maio de 2020
leve sua culpa branca pra terapia
Tatiana Nascimento
terapia me parece um lugar ótimo pra aprender a lidar com a culpa. sítio propício pra se falar exaustivamente sobre ela, até mesmo pra minuciar memórias, revisitá-las, propor alternativas aos impactos emocionais que elas suscitam, ou apenas ficar remoendo mesmo a coisa toda pelo tempo que for preciso antes de deixá-la ir. mas talvez, no caso da culpa branca, levá-la ao ambiente terapêutico suscite, além de uma maneira positiva, curativa, transformativa de lidar com a culpa, uma alforria às pessoas negras que, como eu, convivemos com pessoas brancas y não queremos nem precisamos ser interpeladas a lidar com essa culpa, alheia. penso culpa branca não como alguma culpa sentida por alguma pessoa branca: mais precisamente o sentimento de ser culpada pela própria branquitude. tenho visto aparições desse sentimento como tentativa de expurgar o pecado do racismo da própria vida. às vezes ele me parece uma manifestação secundária, derivada da percepção inicial da branquitude como ao mesmo tempo mantenedora e beneficiária maior do racismo. uma manifestação que dá o passo seguinte à autocompreensão tida por pessoa branca sobre o lugar que ocupa numa sociedade colonial. mas esse passo seguinte, sendo a culpa, é estacionário. poucas coisas podem ser tão paralisantes quanto a culpa. no caso da culpa branca, tendo a notá-la como ainda mais convenientemente paralisante, por (aparente contradição, mas só aparente) movimentar uma forma específica de desresponsabilização racial que tenho assistido com atenção, reflexivamente. essa culpa especialmente quando sentida por ativistas brancas / brancos é que tem me feito refletir, por ser uma muito característica que aciona, primeiramente, o dispositivo paralisante que opera pela criação de uma incapacidade de ação, de posicionamento ativo, reflexivo, transformador (ou “reparador”, como tem sido apontado) com relação ao racismo. ela parece congelar a pessoa branca em dois frames: primeiro, um daquele expurgo / expiação – como se quem sente culpa por ser branca expressasse com aquela culpa seu desejo por uma liberação, um livramento de seu próprio racismo. “não sou tão racista assim. sei que o racismo é tão cabuloso que me sinto culpada por ser branca. não é como se eu tivesse orgulho, entende? isso deve valer de alguma coisa nesse tabuleiro, não?”. o segundo frame em que culpa branca define paralisação é no lugar de mártir que parece dar à pessoa branca. aí, mesmo que afirme não sentir orgulho por ser branca, há algum brio no sentir dessa específica culpa (“mea, mea, maxima”), um certo viço, alguma expectativa de reconhecimento da dor vinda do sentir culpa por ser pessoa branca – eu sei, parece um exagero. mas vi isso muito recorrentemente a ponto de poder esboçar essa reflexão –, levando-a a um tipo de protagonismo, ou desejo de protagonismo, branco, no plano geral de seu empenho antirracista (que também poderia vir entre aspas). a culpa sole ser usada como uma daquelas cartas que dão muito poder numa rodada de uno, uma espécie de passe-livre que faz, por exemplo, pessoas brancas se sentirem à vontade pra expressar como se sentem tristes, culpadas, terríveis, sem-saber-o-que-fazer, quando estão em reuniões com pessoas negras, ou em eventos públicos sobre cultura negra ou com protagonismo negro, y até mesmo quando estão com uma única pessoa negra numa conversa. elas parecem se esquecer, as pessoas brancas que fazem esse tipo de carpidação de suas próprias dores-advindas-da-culpa-oriunda-de-serem-brancas, que o foco da nossa libertação, enquanto pessoas negras, não é elas. mais que isso, sinto, meio passada mas não surpreendida, que não é só que esqueçam disso, mas fazem questão de trilhar, pela performatização da culpa – a qual deve sempre ser alastrada em público, devassada em detalhes experienciais e oferecida numa forma de espetáculo que conjura expressões faciais a gestuário específico & tons de voz que muitas vezes beiram o choro, quando não desembocam abertamente aí –, o caminho de seu protagonismo no que elas consideram como a luta antirracista. a própria naturalidade com que pessoas brancas parecem esperar que pessoas negras estejamos sempre dispostas a ouvir suas lamentações & tristezas & arrependimentos & memórias-de-quando-eram-crianças-racistas-com-suas-empregadas é indício bastante demonstrativo dessa forma pela qual (algumas d)elas parecem considerar a culpa como um sentimento que as deixa além de aptas a, necessitadas de, receberem toda a atenção, y as faz acionar uma expectativa de cuidado paliativo: querem que estejamos prontas a acolhê-las, cuidá-las, ouvi-las, emitir pareceres redentores, auxiliá-las no processo de compreensão de “o quê quando como onde houve racismo ali”, enfim: oferecê-las alívio afetivo pro momento catártico de escoamento sentimental, subsídio político pra seu desenvolvimento moral e/ou status de ativista, e, lógico, perdão pela culpa por serem brancas. em outras ocasiões / textos já comentei quão perverso é esse mecanismo de pedir desculpas por ser / ter sido racista, no que esse pedido pretende a capacidade de inverter a carga de responsabilização do racismo ao esboçar tirá-la da pessoa branca querendo lançá-la sobre a pessoa negra num plano quase litúrgico em que não só a pessoa negra torna-se responsável por redimir a pessoa branca da culpa que sente (o que seria a consequência esperada de, efetivamente, perdoá-la) mas, se não o fizer, poder ser ela, pessoa negra, condenada à consideração de sem coração, pessoa ruim, incompreensiva, desumana, enfim, esses ou quaisquer outros adjetivos abjetos que hão de recair, como praga no egito, sobre quem não “quer” perdoar. já analisei também1 de que forma essa noção de o racismo como algo passível de perdão funciona perversamente ao sugerir que racismo se resolve relacionalmente, na base de um pedido bem cristalizado mimético ao movimento super familiar de uma pessoa adulta obrigar duas crianças a se abraçarem e dizerem uma à outra “me desculpa / tá desculpade”, tratado no plano do banal, levianamente – como não fosse, o invés, algo de uma solidez que é social, cultural, econômica, história, política, estruturante; y especialmente forjada por/fundada no/difundida via o ideário do (mais) catolicismo (que cristianismo), a própria moral colonial que fundamenta a colonialidade nas américas, que se baseia na articulação entre culpa > autocomiseração > martírio (quanto mais público, melhor) > redenção/perdão > salvação. como isso não fosse já o bastante, aquele dispositivo paralisante primeiramente mencionado tem uma pareja-paradoxal: por mais que a culpa seja profundamente paralisante das pessoas brancas (ela praticamente cria um tapete vermelho no qual elas param pra brilhar sob os flashes imaginários de minhas metáforas), ela exige profunda movimentação de pessoas negras. posicionamento político. revertério intestinal. giros oculares nas órbitas caveirais do crânio. reavaliações relacionais. essa reflexividade cinética pode gerar uma série de atos da pessoa negra, tragada num quadro branco de expiação da culpa racista, demandando seja que ofereça o socorro almejado pela pessoa branca (tendo vivido entre tantas, inclusive amigas ou bem próximas, me pus exaustivas vezes nesse lugar em que simultaneamente fui posta), seja que evada física ou mentalmente do terço de recuerdos racistas que a pessoa branca começa a rezar. já me vi nessas todas situações, y sair fisicamente é a mais fácil, apesar de não ser sempre o mais indicado nem o mais possível. por exemplo, nos contextos em que sou formadora, as pessoas praticamente esperam que eu esteja disposta a ouvir suas histórias de terror racial matizadas – mas não neutralizadas, nunca, diferentemente do que parecem pensar – pela culpa branca, y mesmo que eu as interrompa, ou a alguma delas, uma outra sempre acha que sua história é mais importante / dramática e vai anunciá-la sem sequer avisar que ali pode haver alguns gatilhos emocionais para, por exemplo, pessoas negras como eu. evadir mentalmente costuma ser mais exigente, por precisar duma capacidade de ativação de inescuta seletiva, quase um tipo de botão-de-distração – mas prestar desatenção (gracias, nina, pelo desconceito) me é uma das coisas mais difíceis na vida. acho impressionante, mesmo, como algumas pessoas brancas parecem ter uma necessidade febril de narrar detalhadamente fatos, acontecimentos, lembranças de eventos racistas que tenham presenciado ou promovido, para, ao final, dizer como aquilo foi traumático / marcante pra elas; como elas se sentem culpadas y/ou envergonhadas de terem feito aquilo mas só depois de tantos anos terem reconhecido quão perversamente racista foi; y quase sempre, como um corolário desses episódios, ressaltar a importância de terem percebido aquilo pra diferenciá-las, torná-las engajadas na luta antirracista, fazê-las sentirem seus profundos incômodos ou só, simplesmente, ativar a tal da culpa branca mesmo. também já comentei em inúmeras ocasiões sobre o sadismo funcional ao racismo que criou na colonialidade o gosto pela desgraça, especialmente pela desgraça negra. esse sadismo se atualiza cada vez que são recontadas essas histórias, pois o narrar tem foco na expiação da culpa da pessoa branca e não tange qualquer cuidado como, quem sabe, digamos, favorecer algum tipo de bem-estar negro que reside em se poupar pessoas negras de ouvir aquele tipo de informação (que só parece inédita, aliás, pra brancas). algumas tentam inverter esse sadismo; ouvi recentemente, numa das formações, que aquela culpa, chorada em público, aquele mal-estar em ser branca, faziam a pessoa branca sentir estar favorecendo “a causa negra”. um revanchismo, talvez? algum tipo de vingança?, pensei. mas se o tema é justiça social (meu interesse, foco da minha ação política), & não BDSM, que tipo de solução é essa? como, perguntei a ela, seu mal-estar me favoreceria? ¿não é peculiar como, quase pra simular uma performática clássica na (de)formação colonial católica-branco-europeia, seja erguida uma cruz branca de sofrimento branco mas na qual os corpos efetivamente crucificados (porque o sofrimento da culpa branca é um sofrimento espectador) têm tons escuros como o “bronze queimado, as pedras de jaspe e sardônio” com que o apocalipse bíblico descreve o ator principal que vem ocupando esse cenário há milênios (cerca de dois, pra ser exata), a despeito das toneladas de pó-de-arroz pra branquializá-lo? seja como for, culpa branca não é responsabilidade negra, salvo em casos de terapeuta negra atendendo pessoa branca possuída por esse fenômeno deveras instigante do racismo contemporâneo entre ativistas (mas ainda assim seria corresponsabilidade). como toda culpa (penso eu categórica, religiosamente), deveria ser tratada em terapia.
tirar essa cruz simbólica dos ombros brancos que tentam não dar conta de carregá-la (a ponto de qualquer ocasião entre/com pessoas negras ter de servir pra sua expiação) talvez permita a pessoas brancas observarem práticas mais úteis nesse contexto, como responsabilização efetiva. letramento racial. reparação, quando y se possível. ou só uma suspensão temporária desse aburrido me me me.
nota
1 muitas dessas assunções estão compiladas com o título “privilégio branco: uma questão feminista?”, a ser lançado em 2020 pelas editoras padê editorial & kuanza. elas também são base das formações sobre privilégio branco que tenho ministrado desde abril de 2019.