julho de 2015
NA NOITE CALUNGA, DO BAIRRO CABULA, UM POEMA DE RICARDO ALEIXO
Ricardo Aleixo
fotos Ricardo Aleixo
Morri quantas vezes
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
A noite não passa
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem nome e de novo
morrendo a cada
outro rombo aberto
na musculatura
do que um dia eu fui.
Morri quantas vezes
na noite mais rubra?
Na noite calunga,
tão espessa e longa,
morri quantas vezes
na noite terrível?
A noite mais morte
e eu dentro dela
morrendo de novo
sem voz e outra vez
morria a cada
outra bala alojada
no fundo mais fundo
do que eu ainda sou
(a cada silêncio
de pedra e de cal
que despeja o branco
de sua indiferença
por cima da sombra
do que eu já não sou
nem serei nunca mais).
Morri quantas vezes
na noite calunga?
Na noite trevosa,
noite que não finda,
a noite oceano, pleno
vão de sangue,
morri quantas vezes
na noite terrível,
na noite calunga
do bairro Cabula?
Morri tantas vezes
mas nunca me matam
de uma vez por todas.
Meu sangue é semente
que o vento enraíza
no ventre da terra
e eu nasço de novo
e de novo e meu nome
é aquele que não morre
sem fazer da noite
não mais a silente
parceira da morte
mas a mãe que pare
filhos cor da noite
e zela por eles,
tal qual uma pantera
que mostra, na chispa
do olhar e no gume
das presas, o quanto
será capaz de fazer
se a mão da maldade
ao menos pensar
em perturbar o sono
da sua ninhada.
Morri tantas vezes
mas sempre renasço
ainda mais forte
corajoso e belo
– só o que sei é ser.
Sou muitos, me espalho
pelo mundo afora
e pelo tempo adentro
de mim e sou tantos
que um dia eu faço
a vida viver.
SOBRE O POEMA
O poema NA NOITE CALUNGA DO BAIRRO CABULA foi escrito especialmente para a revista O Menelick 2° Ato, e versa sob o impacto do massacre, por integrantes da Polícia Militar, de 13 jovens negros da periferia de Salvador, na Bahia, na noite do dia 06 de fevereiro de 2015. O trágico episódio foi batizado por integrantes da campanha Reaja ou será morta, Reaja ou será morto de Chacina do Cabula, nome do bairro onde residiam os rapazes assassinados.
Jogando com a dupla acepção da palavra calunga – mar e morte -, o poema, que li, pela primeira vez, em público, durante debate de que participei em 23 de março de 2015 no Salão do Livro de Paris, organiza-se, a um só tempo, como um protesto contra a naturalização das práticas de extermínio da juventude negra no Brasil e em diversos outros países e como um elogio da Resistência Ativa, em nome da Vida.
Dedico-o às minhas filhas Iná e Flora e ao meu filho Ravi.