outubro de 2015

LÉLIA GONZALEZ: INSPIRAÇÃO INTELECTUAL E MILITANTE

Fernanda Souza

 

 

 

graffitis Jackeline Romio / MANDELACREW 

 

 

 

 

 

Em meados de 2013, no segundo do ano da faculdade, conheci a figura de Lélia Gonzales. Começando a encarar com seriedade a militância antirracista e, ao mesmo tempo, começando a compreender e a debater a questão de gênero na rede de horizontes, perspectivas e ideias que se descortinaram para mim após a minha construção e afirmação identitária como mulher negra, vi uma foto clássica, em preto e branco, de Lélia no Facebook, segurando um microfone. Ainda não sabia bem seu nome nem sua história, mas me perguntava intimamente sobre quem seria aquela mulher tão parecida com minha mãe e minhas tias, mas assumindo uma posição diferente da que fomos acostumadas e ensinadas a nos ver, já que o racismo procura, sobretudo, nos silenciar: a de sujeito da sua fala, que desmascara, reivindica, discute. Era necessário saber quem foi aquela mulher…

 

Lélia Gonzales! Ao descobrir seu nome, descobri toda uma história, toda uma trajetória, que fugia da trama e do enredo que o racismo construiu para nós. Indo em busca de suas produções, ávida por conhecê-la melhor, tive acesso a uma obra que muito me marcou, pela contundência das palavras e pela perspicaz e viva leitura da realidade racista brasileira: Lugar de negro (1982), escrito junto com Carlos Hasenbalg, e o famoso ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira, publicado em 1984. Ainda tateando no escuro, como jovem militante, a respeito do racismo e toda sua engrenagem político-ideológica, Lugar de negro surgiu no meu horizonte como uma das leituras que fundamentaram minha formação política, sempre em construção. Falando a partir e de dentro do contexto da ditadura militar, Lélia expõe como o racismo articula a marginalização e a pauperização da população negra. Desconstruindo o caráter ilusório da inclusão de nossa população no mercado de trabalho como indicativo de uma melhoria de vida, Lélia escancara o lugar de negro e o lugar de branco como modo de desmascarar a abissal desigualdade entre negros e brancos no país.

 

Lugar de negro, no entanto, não fala apenas daquilo que corrói, mitiga, mata, da nossa difícil existência e (sobre)vivência em uma realidade que visa o nosso extermínio. Lugar de negro também fala da possibilidade de construção de novos lugares para nós, lugares de respeito, dignidade, humanidade, de resgate do que tanto buscam nos tirar: falar por nós mesmas, em nosso próprio nome, a partir de nossa própria realidade. Lélia nos mostra que, mesmo em um contexto de perseguição e de profunda marginalização, é possível nos reinventarmos politicamente por meio de diferentes formas de organização e mobilização, engajando-se numa busca pela (re)construção de nossa história e de nossas vidas, que vai do samba ao soul, das ruas a universidade, do grito ao sonho.

 

É justamente nesse cenário que Lélia demarca sua preocupação especial em relação a nós, mulheres negras, que somos o grande foco da desigualdade racial no país, vivendo em uma cruel bolha de invisibilidade e indiferença, exceto quando o assunto é carnaval, sexo e fetichização de nosso corpo. Ao declarar que nós não fazemos o gênero submissa e, no fundo, só podemos contar com nós mesmas, devido não só ao machismo dos homens negros, mas também à vulnerabilidade destes, vítimas da violência policial, do desemprego etc, Lélia afirma que cabe à mulher negra batalhar sozinha pelo leite das crianças. E aí pensei em minhas tias e tantas outras mulheres negras que sustentaram ou ainda sustentam sozinhas suas famílias em detrimento de si mesmas, do que sentem, querem, sofrem, pois, como tanto explora bell hooks, a nossa sobrevivência, muitas vezes, é determinada pela capacidade que temos de reprimir as nossas emoções e nossos sentimentos.

 

 

Lélia, com sua preocupação e dedicação em revelar e explorar nossas especificidades e demandas no contexto social brasileiro, sendo a “criadora de caso” no movimento negro ao debater gênero e, no feminismo, ao debater raça, mostra que ela, muito antes da consolidação do feminismo negro interseccional, já tinha uma profunda consciência do caráter indissociável entre raça e gênero. Não foi à toa que escreveu o memorável ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira, evidenciando e discutindo os estereótipos racistas e sexistas criados em torno de nossos corpos e vivências, da mãe preta a mulata, a partir da sua posição que, em si, é uma resposta a todos eles: uma intelectual e militante negra. Lélia buscou priorizar, ao longo de sua vida e dentro de sua militância e produção intelectual, as mulheres negras, pois ocupamos posições marginalizadas no mundo da supremacia branca e temos nossas demandas historicamente silenciadas. Falar especialmente sobre nós mesmas para nós mesmas foi uma tarefa assumida por Lélia, no sentido de dar visibilidade a quem ela via como a grande excluída da modernização conservadora.

 

Ao dar atenção à questão de gênero e à necessidade de organização, fortalecimento e solidariedade entre nós, Lélia abriu caminhos para fomentar outras discussões, pois ao priorizar as mulheres negras é possível falar de diferentes vivências, perspectivas e questões que tocam a cada uma de nós. Nesse sentido, priorizar e discutir gênero é também poder discutir e dar visibilidade a diferentes mulheres negras, como as transexuais, bissexuais e lésbicas, em um horizonte de fortalecimento e partilha, pois, a despeito das diferenças, o feminismo negro, como defendia Lélia, tem como a base a solidariedade, fundada numa experiência histórica comum. Como mulher negra e lésbica, me identifico com a figura de Lélia na medida em ela se dedicou à construção de novos lugares e horizontes políticos para nós, desbravando caminhos e trilhas em busca de justiça, dignidade, reparação e autonomia. Ao falar da importância de levarmos a questão racial para qualquer lugar que estejamos, como um compromisso político e com a nossa própria autodeterminação, acredito que, como lésbica, é também meu compromisso não só levantar a minha lesbianidade negra em espaços LGBTT (embora estes não sejam meu foco) e a minha negritude lésbica nos espaços do movimento negro, mas também carregar essa minha identidade como parte de mim em todos os lugares. Falar sem me esconder, ser sem disfarçar, reivindicar sem titubear.

 

Acredito que valorizar o legado e a trajetória de Lélia Gonzales para nós, jovens negras, é, de algum modo, retomar um dos valores que fundamentam o candomblé e as tradições africanas: o respeito aos mais velhos. Trilhar novos caminhos sem olhar e respeitar o que foi semeado no passado e quem veio antes de nós é esquecer que no terreno que hoje pisamos muita gente já pisou, caiu, se reergueu. Por isso, Lélia surge, para muitas de nós, como uma mais velha que, por meio dos seus textos, entrevistas e vídeos deixados, nos aconselha, nos fortalece e nos guia em nossa caminhada antirracista. Sua produção escancara um imenso desejo de construção de novas perspectivas para nós, pois, para Lélia, carregamos o maior potencial político e ideológico na sociedade.  Cabe a nós, então, acreditarmos em nosso potencial como nossa verdade mais íntima para desfazer esse lugar do menor, da marginalização, da invisibilidade, ao qual tentam nos confinar.

 

Nesse sentido, redes sociais têm sido um instrumento importante para o resgate e valorização da contribuição de Lélia, principalmente por meio de páginas e iniciativas que visam ao nosso fortalecimento em um contexto de difusão e consolidação da afirmação identitária e política das mulheres negras. É nessa teia de relações, contatos e perspectivas forjadas no contexto da internet que muitas jovens mulheres negras têm tido seu primeiro contato com referências negras positivas, como Lélia, em um horizonte marcado pela falta de representatividade. Lélia, desse modo, não é Tia Nastácia, não é Bertoleza, não é Rita Baiana, personagens conhecidas de nossa literatura que, desumanizadas e estereotipadas, nos impõe um imaginário subalterno e desumano sobre nós mesmas, mas uma mulher negra que era uma intelectual militante. Lélia, assim, abre as portas da senzala, nos chama para seu quilombo e nos diz que podemos invadir e incomodar a casa-grande.

 

A meu ver, a maior contribuição de Lélia para nós, jovens negras, que hoje temos muito mais oportunidades de estudar do que nossas mães, tias e avós tiveram, é a união entre o trabalho intelectual e a militância. Ao ocupar com seu rosto negro e a historicidade que seu corpo carrega o espaço branco da academia, se formando em Antropologia, História e Sociologia, Lélia sabia da importância de reinventarmos o trabalho intelectual, principalmente por meio de uma nova linguagem e de uma nova epistemologia que, como salienta Grada Kilomba: “inclua a personalidade e a subjetividade como parte do discurso acadêmico, escrevendo com palavras que definem a nossa realidade e não a do branco”. Nesse sentido, Lélia, em seu ensaio Racismo e sexismo na cultura brasileira, traz uma discussão e uma reflexão que nos parece uma espécie de conversa no bar, com uma linguagem leve, preocupada em se comunicar antes com a comunidade negra do que com o branco, forjando estratégias subversivas e transgressoras em relação ao jargão acadêmico. Sua linguagem é como um samba ritmado que chama todo mundo para a roda e que não fala a partir de uma ilusória neutralidade de terceira pessoa do singular, mas por meio de um forte e afetivo “a gente”, que perpassa todo o texto. Se a população negra, como diz Lélia, está na lata de lixo da sociedade brasileira, ela levanta a tampa e avisa: “o lixo vai falar, e numa boa”.

 

Lélia assume o desafio de ser da margem e falar no centro, de sair da cozinha e entrar na sala de jantar. Ela nos revela, bem antes de bell hooks, em seu belíssimo ensaio Intelectuais negras, que o trabalho intelectual não está dissociado da militância do cotidiano e que ele é parte do processo de luta por libertação ao nos posicionarmos como sujeitos e descolonizarmos nossas mentes. É por meio de nossa presença no terreno intelectual que também podemos responder de maneira significativa à subordinação racista e sexista que nos exclui do processo de produção de conhecimento, o que muitas vezes nos faz desacreditar do nosso potencial e da importância do que temos a dizer.

 

Ao transgredir os limites desse espaço, assumindo o ato de falar com todas suas implicações, Lélia aparece para mim e para tantas outras jovens negras como inspiração e referência de construção de uma intelectualidade negra que, ocupando com nossos traços faciais, “letras de um documento que mantém vivo o maior crime de todos os tempos”, como diz a canção de Yzalú, traz à tona a perspectiva do quilombo e não mais da casa-grande na academia. Perspectiva contada por nós mesmas. Lélia, entre erros e acertos, dores e alegrias, contou a parte dela. E eu também quero contar a minha. Decidi virar pesquisadora: intelectual em construção. E aqui quem fala é Fernanda Sousa, mais uma sobrevivente, mais uma jovem negra, entre tantas, que chegaram à universidade e se inspiram em Lélia para trilhar esse caminho. Nossa Lélia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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PARA LER

Lugar de negro
Lélia Gonzales e Carlos Hasenbalg
Marco Zero
Rio de Janeiro, 1982

 

Racismo e sexismo na cultura brasileira
Lélia Gonzales
Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984

 

Intelectuais Negras
bell hooks
In: Estudos feministas, v.3, n.2, 1995.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16465>

 

Vivendo de amor
bell hooks
1995
Disponível em: http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/180-artigos-de-genero/4799-vivendo-de-amor

Fernanda Souza

FERNANDA SOUSA é graduanda em Letras na Universidade de São Paulo. Nasceu e mora no Itaim Paulista, zona leste da cidade. Filha de ex-empregada doméstica e ex-cozinheiro, faz parte da primeira geração da família a entrar na universidade. Pesquisa a obra de Lima Barreto e Carolina Maria de Jesus na área da Teoria Literária, buscando valorizar o trabalho deles, acima de qualquer rótulo, como escritores.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.