decorrer no movimento negro, desde a década de 70 até hoje, o deslocamento de vários militantes para comporem instâncias dos governos. Essa composição foi importante porque trouxe alguns benefícios, mas por outro lado tirou a energia do movimento negro, e tirou também a sua independência. Felizmente a produção cultural não se curvou tanto ao poder instituído. Tanto é que nós temos hoje o fenômeno de cada vez mais pessoas negras escrevendo e produzindo. O fenômeno dos saraus, por exemplo, é um fenômeno muito importante, um fenômeno praticamente recente que está mostrando que há uma rebeldia em termos de processo de criação. Mas mesmo aí, o processo de cooptação intelectual está sempre atuando no sentido de: “olha, torne o seu discurso mais palatável que nós podemos fornecer uma migalha um pouco mais substanciosa”. Então essa relação entre ceder as migalhas e vender o seu processo de consciência é uma relação que vai existir sempre e que nós, os produtores e criadores, temos que estar muito atentos a ela porque o sistema instituído no Brasil sabe, tem a consciência de que no momento em que a população negra, em sua maioria, se conscientizar como negra, nós vamos virar o jogo. E eles sabem que conter as ideias e a ousadia no sentido de pensar o Brasil por outras referências é um perigo. Então nós temos que estar atentos, sabendo gingar e fazer a melhor capoeira intelectual que nós pudermos.
SS: A gente vive hoje no Brasil um momento muito nebuloso que envolve a dificuldade do entendimento da metáfora. Tudo precisa ser muito literal. Quando você estabelece descrições como: Dois Escravhirários Armados, Negro Preto Cor da Noite, Jovem Negro, que são as descrições dos personagens do texto, você acha que alguém que tem 20 anos hoje poderia se relacionar com este texto? E de que forma?
CUTI: Nós temos aí um problema sério, já que para os criadores de arte há uma questão que é posta de que nós, para atingirmos o nosso público, sobretudo o público negro, temos que fazer concessões de linguagem. Ou seja, temos que olhar com certo paternalismo para o nosso próprio povo para que ele consiga digerir aquilo que estamos transmitindo. O paternalismo serve para nos alienar de nós mesmos. Evidentemente que o nosso povo necessita de ter incentivo para transformar. E qual é o incentivo para transformar? É exatamente mexer na linguagem como ela está instituída. Então se a linguagem é um elemento utilizado e empregado para nos manter escravos, nós temos que mexer na linguagem. Nosso processo deve também ter como plataforma de ação destruir, desmontar a linguagem do nosso próprio povo, daí a importância da metáfora. Nós temos que ter ousadia de arriscar o não entendimento para desconstruir a linguagem como ela foi imposta pra nossa gente. Porque se nós não mexermos na linguagem tudo vai ficar como está, porque é através da linguagem que as ideias são vinculadas, que as concepções de mundo são impostas. Então creio que sim, temos que utilizar a metáfora neste sentido a levar o público negro a repensar-se a partir desta desconfiança da linguagem que lhe foi imposta para usar no dia a dia.
ABELARDO RODRIGUES: Como foi a construção de Negrhumus Líricos?
CUTI: A construção de Negrhúmus Líricos seguiu mais ou menos o padrão do meu livro anterior, que foi Kizomba de Vento em Nuvem (2013), até mesma a divisão em três partes é semelhante. Porém, existe em Negrhúmus um propósito um pouco diferente que é colocar lenha numa fogueira que, espero, sirva para iluminar não só os caminhos que a comunidade negra segue no Brasil, mas também as pessoas de uma maneira geral em termos das suas relações não apenas inter-raciais, amorosas, mas também a sua relação com o próprio cosmo. Acho que nós, hoje, temos que captar um pouco mais essa noção de onde estamos realmente e retomar, e popularizar, os grandes questionamentos da existência humana. Acho que Negrhúmus Líricos tem essa ambição.
“O fenômeno dos saraus, por exemplo, é um fenômeno muito importante, um fenômeno praticamente recente que está mostrando que há uma rebeldia em termos de processo de criação. Mas mesmo aí, o processo de cooptação intelectual está sempre atuando no sentido de: ‘olha, torne o seu discurso mais palatável que nós podemos fornecer uma migalha um pouco mais substanciosa’. Então essa relação entre ceder as migalhas e vender o seu processo de consciência é uma relação que vai existir sempre e que nós, os produtores e criadores, temos que estar muito atentos a ela porque o sistema instituído no Brasil sabe, tem a consciência de que no momento em que a população negra, em sua maioria, se conscientizar como negra, nós vamos virar o jogo”.
AR: Em Negrhúmus Líricos por vezes você navega por questões como o planeta, o cosmos, a natureza e a sua não religiosidade. Você descarta a possibilidade desta fé messiânica de um deus que vai salvar a humanidade, ou salvar alguém dos caminhos e descaminhos do mundo. Você poderia falar sobre a presença destes temas no livro? E mais, os três compartimentos de Negrhúmus se interligam entre temas líricos, amorosos e temas sobre o fazer poético. Em você esta é uma questão que está sempre te cutucando, pois também estão presentes em outros livros seus. Como você avalia essa sua inquietação no fazer poético, com seus metapoemas?
CUTI: As minhas inquietações são múltiplas. Mas retomando um pouco a questão da visão de mundo e a críticas as crenças, creio que um dos grandes problemas da humanidade são as crenças. As crenças nos levam a negar não apenas a razão, mas negar algo fundamental que é a consciência dos limites da nossa percepção. Ou seja, nós vivemos diante e fazemos parte, isso é importante dizer, de um cosmos. E, no entanto, as crenças nos fazem negar essa circunstância existencial o tempo todo. Porque as crenças estão baseadas em certezas, e nós sabemos que o conhecimento humano só pode progredir, só pode se adensar, se ele se basear na dúvida. Onde há certeza não há possiblidade de um conhecimento que se amplie, e a nossa vida acaba sendo muito restrita se nós fazemos dela um conjunto de certezas.
Com relação mais propriamente ao fazer poético, as minhas inquietações também estão aí. As formas que utilizo não são formas que eu tenho certeza que funcionem. Elas não são para sempre. Elas estão aí como algo do qual lancei mão para tentar transmitir algo que me inquieta. Mas elas não são fixas. Elas não podem ser fixas. Por isso que essas três partes em que está dividido o livro se comunicam.
Já o processo metalinguístico de pensar o fazer poético para mim é constante. Porque se o poeta não se questiona, se o poeta não faz uma autorreflexão do seu próprio fazer poético, ele tende a se petrificar. Ele tende a não avançar nas necessárias ousadias para se atingir outras dimensões artísticas. Então, por exemplo, quando em meio a um poema mais ligado a relação afetiva aparece uma reflexão sobre o fazer poético, e vice-versa, você está tendo aí exatamente esse jogo de inquietações, esse jogo de perguntas e respostas, porque acho que a arte de uma maneira geral deve não só se aventurar a responder, mas acho que a arte deve, sobretudo, se aventurar a gerar questões, para que as pessoas saiam do marasmo das certezas e passem a olhar em volta e perceber como nós precisamos desconfiar de todo discurso linear, de todo discurso padrão, de todo discurso que tenta nos mostrar um mundo como algo feito e acabado.
AR: Como você vê a sua evolução desde Poemas da Carapinha (1978), passando por muitos outros livros de poesia, até hoje, com Negrhúmus Líricos?
CUTI: Quando nós falamos em evolução, não acho que a minha perspectiva seja de evoluir no sentido de chegar a um ápice, ou chegar a aquilo que as pessoas imaginam como maturidade. Acho que esta é uma busca constante, e nesta busca constante desde o Poemas da Carapinha o fundamental para mim, enquanto poeta negro que assume uma escrita que se quer negra é o conjunto de influências que tive e tenho. Felizmente tive, e tenho, a felicidade de me favorecer de uma vida literária. Sem os mais velhos eu não poderia ter a poesia que tenho hoje. Essa poesia está ligada a uma tradição no Brasil que vem desde Luiz Gama até os jovens que fazem poesia hoje, como um Akins Kinte, como um Allan da Rosa. Se eu não tivesse esse conjunto de pessoas, se eu não tivesse tido a felicidade de conhecer um Oswaldo de Camargo, um Carlos Assumpção, um Abelardo Rodrigues, um Colina, se não tivesse tido a possibilidade de constituir com estes parceiros um Quilombhoje, ao qual depois se agregaram tantos outros, se não tivesse tido a possibilidade conviver com Arnaldo Xavier, Miriam Alves, com os mais novos, se não tivesse tido a felicidade de conhecer, e conviver, com uma Conceição Evaristo, um Márcio Barbosa, uma Esmeralda Ribeiro, enfim. Se não tivesse este conjunto de pessoas no meu entorno certamente a minha poesia não seria o que é. Porque é deste conjunto, deste grande número de parceiros como Oliveira Silveira, Éle Semog, Jose Carlos Limeira, é deste conjunto que esta poesia se faz. E ela se faz numa perspectiva de que posso dizer o que quero, por que eu não sinto que a solidão possa me esterilizar, que a solidão possa me amedrontar no sentido do que tenho para dizer. Então, ao invés de pensar em uma evolução, penso sim numa expansão. Acho que a minha poesia, desde 1978, se expande, ganha novas dimensões a cada vivência, a cada contato, a cada leitura dos meus parceiros. Sem contar também com a influência literária de escritores negros do mundo inteiro, e também escritores brancos com os quais aprendo novos processos e aprendo também a deixar processos que eu tenha utilizado na minha trajetória.
AR: Você falou de solidão, mas também falou de não ser um escritor só. E depois de todos estes nomes que você citou entre amigos, parceiros e inspirações, podemos dizer então que já existe uma literatura negro-brasileira hoje?
CUTI: Evidentemente que sim. A literatura negro-brasileira existe desde que a autora negra, ou o autor negro, se pronunciou no seu texto como tal. Não é dado de biografia, é dado textual. Porque não adianta nada o escritor ser negro, ter a pele escura, mas se ele não diz nada da sua vivência enquanto negro no seu texto. Então é preciso que o texto se diga negro-brasileiro. Se o texto se disser negro-brasileiro, como muitos textos se dizem negros-brasileiros, então, sim, nós temos esta vertente dentro da literatura brasileira. O que não implica aí nenhum juízo de valor. É apenas a constatação de que há diferenciais textuais, de que há elementos de composição que são diferenciados, e que são diferenciados exatamente porque a eles existe como base uma subjetividade negro-brasileira, e dessa subjetividade que implica em vivências seculares de um segmento populacional brasileiro é que este texto surge, quando o escritor se permite. Porque muitos não se permitem e vão viver o seu processo criativo a partir de uma autocensura que contemple o racismo brasileiro em todas as suas dimensões.
“Sem os mais velhos eu não poderia ter a poesia que tenho hoje. Essa poesia está ligada a uma tradição no Brasil que vem desde Luiz Gama até os jovens que fazem poesia hoje, como um Akins Kinte, como um Allan da Rosa. Se eu não tivesse esse conjunto de pessoas, se eu não tivesse tido a felicidade de conhecer um Oswaldo de Camargo, um Carlos Assumpção, um Abelardo Rodrigues, um Colina, se não tivesse tido a possibilidade de constituir com estes parceiros um Quilombhoje, ao qual depois se agregaram tantos outros, se não tivesse tido a possibilidade conviver com Arnaldo Xavier, Miriam Alves, com os mais novos, se não tivesse tido a felicidade de conhecer, e conviver, com uma Conceição Evaristo, um Márcio Barbosa, uma Esmeralda Ribeiro, enfim. Se não tivesse este conjunto de pessoas no meu entorno certamente a minha poesia não seria o que é”.
AR: Você questiona este autor negro que se desliza para fora da cor da pele dele, fora daquele eu subjetivo que ele deveria ter por ser negro. Que ele camufla, esconde, dilui em poemas mansos. Essa questão do eu poético começa, me parece, com Luiz Gama, onde já existe um eu poético que se diz negro. Então te pergunto: poderia existir naqueles outros mestiços antes de Luiz Gama, durante o sistema escravagista o eu poético? Digo isso porque não existia o ser negro, não existia o negro. Seria possível que aqueles mestiços pudessem dizer: “eu negro, eu sou negro”, diante naquela situação jurídica em que se encontravam, em que o homem negro nem homem era. Onde é que surge este eu negro que você diz?
CUTI: Na poesia especificamente creio que ela surge com Luiz Gama. Se o indivíduo é mestiço ou não – e Luiz Gama era mestiço – um mestiço biológico porque o pai era branco e a mãe negra. Isso não impediu Luiz Gama de se dizer negro. Este se dizer negro é uma opção. É um enfrentamento. Nós sabemos muito bem que este enfrentamento, inclusive nos dias de hoje é um enfrentamento problemático, sobretudo para os mestiços. Porque os mestiços se encontram no meio. Então, quando o indivíduo imagina que a identidade, a subjetividade negra, advém da biologia, ele está extremamente enganado. Ser negro não é uma questão de dosagem, de melanina na pele. Ser negro, assumir-se como negro, é uma ação política, é uma opção política. Porque o mestiço que é consciente, que conhece, que pensa, que reflete sobre o racismo, ele sabe muito bem que ele pode optar em se omitir ou em se assumir. Mas que os traços que ele trás, em determinadas circunstâncias, vão ser interpretados como traços negros, e não como em traços mestiços. Esta é uma questão séria. Em geral o que ocorre é que como o discurso racista é um discurso hegemônico, ele coloca para os criadores de arte a opção de se omitir para ser melhor aceito. E muita gente embarca nisso. Então, se o mestiço de ontem, de hoje e de sempre, embarca no discurso dominante racista, o que ele vai fazer é o seguinte: “como tenho pouco teor de melanina na pele e poucos traços físicos negros, vou me omitir como negro para conseguir as vantagens que o discurso dominante me promete”. Daí que muitos escritores mestiços até tem certa ojeriza da produção negro-brasileira. Porque essa produção cobra dele essa desilusão com relação ao discurso dominante. Ou seja, quem produz literatura negra-brasileira hoje está dizendo para a pessoas do seu tempo, e em especial para os escritores, inclusive para os brancos que: há uma subjetividade negra da qual você foge! E esta fuga se reflete no seu texto. Portanto é preciso se pensar essa questão com muito carinho. Porque produzir arte é antes de tudo ter ousadia de ir além do que o discurso dominante nos impõe.
AR: A princípio a sua poesia, a arte que você faz, é uma poesia armada, uma lança, um raio laser, um míssil disparado em diversos alvos. Como é que fica este eu poético que está sempre armado, que não para, que nunca descansa? E isso me faz lembrar de um poema da Miriam Alves, onde ela diz que as vezes temos que parar de lutar e ouvir. E eu diria ouvir-se. Em Negrhúmus Líricos há este ouvir-se do eu poético onde a sua solidão de ser humano, de pessoa, que já não é aquela solidão literária, se revela. Um eu poético que se perde, que está distante deste discurso organizado e procura se achar, isso pode ser observado, por exemplo, no poema Re(u)lato, onde o poeta se revela na sua fragilidade de ser humano. Como você vê estes poemas em que o eu poético mais se revela, mais se mostra para o leitor?
CUTI: Creio que um poeta não se revela apenas quando ele mostra a sua fragilidade. Mesmo porque, nenhum ser humano é composto só de fragilidade. Entretanto a fragilidade faz parte da condição humana. Agora, do ponto de vista da literatura propriamente dita há de se pensar a influência do romantismo em todas as correntes literárias posteriores. E nós temos outro componente de fragilidade mais especifico da população negra que é o banzo, ou seja, a renúncia de viver com a esperança de que pelo processo do suicídio se chega ao alívio. Isso pressupõe uma concepção de vida pós-morte. E está é uma concepção da qual eu não partilho. Portanto, se eu não partilho da concepção de vida pós-morte, certamente resisto a esta ideia de banzo. Ou seja, de autoflagelo no sentido de se chegar a uma dissolução do eu.
Tomando em conta isto que é específico, que é a noção de banzo, que vai se organizar com a influência portuguesa da saudade, e vai fazer com que a saudade para o intelectual brasileiro se torne algo muito forte. O que nós vamos ter na literatura brasileira de uma maneira geral é sempre uma tendência do poeta para buscar do leitor a comiseração. Ou seja, o poeta apresenta seus queixumes no intento de conseguir um consolo do leitor, ou um consolo da escrita. Creio que isto, levado ao exagero, fragiliza a literatura brasileira de uma maneira geral.
Quando o poema de Negrhúmus e de outros livros meus mostra o lado frágil do ser humano em relação a sua condição existencial, mesmo aí há um eu lírico que resiste a esta busca de comiseração. Exatamente porque não partilho desta visão de mundo de que é preciso morrer aqui, de que é preciso sofrer aqui para se chegar a uma vida eterna e ter então o beneplácito de um deus branco, senhor de tudo.
(…) produzir arte é antes de tudo ter ousadia de ir além do que o discurso dominante nos impõe.
AR: Fale sobre essa poesia negra que você faz. Ela está também inserida dentro desta literatura brasileira?
CUTI: Sempre procuro enfatizar que nós, escritores negros, no Brasil, fazemos literatura brasileira dentro da vertente negra, que eu chamo de negro-brasileira. Não é possível imaginarmos que fazemos apenas literatura negra. Não! Ela tem a raiz neste Brasil. A história, a subjetividade é gerada aqui. Nós somos Brasil. Nós somos brasileiros enraizados, nossa família é daqui, nossos avôs estão enterrados aqui, nós temos ancestralidade aqui. Digo isso exatamente para que a gente não caia em uma fantasia africana de se imaginar afro qualquer coisa. Nós somos negros brasileiros, e é nisso que se fundamenta a minha literatura.
MARCIANO VENTURA: Você se vê como um autor engajado? E o que é ser um autor engajado neste contexto da literatura?
CUTI: A palavra engajado é uma palavra perigosa do ponto de vista de você classificar alguém. E por quê? Porque há uma crítica brasileira que considera o engajado o não elaborado, um autor menor por princípio. Então é preciso que a gente reflita o que venha a ser um engajamento. A palavra engajamento significa que alguém tem um apego e uma dedicação a uma determinada área da atividade critica. Tomando isso como princípio, nós começamos a deixar de lado este pré-conceito contra o que é engajado. Por outro lado, é preciso dizer o seguinte, todo artista deve estar engajado, antes de tudo, na sua arte. Estar engajado na sua arte significa aquilo que Lima Barreto dizia sobre ter largado tudo pela literatura. Este é um aspecto importante que diz respeito ao meu trabalho. Eu deixei, e deixo de fazer muitas coisas, de me dedicar a muitas outras coisas, para me dedicar a literatura. Então isto é um engajamento. Como autor que se engaja numa vertente crítica, sou um autor negro-brasileiro. Porque eu não quis, e não quero, lançar fora a minha subjetividade humana, que pressupõe as experiências que tenho como ser humano. Desde criança até hoje eu passo por experiências que são experiências fortes, experiências difíceis muitas vezes, muitas vezes experiências prazerosas que tem haver necessariamente com o fato de eu ser um homem negro. Se eu não tivesse este dado em minha existência isso não aconteceria. Por ser negro é que tive e tenho muitos prazeres e também tenho e tive muitos desgostos, porque vivo em um país racista e pertenço a uma linhagem cultural que tem como um índice de resistência elementos de profunda descontração. Por ser negro e estar inserido numa tradição cultural, num contexto de pais, é que a minha literatura é uma literatura engajada. E engajada neste sentido que dá um piparote (sic) neste critica preconceituosa que toma a palavra engajado a partir dos seus preconceitos estéticos.
MV: Atualmente tenho notado uma tendência nos grupos de teatro negro no Brasil de trabalhar com um processo coletivo de produção de textos para os seus espetáculos. O que torna a experiência do grupo bastante rica, mas por outro lado desloca o escritor de peças de teatro deste contexto que é a dramaturgia brasileira. Como é ser um escritor de teatro negro dentro deste contexto?
CUTI: O dramaturgo hoje é aquele que trabalha junto com a companhia. Ele não se limita apenas a escrever o texto, mas ele também tem como função ser alguém que também ajusta o texto, alguém que traduz o texto, adapta o texto. Enfim, dramaturgo hoje é isso. Eu sou um escritor de peças de teatro, um dramaturgo neste sentido, pois escrevo peças de teatro. E desde o princípio da minha produção literária percebo uma grande dificuldade de chegar ao objetivo final que é a montagem do texto. Montar um texto pressupõe uma produção que muitas vezes tem um custo elevado. Portanto, ao perceber isso, quis garantir que os meus textos não se perdessem, que eles pudessem ficar registrados e publicados no sentido de esperar momentos em que alguém se interessasse por eles. Daí a minha preocupação em publicá-los mesmo que eles não tenham sido montados. Com isso consigo uma comunicação com novas gerações e também consigo superar a rejeição que o dramaturgo tradicional passou a ter no teatro de forma geral. E digo rejeição por conta que houve um momento no teatro que os atores e diretos resolveram tomar o lugar daquele que produz o texto e fazer obras coletivas. Bem, este é um momento do teatro, um momento em que os atores resolvem entrar em uma seara de criação que não lhes é própria. Nós tivemos, e temos, produções excelentes, mas no meu modo de entender, a maior parte das produções trazem a figuração de verdadeiras colchas de retalho. Pois quando várias pessoas criam, o que fica faltando, o que fica muito difícil de realizar é o fio condutor. Evidentemente que muitos dramaturgos, na visão contemporânea, estão ali para fazer esse alinhavo da contribuição de várias pessoas. Só que mesmo com o alinhavo, quando você vai assistir ao espetáculo você vê que é um conjunto de partes que se comunicam mal. E isso porque essas partes são gestadas a partir de várias subjetividades. Então nós vamos ter peças que carecem muito de uma visão de conjunto.
Do ponto de vista do teatro negro especificamente, creio que a gente tem problemas também relativos a subjetividade, porque em alguns grupos negros os atores são negros, mas o dramaturgo é branco. Ou seja, há uma dissintonia também do lugar de fala. Os atores contribuem nas oficinas com as suas performances e criações, mas no momento da amarração você tem uma subjetividade outra. E quando falo de subjetividade estou falando de lugar existencial, de experiência existencial. Por outro lado, acho que existe aí nessa questão um elemento fundamental, os grupos negros que realizam montagens coletivas também realizam montagens que pressupõe uma autoproteção do coletivo em dois níveis. Primeiro a proteção da reserva de mercado, ou seja, vamos deixar que todos participem, vai ter papel para todo mundo representar. Segundo, a reserva de atuarmos entre nós sem a presença do branco. Por que aí você se protege do conflito que é básico para o teatro entre negros e brancos. Então nós vamos ter muitas montagens de grupos negros onde só existem personagens negros. É como se os grupos se protegessem daquele conflito, daquele embate direto entre negros e brancos. Quando reflito sobre as montagens e leituras que foram feitos dos meus textos eu observo isso. Os textos mais bem aceitos pelas companhias negras são aqueles em que não há personagens brancos. Então os grupos tendem a se proteger.
Certa vez, uma atriz negra me disse a seguinte frase: “eu tentei montar um texto seu, mas infelizmente não vou montar nenhum porque quero fazer teatro só com mulheres negras”. Bem, isso é uma opção de proteção, é uma opção também, do meu ponto de vista, de acanhamento, talvez de certo cuidado de não ir para o confronto. Ora, a minha dramaturgia pressupõe confronto. Por isso tenho peças que tem presença de personagens brancos, porque a realidade nos dá este dado. Nós conviemos com o branco, nós temos brancos na família, então porque no momento de concepção de um texto nós vamos fazer de conta que não convivemos, que nós só convivemos entre negros?
“Não é possível imaginarmos que fazemos apenas literatura negra. Não! Ela tem a raiz neste Brasil. A história, a subjetividade é gerada aqui. Nós somos Brasil. Nós somos brasileiros enraizados, nossa família é daqui, nossos avôs estão enterrados aqui, nós temos ancestralidade aqui. Digo isso exatamente para que a gente não caia em uma fantasia africana de se imaginar afro qualquer coisa. Nós somos negros brasileiros, e é nisso que se fundamenta a minha literatura”.
MV: No ano passado a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) homenageou as mulheres (na figura da poeta Ana Cristina Cesar), e neste ano homenageará o escritor Lima Barreto. Provavelmente vão anunciá-lo como um escritor mulato, como sempre é colocado, e as pessoas que falarão sobre Lima Barreto serão especialistas que estão bem distantes da origem racial do autor e de todo o contexto que o cerca. Você é um intelectual brasileiro que se dedicou ao estudo da literatura, em especial a obra de Cruz e Souza e Lima Barreto. Como você vê as feiras do mercado do livro e este modo de se reconhecer Lima Barreto? Como você entende isso, partindo da sua compreensão sobre o próprio autor e do racismo que existe neste meio?
CUTI: É preciso considerar o Lima Barreto sendo trabalhado ao longo dos anos. Depois que o Lima Barreto morreu a sua obra ficou num limbo. É como se a intelectualidade branca brasileira não soubesse o que fazer com esta obra. Alguns críticos já haviam dado uma sentença de morte para a obra do Lima, a qualificando como irregular, mal escrita. Mas estes julgamentos não foram capazes de soterrar o Lima Barreto. “Vamos recuperá-lo, mas vamos colocá-lo no seu devido lugar”. Essa foi a perspectiva. “Vamos enfatizar, portanto o lado da sua biografia, e desqualificá-lo como um alcoólatra e também como um indivíduo louco”. Ou seja, alcoolismo e loucura ainda são para muitos a ênfase a ser dada a obra do Lima, no intuito de reduzir nesta obra o seu poder crítico e demolidor sobre a hipocrisia racial brasileira que se espalha por todos os campos da atividade social.
Sobre feiras como esta, creio que elas tem as suas ideologias, os seus objetivos e também os seus limites em termos de atender aos seus produtores. Toda a produção de evento tem essa amarra com o discurso do produtor. A Flip, pelo que entendo, tem uma limitação mercadológica, ela está ligada portanto as grandes editoras que, por sua vez, procuram enfatizar sobretudo a literatura estrangeira.
Quando se fala em homenagem e, particularmente, considero esta palavra extremamente ideológica, por que quando se homenageia alguém, em geral quem homenageia é que pretende ser mais importante que o homenageado, certamente termos uma exposição maior dos homenageadores do que do homenageado. Portanto, ao se falar que a Flip vai homenagear Lima Barreto, fico muito preocupado porque a figura de Lima Barreto já está desenhada na cultura brasileira como a figura de um alcoólatra e uma pessoa que frequentou manicômios. Minha preocupação é que se deixe exatamente o essencial, que é a obra do Lima no limbo, e que se promovam dados biográficos e curiosidades que venham no fundo a desqualificar novamente a produção deste grande brasileiro.
Por outro lado, considerando que o discurso dominante está exatamente na base da promoção de uma feira como esta, certamente a ênfase a ser dada a obra de Lima Barreto não vai contemplar a sua aguçada visão da questão racial. Porque o racismo ainda é o grande problema que a intelectualidade branca brasileira tenta colocar para debaixo do tapete. Essa intelectualidade branca que opera neste sentido já percebeu que o racismo é uma coisa muito grande e que não cabe debaixo do tapete de forma a não ser percebida. Hoje me parece que a questão é tentar pulverizar esta pedra no sentido de relativizar o máximo possível, e utilizar o Lima Barreto para isso. Ou seja, utilizar a obra do Lima numa visão que nega a questão racial para tornar o Lima universal. Porque essa vertente da intelectualidade branca brasileira serve para isso, para dizer que tudo que tem e que toca a questão racial não é universal, ou seja, para ser universal é preciso não tocar nesta pedra imensa que o Brasil tem que dar conta que é o racismo. Então acho que nós teremos um evento tendencioso que vai tentar trabalhar o Lima Barreto no sentido de extrair todo o conteúdo critico racial da sua obra, e também classificá-lo como uma pessoa de uma categoria não canônica, e mantê-lo como ele e o Cruz e Souza são mantidos dentro do cânone: num cantinho isolado porque são negros revoltados. Espero que esta minha perspectiva não se realize. Mas pelo que já li da crítica a Lima Barreto, creio que a tendência será essa, aparecerão mais aqueles que falam do Lima, do que o próprio Lima, do que a sua obra.