novembro de 2021

LUZ E BREU: REMINISCÊNCIAS DO JOVEM OSWALDO DE CAMARGO E A OCULTA HISTÓRIA DA REVISTA NIGER

Nabor Jr.

 

 

 

 

 

 

 

fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

Com um caminhar ora hesitante e ocioso, ora vigoroso e firme, e o bom humor afetivo que edificou nossa relação de amizade que já se estende por pouco mais de uma década, Oswaldo de Camargo (1936) desse vagarosamente as escadas da sua casa para me atender ao portão. Trajando calça social preta, camiseta branca de mangas curtas estampada com motivos em alusão ao escritor cubano Juan Felipe Benemelis, e calçando sapatos pretos visualmente cansados pelo tempo, ele me reconhece – por de trás das lentes grossas do seu antigo óculos de haste escura – ainda no topo da estreita escada externa que liga a sua morada a rua: “Nabor! Grande, Nabor!”, diz em tom efusivo. Aos 85 anos recém completos, o escritor e jornalista segue levando uma vida materialmente modesta – “sem o deslumbramento que o Ocidente criou” – em Lauzane Paulista, na zona norte de São Paulo, onde reside desde o início da década de 1970. No bairro, predominantemente residencial, Oswaldo vive em uma bucólica rua sem saída, dividindo um espaçoso sobrado de escassas mobílias rústicas com um dos seus quatro filhos, o músico Maurício Nascimento de Camargo, uma neta e um bisneto, além de centenas de livros dos mais variados gêneros e formatos, distribuídos em diversos cômodos da casa (inclusive, na garagem). Viúvo há 11 anos – foi casado por quase cinco décadas com Florenice Nascimento de Camargo – seu mais extravagante hábito consiste em beber um cálice de vinho tinto diário (preferencialmente da uva carmenérè, a sua preferida). Aos domingos é o organista titular das missas realizadas na Igreja Santo Antônio de Lauzane Paulista, distante cerca de 1 km da sua casa. “Recentemente tomei a decisão de tocar apenas na missa da noite. Ficou muito pesado para eu levantar-me às 6h da manhã”, conta, com seu português polido, sobre o compromisso que há aproximadamente 40 anos cumpre religiosamente.

 

Engana-se quem pensa que a noção de tempo a que se refere o escritor está relacionada a sua octogenária e fértil jornada. Pelo contrário! Tal afirmação, na verdade, refere-se ao seu atual e intenso volume de compromissos. Oswaldo tem invadido madrugadas escrevendo, revisando textos e dedicando-se a novos projetos. Atualmente, por exemplo, está as voltas com a revisão crítica dos quatro volumes de um livro escrito pela professora Dalva Abrantes de Mendonça, cujo tema é a cruz e a complexidade da milenar figura geométrica.

 

 

 

Luz e breu, ou um negro disfarce? Oswaldo na sala da sua casa, na zona norte de São Paulo.

 

 

 

Oswaldo de Camargo, a quem interessar possa, continua extremamente lúcido, produtivo, atuante, otimista e saudável. Nem mesmo o coronavírus, que acredita ter contraído no início de 2021 – “todo mundo em casa pegou” – foi capaz de derrubá-lo, ou mesmo esmorecê-lo. “Não se deve desanimar, devemos continuar”, enfatiza quando questionado sobre a luta antirracista no Brasil contemporâneo. Afora os compromissos online – especialmente entrevistas, debates e palestras sobre literatura negra no Brasil – que transbordaram em tempos de isolamento social – reforçando o modesto orçamento mensal do escritor, tenho comigo que a profícua parceria com o jovem editor Marciano Ventura e a sua inquieta Ciclo Contínuo Editorial – responsável por publicar ao menos quatro obras do autor nos últimos seis anos, novamente conduziram Oswaldo de Camargo aos holofotes da produção literária negro contemporânea, dividindo o protagonismo com novos nomes da cena, em sua maioria gente mais habilidosa no trato digital e, consequentemente, na autopromoção na esfera virtual. A constante, mas não periódica, colaboração em catálogos e outros projetos editoriais promovidos pelo artista e curador baiano Emanoel Araujo também contribuem para a audiência dos seus escritos entre o público mais jovem.

 

Prova sine qua non do resgate da visibilidade da densa obra de Camargo – é bem verdade que desde muito jovem ele goza de prestígio no meio negro e entre seus pares – pode ser observado na quantidade de convites que substancialmente vem recebendo nos últimos anos. Um deles, contudo, o emociona de modo singular. Trata-se da homenagem que receberá no próximo dia 04 de dezembro em sua cidade natal, Bragança Paulista, no interior de São Paulo. Já que no final do ano passado a Câmara Municipal da cidade aprovou o Projeto de Lei Nº56/200, que dispõe sobre denominação de Praça da Poesia Poeta Oswaldo de Camargo a área pública localizada entre a Rua Tupy e a Avenida dos Imigrantes, no bairro do Taboão. Some-se a isso o descomunal esforço que vem empreendendo para dar cabo a parceria estabelecida com a gigante Companhia das Letras, editora que há pouco relançou seu clássico livro O Carro do Êxito, e que em fevereiro de 2022 pretende publicar uma edição revista e ampliada de 15 Poemas Negros, obra que Camargo originalmente lançou em 1961.

 

Importante protagonista da história da literatura negro brasileira dos séculos XX e XXI, decano e guardião das memórias da imprensa negra paulista, Oswaldo de Camargo pertence ao panteão de talentosos escritores negros brasileiros que, após um longo período de proposital invisibilidade patrocinada por agentes do grande mercado editorial, passou a ter seus títulos disputados nos últimos anos pelo mesmo perfil de editoras que por décadas a fio ignorou a excelência – ou simplesmente a existência – dessa produção. Conquistas impetradas pelo Movimento Negro à parte, essa inédita movimentação no mercado editorial brasileiro – semelhante ao ocorrido recentemente com artistas negros no campo das artes visuais – merece uma profunda reflexão. Uma boa pauta para conversas futuras.

 

 

UM HOMEM TENTA SER ANJO, MAS É IMPEDIDO “EM NOME DE JESUS”

 

“Quem assim me vê cantando
Pensará que sou feliz
Eu levo a vida pensando
No homem que não me quis”

 

Em 1961, no embalo do sucesso alcançado com o best seller Quarto de Despejo (1960), a escritora mineira Carolina Maria de Jesus, gravou um disco homônimo, lançado pela RCA Victor. Entre as 12 faixas do álbum, todas compostas pela autora, com arranjos do Maestro Francisco Moraes e direção artística de Júlio Nagib, uma das músicas, intitulada Quem assim me ver cantando, tem uma estrofe potente (em destaque) que bem reflete a chegada – de forma contrariada – do jovem Oswaldo de Camargo à cidade de São Paulo, no ano de 1954.

 

“(…) quando já ia terminar o período máximo que eu poderia ficar no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz (em São José do Rio Preto) para começar meus estudos em Filosofia, no Seminário Central Imaculada Conceição do Ipiranga, descobri que este não aceitava negros. Foi aí – com essa notícia – que eu tive uma crise muito grande. Fiquei doente, tive depressão… A essa altura, aos 17 anos, eu já era organista da catedral e um aluno brilhante, primeiro da turma em Latim… Essa crise foi somada a crise da adolescência, normal da idade. Acabei saindo do seminário em 1954, por conselho dos padres. Porque, por mim, eu não sairia. Estava tão convicto da minha responsabilidade futura como padre que, por mim, repito, jamais sairia do seminário. Mas eu saí e o pior, não podia trabalhar, pois precisava fazer o tiro de guerra”, recorda-se.

 

 

 

Na garagem do seu sobrado, Oswaldo posa com seus muitos cadernos negros, brancos, amarelos…

 

 

 

Filho do casal Martinha da Conceição e Cantiliano de Camargo, Oswaldo ficou órfão aos seis anos de idade e, até os 17, viveu internado em instituições religiosas do interior paulista. Primeiro, dos 6 aos 10 anos, em Bragança Paulista, no Preventório Imaculada Conceição. Depois no Reino da Garotada Dom Bosco de Poá, fundado e gerido pelo padre holandês Simon Swtizer na cidade homônima. “Ele (o padre Simon) foi um educador que estava a frente do seu tempo. E foi graças a ele que nasceu em mim o gosto pela literatura, pelo livro… o considero o meu pai espiritual”, conta. A trajetória de Oswaldo como interno de instituições religiosas se encerrou no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto.

 

Foi no Reino da Garotada – que durante 40 anos funcionou como um internato atendendo crianças órfãs e/ou abandonadas – que Oswaldo externou pela primeira vez sua inclinação religiosa. “O Padre Simon quis saber por que eu queira ser padre. Ele ouviu minhas razões e se convenceu que de fato eu tinha vocação para o sacerdócio. Nessa altura eu tinha terminado o primário, estava com 12 anos e meio, por aí”.

 

Pouco tempo depois dessa marcante conversa, Padre Simon foi passar um tempo na Holanda, seu país de origem, deixando em seu lugar o irmão, Miguel Swtizer, que passaria a procurar um seminário para que Camargo desse continuidade ao seu sonho. Para o espanto de Oswaldo – então um jovem negro no mundo branco – todos os seminários que existiam a época não aceitavam as chamadas pessoas de cor. Havia poucos seminários na região, e todos eles não aceitavam crianças negras. Foi somente no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, que havia sido recentemente aberto por Dom Lafaite Libânio, em São José do Rio Preto, formado em sua maioria por holandeses, que Oswaldo conseguiu ser aceito. Quando ia terminar os seis anos do Seminário Menor para começar seus estudos em Filosofia, no já mencionado Seminário do Ipiranga, é que Oswaldo descobre o problema da cor. Da sua cor.

 

 

UM NEGRO NO MUNDO NEGRO: A VIDA EM COMUNHÃO NA CAPITAL

 

Alijado do sonho de ser padre (aqui vale uma reflexão mais aprofundada sobre o racismo na igreja católica e sua contribuição para a manutenção do regime escravocrata no Brasil), Oswaldo chega à São Paulo em 1954 para dar prosseguimento a sua vida. É na cidade que conhece uma senhora negra chamada Dona Alcina – de quem não se recorda o sobrenome e quem nunca mais viu – que o apresenta aos responsáveis pela Igreja do Rosários do Homens Pretos, sugerindo que Oswaldo tocasse órgão nas missas realizadas na igreja. “Foi como organista desta igreja que ganhei meu primeiro dinheiro em São Paulo, 30 mil réis”. Nesse mesmo período, Oswaldo é apresentado, também por intermédio da Dona Alcina, ao professor Ovídio Pereira dos Santos, então proprietário de uma escola chamada Humberto de Campos, voltada para a alfabetização de empregadas domésticas e que ficava nas proximidades da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na região da Consolação. Foi o influente Ovídio Pereira dos Santos quem convidou Oswaldo para ser editor do jornal da imprensa negra paulista Novo Horizonte, ocupando o cargo anteriormente exercido por Aristides Barbosa – antigo membro da Frente Negra Brasileira e um dos fundadores do jornal Novo Horizonte. “Foi no Novo Horizonte que publiquei meu primeiro texto em um jornal, se não me engano foi sobre uma autora africana, a Noémia de Sousa”.

 

“(…) se eu não falar, ninguém vai dizer. Não existe mais gente daquele tempo. O Carlos Assumpção está lá em Franca, ausente de São Paulo há 60 anos quase. Então, cabe a mim essa missão de relatar alguma coisa desse tempo”.

Não demora muito e Oswaldo conhece a Associação Cultural do Negro (ACN), a época localizada na rua Carlos Gomes. Depois de mais de duas décadas sendo se não o único, um dos poucos negros nos ambientes em que viveu, Camargo finalmente experienciava a vida em coletividade negra, fator que despertaria uma subjetividade adormecida e que atravessaria de forma determinante toda a sua trajetória intelectual. É na ACN que Camargo conhece, por exemplo, nomes como José Correia Leite, Jayme Aguiar, José Ignácio Rosário (pai de Theodosina Rosário Ribeiro), Fernando Góes, Solano Trindade, Ironides Rodrigues, Abdias Nascimento, entre tantos outros, inclusive importantes intelectuais brancos também, como Florestan Fernandes, que viria a escrever o prefácio do seu livro 15 Poemas Negros. “Na Associação encontrei importantes figuras remanescentes da Frente Negra Brasileira e da imprensa negra paulista. Foi um privilégio, ainda aos 23 anos ter contato com essas pessoas. Isso transparece muito na minha ficção. As vezes diretamente, e outras disfarçadamente, estou falando sobre essas reminiscências também. E por que eu falo? Eu falo porque eu acho necessário. Porque se eu não falar, ninguém vai dizer. Não existe mais gente daquele tempo. O Carlos Assumpção está lá em Franca, ausente de São Paulo há 60 anos quase. Então, cabe a mim essa missão de relatar alguma coisa desse tempo”.

 

 

 

 

 

 

Mesmo jovem, Oswaldo tinha uma formação educacional elevada para a realidade preta da época. Por esta razão, o ex-seminarista era visto como um intelectual, pianista e poeta de circunstância (fazia poesias em datas especiais como da Mãe Negra, Cruz e Souza) de valor no meio preto. Características que o levariam a ocupar, pouco tempo depois do seu ingresso na ACN, o cargo de Diretor de Cultura da entidade. “Fui acolhido como um intelectual negro que faltava a ACN. Me desculpa a falta de modéstia, mas não havia uma pessoa com a minha formação na entidade. Alguém que tivesse estudado latim, francês, grego, música. E antes de entrar na ACN eu já tinha – quando deixei o seminário – um pequeno volume de poesias que poderiam se tornar livro. Na verdade, Um homem tenta ser anjo já tinha como antecedente uma coletânea de poemas que eu havia até dado o nome de Vozes da Montanha, e que aguardo até hoje na minha biblioteca como lembrança do meu aprendizado”, conta.

 

Vale destacar que no período em que ingressou na ACN, Oswaldo já ocupava o prestigioso cargo de revisor no jornal O Estado de São Paulo, bem como já havia publicado sua primeira obra, o volume de poesias Um homem tenta ser anjo (1959). “(a poesia) de Oswaldo é aristocrática, orgulhosa e trái a formação clássica dêsse moço. É bucólica, às vezes sêca, às vezes dolorosa, às vezes entra em temas cuja filosofia somente certa elite alcança”, destaca J.C, na coluna Poesia Negra e Declamadores, publicada na primeira edição da revista Niger (1960), ao falar sobre a obra de Camargo e da então “nova poesia negra” brasileira.

 

 

A ESQUECIDA HISTÓRIA DA REVISTA NIGER

 

Criada em 1960, por iniciativa da Associação Cultural do Negro – que em 1958 já havia publicado o jornal O Mutirão – e com apenas quatro números produzidos, a revista Niger, que levava em seu subtítulo a frase Publicação a Serviço da Coletividade Negra, está prestes a ganhar o merecido destaque na linha cronológica da valente trajetória da imprensa negra paulista ao longo do século XX. Ainda neste ano de 2021 os fac-símiles das quatro edições do periódico devem ser publicados por iniciativa da Ciclo Contínuo Editorial, editora paulistana especializada em autoras e autores negros.

 

 

 

Capa da revista Niger (1960)

 

 

 

Oswaldo de Camargo, então com 24 anos de idade, foi o redator-chefe deste jornal que, a sua maneira, teve características editoriais semelhantes a outros periódicos negros publicados no decorrer do século XX que valorizavam especialmente a produção cultural e a memória do negro no país. Tais como os jornais Quilombo, no Rio de Janeiro, e o próprio Novo Horizonte, em São Paulo, apenas para ficarmos em dois exemplos. Deste modo, entendo as artes como uma eficaz ferramenta de transformação e integração social, bem como de representatividade positiva da população negra, Niger destinou especial atenção ao teatro, a literatura, ao cinema e a música afro-brasileira e afro-americana.

 

Oswaldo guarda poucas lembranças deste periódico. “Você deve entender, meu caro, que lá já se vão 60 anos”, desculpa-se pelos lapsos de memória. Porém, ele preserva reminiscências conclusivas. Uma delas diz respeito a fundação do jornal. “Com certeza a criação do Niger foi ideia do (José) Correia Leite. Ele era a grande figura da revista”. De fato, em 1960, José Correia Leite era uma das mais importantes e respeitadas figuras negras de São Paulo (sua residência, por exemplo, era ponto de encontro de importantes figuras negras do período), trazendo na bagagem além do respeito dos seus mais proeminentes pares, a fundação dos jornais O Clarim d’Alvorada (1924), A Chibata, além de incontáveis colaborações em outros tantos periódicos da imprensa negra paulista. Isso sem contar o protagonismo que exerceu na criação de entidades como a Frente Negra Brasileira, o Clube Negro de Cultura Social, a Associação dos Negros Brasileiros e da própria Associação Cultural do Negro.

 

 

 

Revista Niger (1960), edição 01

 

 

No campo das artes cênicas, Niger estabeleceu íntima relação com o Teatro Experimental do Negro de São Paulo (TENSP). Em todas as quatro edições da revista, a cia e seus feitos ocuparam privilegiado espaço nas poucas páginas da publicação, ganhando inclusive uma coluna, chamada Um pouco de tudo e de tudo um pouco. A sessão, é bem verdade, na segunda edição da revista, dedicou uma página inteira a “uma merecida homenagem ao Teatro Popular Brasileiro e ao seu incansável diretor Solano Trindade”. Mas fato é que o TENSP representava uma importante engrenagem na publicação. Prova disso é que logo na capa da primeira edição de Niger, o retrato de um sorridente e jovem homem negro de perfil ocupa quase a totalidade da página. Trata-se do ator Raul Martins, descrito pelo jornal como “um dos elementos exponenciais do TENSP”, e que na ocasião havia regressado há pouco de uma turnê pela Europa com o Teatro Maria Della Costa, onde apresentaram o espetáculo Gimba. Segundo Camargo, a proximidade com o grupo e a recorrência de pautas sobre a presença negra nas artes cênicas se dava pelo fato que muitos membros da cia também eram frequentadores da ACN.

 

 

 

Capa da revista Niger (1960)

 

 

 

Niger também divulgou com assiduidade jovens literários paulistas, especialmente os iniciantes ávidos por publicarem poemas, crônicas e sonetos. Em suas páginas desfilaram críticas e colaborações de nomes como Carlos Assumpção, Marcílio Fernandes, Eduardo de Oliveira, Carolina Maria de Jesus, Solano Trindade, Jandira de Camargo, Fernando Goes, além do próprio Oswaldo de Camargo.

 

A música e o cinema negro norte-americano e afro-brasileiro, na figura de nomes como Duke Ellington, Dorothy Dandridge, Sidney Poltier, Padre José Mauricio e Léia Garcia, destacava o interesse da publicação pelo universo da produção artística da diáspora negra além-mares. Tudo isso, obviamente, sempre noticiado em meio a movimentada vida social dos negros de São Paulo, que tinham em Niger um espaço privilegiado para a divulgação de suas cerimônias festivas, bailes, aniversários, casamentos e concursos de beleza. O título da revista, inspirado na então recém conquista da liberdade pelo Niger, assim como já o fizera o jornal O Menelick (1915) homenageando a resistência colonial etíope, trazia para o centro do debate o efervescente processo de independência de nações africanas do período e o modo como esse “renascimento africano” poderia influenciar a luta e a união dos negros brasileiros.

 

 

 

Texto de José Correia Leite publicado na revista Niger (1960)

 

 

Não por acaso, no primeiro número de Niger, o jornalista José Correia Leite assina um texto de duas páginas no jornal com o título O Mundo Negro – O renascimento africano, onde discorre sobre o processo de emancipação de uma série de países africanos no pós Segunda Guerra Mundial. Uma interessante particularidade presente em Niger é a proximidade do periódico com o mundo esportivo, especialmente o futebol amador, já à época uma ferramenta de visibilidade positiva e de impulsão social.

 

 

 

Poucas vezes os esportes ocuparam tão prestigioso espaço dentro da imprensa negra paulista como em Niger (1960)

 

 

 

Apesar de sua curta trajetória – foram publicadas apenas quatro edições – Niger ajudou a sedimentar a trilha da dignidade, do respeito e do protagonismo intelectual com que a população negra sempre almejou ser reconhecida no país. O negro brasileiro foi sempre um inquieto organizador, prova disso foram, e são, iniciativas como os quilombos, as confrarias religiosas, os clubes sociais, o próprio candomblé. Organizações relativamente frágeis, mas sempre constantes e necessárias. A publicação dos fac-símiles de Niger, portanto, além um valioso documento histórico de uma iniciativa editorial que não mais pode ser acessada fisicamente, revela essa faceta indignada de quem sempre buscou, pelos mais variados meios, ser tratado como cidadão no país que ajudou a erguer.

 

 

 

 

 

 

 

 

Nabor Jr.

Nabor Jr. é fundador-diretor da Revista O Menelick 2° Ato. Jornalista com especialização em Jornalismo Cultural e História da Arte, também atua como fotógrafo com o pseudônimo MANDELACREW.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.