dezembro de 2018

A MÁSCARA QUE CAI E A FACE QUE SE REVELA – DEIVISON NKOSI E A INTEGRALIDADE DO PENSAMENTO FANONIANO

Felipe Choco e Márcio Farias

 

 

 

 

 

 

Colaboração Nabor Jr.
Ilustração Edson Ikê
Fotos MANDELACREW

 

 

 

 

 

 

 

Personalidade responsável por influenciar movimentos políticos e intelectuais ao redor do mundo, o martinicano Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra, filósofo, cientista social e militante anti-colonial, integra também o substancioso grupo de pensadores negros cuja singular produção intelectual é invisibilizada, negligenciada ou, quando muito, superficialmente estudada no Brasil.

 

Por este viés, a publicação de Frantz Fanon – Um Revolucionário Particularmente Negro, ao iluminar as reflexões do autor, que ainda hoje reverberam como referência obrigatória em muitos campos de estudo, já seria de rara felicidade. Some-se a isso, o valor do empenho investigativo do jovem doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e membro do Grupo Kilombagem, Deivison Mendes Faustino, também conhecido como Deivison Nkosi, autor da obra.

 

Em seu ensaio, lançado pela valente Ciclo Contínuo Editorial, Deivison busca unificar o pouco pesquisado e fragmentado pensamento do autor, ainda hoje dividido por muitos em duas partes, desconsiderando, entre outros, seu amadurecimento pessoal e intelectual, e a própria metamorfose social global que diariamente modifica sujeitos, objetos e verdades. E mais do que isso, alça ao protagonismo a valiosa complexidade da produção fanoniana. Um presente aos jovens brasileiros que desconhecem a luta anti-colonial travada pelo psiquiatra e que buscam, por meio da cultura, revolucionar o modus operandi da patriarcal engrenagem brasileira.

 

Em entrevista concedida à Márcio Farias e Felipe Choco, Deivison apresenta e problematiza reflexões sobre o principal sujeito da sua investigação, mas generosamente não produz uma visão estanque sob o autor, pelo contrário, faz da sua contribuição, uma das poucas em língua portuguesa a debruçar-se sobre o pensamento fanoniano,  uma obra aberta: “(…) um desafio que podemos colocar é fazer com que Fanon seja lido para além dos seus mediadores. Inclusive a proposta do livro, embora ele também faça uma mediação, é provocar uma curiosidade em relação a obra desse autor para que as pessoas inclusive divirjam do próprio livro e possam trazer outras provocações”.

 

Que assim seja,

 

 

Deivison Mendes Faustino, também conhecido como Deivison Nkosi, autor de Frantz Fanon – Um Revolucionário Particularmente Negro.

 

 

 

 

O MENELICK 2º ATO – Qual a relevância de um pensador e ativista revolucionário para um período não revolucionário – ou contrarrevolucionário, como o que vivemos atualmente?

DEIVISON MENDES FAUSTINO: Fanon escreveu há bastante tempo, especificamente ao longo da década de 1950 e comecinho da década de 1960. Então seus textos surgem em um contexto muito específico e devem ser entendidos dentro deste contexto. Entretanto, Fanon é um desses autores que escreve coisas que estão para além do seu tempo, por isso a maioria absoluta das suas provocações, são muito pertinentes para a nossa época também. Por exemplo, uma das preocupações dele é como pensar a identidade para além de si mesma. Como pensar a afirmação daquilo que foi negado como algo que não se encerra em si. Como articular o reconhecimento da diferença dentro da necessidade de unidade, mas como defender essa unidade sem perder de vista a diferença. Então, são questões muito caras que não se resolveram na época do Fanon, e que de alguma forma ainda estão presentes nos dias de hoje. A gente pode pensar os movimentos sociais no Brasil, a ascensão da direita e do conservadorismo, por exemplo.

 

Mas podemos pensar também o quanto que vários movimentos de afirmação ao abrirem mão de um humanismo, de uma busca por algo que está para além deles, o quanto que eles também podem se converter em outros espaços de opressão. Se pegarmos o Estado Islâmico, por exemplo – na verdade a Arábia Saudita é um Estado Islâmico e ninguém a chama assim – se a gente pensar o Daesh, aquela organização também conhecida como Isis (Estado Islâmico do Iraque e Síria), você tem um tipo de afirmação identitária da cultura árabe, mas que parte de uma lógica de organização de extermínio de outras formas, inclusive com uma outra interpretação do Alcorão. É disso que o Fanon está falando: como a gente articula a afirmação do que foi negado sem perder de vista o que está para além dela, ou seja, sem a gente deixar de se ver como humano para além daquilo que nos foi negado.

 

 

“Pra ele (Frantz Fanon) a luta não se esgota na afirmação da negritude e na defesa da cultura negra. Mas é uma luta que provoca o negro a revolucionar o seu meio e a se encontrar enquanto ser humano”.

 

 

OM2ATO – Há uma defesa no livro que expressa: “apesar de Fanon criticar o movimento de negritude, vê a necessidade de dar um mergulho em seu interior”. Esse diálogo crítico é expresso como sendo aberto e não concluído. Quais são os limites e as armadilhas do discurso identitário apontados por Fanon?

DMF: Acho que a gente tem que entender que o Fanon é um autor da negritude. Há alguns teóricos hoje que defendem que o Fanon representa a ruptura ao movimento de negritude. Mas esta é uma posição que eu não encontro respaldo na leitura do Fanon. Eu o vejo como um autor do movimento de negritude. Entretanto, ele é um autor que aposta na afirmação daquilo que foi negado, mas está o tempo inteiro mostrando os limites desta aposta. E como ele não é maniqueísta, pensar os limites é considerar também as possibilidades. Então ele é um autor que aposta, sim, no movimento de negritude – e podemos pensar a negritude como metáfora para outros movimentos identitários, como os nacionalismos anti-imperialistas, a afirmação das identidades nos movimentos contemporâneos, por exemplo. O que ele está dizendo é que não é possível confrontar uma negação, sem uma negação da negação. Não é possível confrontar uma discriminação sem a afirmação daquilo que está sendo negado. Mas ao mesmo tempo essa afirmação não está isenta de reproduzir as contradições que a geraram. Não está isenta, por exemplo, de apenas transferir para fora dela contradições que também a compõe.

 

Então a crítica do Fanon à negritude não é uma crítica que joga a negritude fora, mas que chama a atenção para se pensar as contradições que estão implícitas dentro dessa idéia de negro, que em última instância foi criada pelo branco. É pensar as diversidades que estão implícitas na experiência de ser negro. É diferente ser negro na Martinica e ser negro no Brasil. É diferente ser negro no colonialismo inglês e ser negro no colonialismo português. E se eu não perceber isso, a minha afirmação negra, essa idéia essencial, essencialista de ser negro, pode me levar a adotar um modelo que não cabe na minha experiência particular concreta, dentro do meu contexto. Mas ele também faz uma crítica que propõe algumas rupturas. Por exemplo, pra ele a luta não se esgota na afirmação da negritude e na defesa da cultura negra. Mas é uma luta que provoca o negro a revolucionar o seu meio e a se encontrar enquanto ser humano. Então essa é uma preocupação do Fanon que está sendo perdida quando apenas nos limitamos em afirmar aquilo que foi negado.

 

 

 

 

 

 

OM2ATO – No Brasil, Clóvis Moura foi um autor que, ao discutir o fenômeno da cultura negra, em dado momento de sua produção, também foi crítico ao movimento de negritude, sobretudo sua versão nacional representada pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), sob a liderança de Abdias do Nascimento. Moura entendia que a população negra sempre organizou-se em coletivos desde o período colonial como forma de enfrentamento aos desígnios impostos pela escravatura e do racismo no pós-abolição. Nesse sentido, a cultura era o elemento mediador dessa aglutinação, forjando as ressiginificações simbólicas e materiais na luta contra o racismo. No entanto, para ele, essa ação cultural não ocorria por algum tipo de essência ou natureza africana, mas diante de circunstâncias históricas e ações possíveis nessas situações. Você considera plausível um diálogo entre Clóvis Moura e Frantz Fanon em relação ao debate proposto por ambos sobre racismo, cultura e política?

DMF: Essa associação não apenas é plausível como necessária. Para entender o Clóvis Moura é necessário entender o C.L R. James e os “Jacobinos Negros”, e o anúncio que o C.L.R. James faz em relação a importância da cultura negra na revolução haitiana.  E a importância de pensar o escravizado não apenas como objeto, como vinha sendo pensado pela sociologia moderna, mas também pensar o escravizado como sujeito da sua existência e da sua própria emancipação. Então o Clóvis Moura está dentro dessa tradição. E ele vai trazer, por exemplo, num livro como Rebeliões da Senzala, essa perspectiva de pensar o africano escravizado como sujeito. É disso que o Fanon está falando. E a aposta do Fanon é que embora o colonialismo coisifique e destitua de humanidade o colonizado, essa destituição não é total, ela é retórica. Porque ainda estamos falando de seres humanos, então isso significa pensá-los como sujeito. A luta, a possibilidade de emancipação depende da ação dessas pessoas que estão sendo negadas. Nesse sentido há muita proximidade entre Clóvis Moura e Frantz Fanon.

 

E essa proximidade poderia ser pensada em vários aspectos. Tanto nessa possibilidade de pensar o escravizado enquanto sujeito histórico, como também no papel que eles atribuem a cultura. Em ambos a cultura não é algo em si. Diferente, por exemplo, de uma leitura pós-estruturalista que poderia ver a cultura como o próprio sujeito. Em Clóvis Moura e em Frantz Fanon a cultura forma, mas é também produto. Ela produz, mas ela é antes de mais nada produto da ação humana. Então o que precisa ser emancipado, ou defendido, não é a cultura. Quem tem que se emancipar é a humanidade, é a população negra, é o colonizado. Para que inclusive o colonizado reconstitua a cultura em outros termos. Só que a não percepção desse caráter de sujeito do ser humano que produz a cultura faz com que o movimento de negritude, na visão do Fanon, esteja mais interessado em defender a cultura, em alguns momentos, do que o próprio produtor da cultura. É essa crítica que o Clóvis Moura está fazendo também ao movimento negro brasileiro e às influências do movimento de negritude no Brasil. Porque em última instância, quando a gente vai para o Teatro Experimental do Negro, quando a gente pensa Abdias do Nascimento, o próprio Guerreiro Ramos, ou mesmo quando voltamos um pouquinho e pegamos a Associação Cultural do Negro, é com essa tradição política e teórica que os brasileiros estão discutindo, é com o movimento de negritude. Então a crítica do Clóvis Moura está dentro deste contexto.

 

Mas, como eu disse na questão anterior, a crítica do Fanon à negritude é uma crítica que não joga o bebê com a água suja do banho fora. Então também é uma crítica que coloca os limites da cultura, os limites políticos da cultura, mas não abre mão da cultura como elemento político numa luta de emancipação. O problema é a reificação da cultura como a própria luta. É como se preservar a cultura já fosse, por si só, dar conta da emancipação. Então é nessa crítica que Clóvis Moura é muito próximo do Frantz Fanon.

 

 

OM2ATO – O seu livro busca apresentar um Fanon mais integral, em sua completude de pensamento e ação na vida breve que teve – 36 anos (1925-1961) – sem perder de vista cada contexto específico. Ele lidou tanto com o racismo anti-negro – apresentando em primeira pessoa a “experiência vivida do negro” – e com o racismo anti-árabe quando diretor de um hospital psiquiátrico na Argélia. Quais as aproximações e os limites encontrados por ele em sua trajetória política e profissional comum de enfrentamento ao colonialismo e o racismo?

DMF: Foram vários limites. Fanon nasce, cresce, se reproduz e morre numa sociedade colonial. Então os primeiros limites, são limites vividos em primeira pessoa. São limites de alguém que também foi vítima do colonialismo e da racialização. Mas, para além disso, ele vai encontrar uma série de limites políticos e teóricos. Do ponto de vista teórico, por exemplo, ele foi um psiquiatra que foi formado por uma psiquiatria que até a época dele ainda ensinava que o negro, ou o árabe, tinham o cérebro diferente, inferior ao do branco. Estamos falando da década de 1950, final da década de 1940. Então também é objetivo dele, na sua obra, confrontar os resquícios de um certo “racismo científico” que ainda permeava a produção de conhecimento do período. Mas tem um outro desafio que também marca a produção fanoniana: para ele, mesmo aquelas vertentes teóricas que se contrapunham ao “racismo cientifico”, e que apostavam na cultura como uma nova forma inclusive anti-racista de produção teórica, ainda essa, segundo Fanon, também era racista.

 

A preocupação do Fanon e os limites que ele tenta tensionar estão também no quanto o colonialismo marcou a produção de conhecimento da sua época. Seja pela invisibilidade do negro pautada por uma generalização da particularidade europeia como pressuposto universal humano, seja por uma distorção dessa presença negra que aparecia – quando aparecia – posta como biologicamente inferior ou reduzida aos seus elementos culturais. Então, o Fanon vai se confrontar contra isso na sua produção teórica. Mas na produção política também. Porque ele vai se aproximar da esquerda, da esquerda francesa que é do contexto que ele está inserido. E essa esquerda francesa também é uma esquerda que tem a Europa como horizonte, como ponto de partida e ponto de chegada. E isso vai se refletir também nas colônias. Fanon é um autor que também vai se confrontar com um certo eurocentrismo de esquerda mesmo nas sociedades coloniais. E isso marcará também os embates políticos que ele enfrenta. O ponto que é interessante – e essa é uma provocação fanoniana – é que esses limites não estão só do lado de lá, pois, quando ele olha também para os movimentos anti-coloniais, por mais que eles contribuam para apontar alguns limites europeus, eles também vão reproduzir ou vão criar novos limites na sua forma de agência. Portanto, Fanon também vai ter que se debater contra isso, se debater contra uma idéia essencialista de luta política. Ele era um martinicano, ateu, numa Argélia mulçumana. Se, por exemplo, o debate que vencesse na época dele fosse um debate essencialista que buscasse voltar a uma forma anterior, o próprio Fanon não teria espaço naquele processo, então ele também se debateu contra uma idéia essencialista de luta política, porque em última estância estava em jogo também a legitimidade dele enquanto intelectual numa luta cosmopolita que aglutinava árabes, judeus, berbéries, ateus, comunistas, cristãos e etc.

 

 

 

 

OM2ATO – Então, pode-se afirmar que Fanon foi derrotado em suas apostas político-intelectuais?

DMF: Depende qual é a nossa visão de história. Se a gente pensar a história de uma forma positivista, se pensarmos a síntese da dialética hegeliana como ponto de chegada e não como abertura de uma nova contradição, poderíamos achar que a aposta deu errado. Porque ele prometeu um novo mundo e a gente olha, inclusive para a Argélia, onde logo depois da morte dele a vertente que toma o poder é a vertente radical religiosa muçulmana e que vai inclusive retroceder quanto a conquistas das mulheres, quanto às liberdades religiosas e etc. Quando a gente olha Ruanda, ou quando olhamos as guerras civis… Então, se nós temos uma visão de história, que é uma visão da história estática e da luta anti-colonial como ponto de chegada da história, então a gente vai dizer que o Fanon errou na sua aposta. E tem gente muito respeitada que chega a essa conclusão.

 

Entretanto, se pensarmos a história como Slavoj Žižek vem propondo como um movimento contínuo, isso significa que a superação de uma contradição não é o fim das contradições, mas ela é a abertura para novas contradições. Daí, podemos dizer que a aposta do Fanon foi bem-sucedida, pois embora os problemas não tenham acabado, nada mais é como antes. Quando a gente olha a história da sociedade africana moderna, nada é mais como antes das lutas de libertação nacional. A Europa não é mais a mesma e nem a própria África é a mesma. Você tem frutos humanos, societários, que emergem daí. Há uma expansão de liberdade de percepção de si que emerge a partir daí.  O problema é que a superação de uma contradição é sempre uma abertura para novas. Mas isso não significa que não valeu a pena ter arriscado todas as fichas neste processo. Agora, também é verdade que alguns alertas que o Fanon fez naquela época não foram observados pelos movimentos. Isso significa que alguns fantasmas ainda nos assombram. O Fanon era uma pessoa muito preocupada com o neocolonialismo, já naquela época. E de certa forma a não observação daquilo que gera o neocolonialismo, por exemplo, a luta de classes na África, também criou uma série de problemas que ainda não estão resolvidos no continente africano. Ou mesmo essa necessidade de pensar a relação entre o uno e o múltiplo, como associar a diversidade política num contexto de unidade política, são questões que ele já estava problematizando que não foram equacionadas na época dele e que vão trazer grandes problemas para os momentos seguintes. Mas ainda assim, valeu a pena.

 

 

“A crítica do Fanon à negritude é uma crítica que não joga o bebê com a água suja do banho fora. Então também é uma crítica que coloca os limites da cultura, os limites políticos da cultura, mas não abre mão da cultura como elemento político numa luta de emancipação. O problema é a reificação da cultura como a própria luta. É como se preservar a cultura já fosse, por si só, dar conta da emancipação. Então é nessa crítica que Clóvis Moura é muito próximo do Frantz Fanon”.

 

 

OM2ATO – Conforme apontado no livro, não existe um “jovem” e um “velho” Fanon. Nessa toada, Fanon preocupado com questões existenciais e subjetivas – das suas primeiras publicações – dialoga com o Fanon atento aos processos políticos dos últimos textos. Assim sendo, conforme sua afirmação, “Fanon foi um pensador da dimensão subjetiva da realidade”. Você entende que ao propor o diálogo entre psicanálise, marxismo e existencialismo, ele contribuiu para pensar uma psicologia crítica?

DMF: Uma primeira questão, que é um desafio pra quem quer se debruçar sobre o pensamento de Frantz Fanon é a sua fragmentação. Fanon tem sido lido aos pedaços. Na década de 1960, o Fanon que era lido era o Fanon do Condenados da Terra, a partir de um olhar influenciado pela esquerda revolucionária que pensava contribuições para pensar a práxis revolucionário no terceiro mundo. Quando a idéia da práxis sai de cena na academia, e a própria academia passa a monopolizar a produção intelectual, já no século 21, Fanon volta à cena, mas agora não mais pelo livro Os Condenados da Terra, e sim por Pele Negra Máscaras Brancas. Ao mesmo tempo, as discussões revolucionárias que estavam presentes em Os Condenados da Terra deixam de existir e passam a ser secundarizadas, ou vistas como atrasadas, anacrônicas. Nesse momento, o Fanon que vai ser lido é o do Pele Negra Máscaras Brancas, que é um Fanon que discute a subjetividade, o desejo, a identificação e os símbolos. Essa diferença tem relação com os grupos e com as vertentes teóricas que protagonizam a retomada do autor. Então elas têm que ser pensadas assim. Mas elas têm um problema, ambas trazem Fanon pela metade. Reduzir o autor a Os Condenados da Terra é deixar de fora reflexões muito importantes sobre subjetividade, a relação entre tradição e modernidade, o afeto como elemento político. Mas ao mesmo tempo, fazer essa guinada e olhar só para Pele Negra Máscaras Brancas jogando fora a discussão da práxis é também pegar o Fanon pela metade. Então, uma necessidade que está posta neste contexto de retomada da leitura de Frantz Fanon no Brasil é a de pensar o autor como um todo, e de alguma forma entender a obra dele como um conjunto. E entender esse conjunto não é ignorar que há amadurecimentos ao longo da vida, enquanto ele escreve, mas que esse amadurecimento não nos autoriza a pensar em dois Fanons, por exemplo.

 

 

OM2ATO- Quem são as pessoas e movimentos influenciados por Frantz Fanon no Brasil?

DMF – Fanon é lido em várias instâncias. Ele foi lido tanto por uma esquerda muito influenciada pelo existencialismo das décadas de 1960 e 1970, como ele também influenciou uma certa abordagem do próprio problema nacional do Brasil. Então a gente tem, por exemplo, o Fanon influenciando pessoas como Paulo Freire, Glauber Rocha, o próprio Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). De certa forma, as reflexões que surgem a partir do Cinema Novo, até pelos debates que se faziam na época, trazem muitas provocações comuns ao pensamento de Fanon. E num período posterior, Fanon vai influenciar toda uma geração do movimento negro contemporâneo, que surge no Brasil na década de 1970. Mesmo quem não leu Frantz Fanon diretamente está sento influenciado por uma certa abordagem do seu pensamento. Mas temos autores que leram diretamente a obra de Fanon, como Márcio Barbosa e o Cuti, que juntamente com outros homens e mulheres (que infelizmente não me recordo todos os nomes agora) fundaram o Quilombhoje e os Cadernos Negros. Se a gente pensar nomes como Lélia González, Hamilton Cardoso, e o próprio Miltão, do MNU, são intelectuais que estão lendo diretamente as obras do Fanon e estão utilizando essa reflexão como um subsídio teórico para a luta política. Mas quando a gente vem para o século 21, esses autores perdem influência. Tanto na academia (onde eles nunca tiveram mesmo), mas principalmente na luta política, onde esses intelectuais negros perdem influência, embora sejam citados. Todo mundo cita Lélia González, mas não há um compromisso direto com a produção teórica que ela traz. Neusa Santos Souza é muita citada, mas também não há um olhar mais rigoroso. O próprio Clóvis Moura é um autor que cita Fanon e que é influenciado por ele. Mas de modo geral esses autores perdem influência no século 21, e quem começa a citar o Fanon no século 21 são intelectuais mais ligados a academia. E por estarem ligados a academia vão ter acesso não a esse Fanon da práxis do movimento negro, ou da práxis da esquerda, mas a um Fanon que vem por intermédio do pensamento pós-colonial britânico. E aí eu estou falando de Homi Bhabha, Spivak, Stuart Hall… Então o Fanon vai ser lido a partir da influência desses autores que o elegem como uma referência importante, e quem chega a universidade começa ter acesso a esse Fanon. Ainda assim, ele acaba influenciando importantes pensadores. É impossível entender um Valter Silvério, por exemplo, sem o Fanon. Também é possível encontrar Fanon numa Rita Laura Segato e em alguns autores que estão fazendo discussões importantes no campo das artes. Mas de certa forma é um Fanon muito mediado por essa leitura pós-estruturalista ou pós-colonial inglesa.

 

Eu acho que um desafio que podemos colocar, se pensarmos de forma mais contemporânea, é fazer com que Fanon seja lido para além dos seus mediadores. Inclusive a proposta do livro Frantz Fanon – Um Revolucionário Particularmente Negro, embora faça também uma mediação, é provocar uma curiosidade em relação a obra desse autor para que as pessoas divirjam do próprio livro e possam trazer outras provocações.

 

 

 

 

OM2ATO – Conforme apontado no livro, não existe um “jovem” e um “velho” Fanon. Dessa forma, Fanon preocupado com questões existenciais e subjetivas – presentes nas suas primeiras publicações – dialoga com o Fanon atento aos processos políticos, presentes nos últimos textos. Assim, conforme sua afirmação: “Fanon foi um pensador da dimensão subjetiva da realidade”, você entende que ao propor o diálogo entre psicanálise, marxismo e existencialismo, ele contribuiu para pensar uma psicologia crítica?

DMF: Em primeiro lugar, quem inventou essa coisa de um “jovem” Fanon e um “velho” Fanon foi um marxista chamado Cedric Robinson que, diante dessa verdade que o marxismo da década de 1960 lia Condenados da Terra, que é o último livro dele, e depois o pensamento pós-colonial, que é pós-estruturalista leu Pele Negra Máscaras Brancas, que é o primeiro livro. Pele Negra… fala mais de subjetividade e Condenados da Terra fala mais de práxis. Diante dessa constatação, Cedric Robinson vai dizer que Pele Negra… como primeiro livro, é uma obra mais filosófica, mais burguesa, um livro de juventude. Mas que depois ele amadurece e vai pensar a práxis. Portanto, para Cedric Robinson, existe essa separação entre um “jovem” Fanon e um “velho” Fanon. E essa separação é assumida por quase todo mundo que estuda Frantz Fanon no universo da língua inglesa: está num Homi Bhabha, num Spivak, e em vários pensadores contemporâneos mundialmente conhecidos por falarem de Fanon.

 

Particularmente, na minha pesquisa, não encontrei elementos que me autorizam afirmar que haja essa separação. Quando juntamos o conjunto dos textos do autor percebemos um Fanon que está olhando tanto pra dimensão objetiva quanto subjetiva da realidade. A gente está falando de um Fanon que está olhando tanto para a política como também para a dimensão política do afeto e para a dimensão afetiva da política. É um autor que está olhando pra economia, mas ele fala que não dá para entender economia sem a cultura, e que também não dá para olhar a cultura como algo em si.

 

Então, um dos desafios desse livro é apresentar um Fanon só. É mostrar que este Fanon é interdisciplinar, e é muito mais sofisticado do que uma certa tradição deu conta de lê-lo. Isso significa que, portanto, ele tem várias contribuições que vão da filosofia a psicologia, da ciência política até a economia. E pensar essas contribuições nos coloca alguns desafios. Por exemplo, o desafio para a psicologia no pensamento do Fanon é uma psicologia que se pense para além do indivíduo. A provocação fanoniana para a psicologia e pra psicanálise, é de uma psicologia que pense o indivíduo no seu contexto político, mas que também não reduza o indivíduo a este contexto político. E aí, de novo, a dialética é muito importante para entender esse movimento que ele faz entre singularidade, particularidade e universalidade humana, porque ao mesmo tempo em que eu sou individuo, eu sou único e irrepetível, e as minhas experiências e sofrimento psíquico são minhas, esse “eu” de “mim”, ele está dentro de um contexto, ele é ininteligível se eu não considero esse contexto que o meu sofrimento psíquico se dá. Eu inclusive não consigo nem pensar as respostas e as elaborações individuais sem entender em que contexto esse sofrimento psíquico se dá. E ao mesmo tempo, eu também não posso reduzir o individuo ao contexto, porque cada individuo continua sendo único e irrepetível, mas este único está dentro de um contexto. Olhar para o contexto não nos isenta de olhar que apesar do contexto nós temos coisas universais. Apesar de sermos pretos, nós ainda somos humanos, então algumas questões que nos remetem são comuns a todos os outros humanos. Então, essa relação dialética entre singularidade, particularidade e universalidade é fundamental para entender o Fanon, e é uma grande contribuição para a psicologia crítica, mas também para a sociologia, pra filosofia que é pensar o sujeito integral e não só na sua dimensão individual.

 

 

 

 

OM2ATO – Na participação de Fanon no I Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros, com a fala desdobrando o tema “Racismo e Cultura”, é expresso que a mumificação cultural é a mumificação do pensamento individual e, portanto, há um dinamismo na cultura que deve ser levado em consideração – apontando para os riscos de “retornos” apaixonados a uma cultura “original” subjugada. Na esteira de Fanon, como pensar as críticas correntes em relação à apropriação cultural de elementos das culturas negras no Brasil?

DMF – O Fanon é um autor do movimento de negritude, mas é um autor crítico a esse movimento. Ele entende a importância da cultura, mas ele reafirma o tempo inteiro o limite da luta política. Isso significa pensar política e cultura como relação e não como algo em si. Se a gente pensa política e cultura como relação, isso nos obriga a pensar, em primeiro lugar, a cultura como movimento, não como algo catalogal. Quer dizer, eu posso catalogar uma cultura, mas enquanto eu coloco esse catálogo as próprias pessoas que produziram a cultura já estão em um outro lugar. Então, o catálogo é sempre a foto, ou uma aproximação de um momento. E uma das críticas do Fanon é um olhar sob a cultura que vê a cultura como algo que cabe num catálogo e confunde o catálogo com a própria cultura. E, ao confundir o catálogo com a cultura, ao tentar preservar a cultura, ao invés de preservar a cultura real que está em movimento, eu preservo o catálogo. Sendo que a própria cultura está em outro lugar que o catálogo não dá conta de preservar. Então essa é uma questão. Mas a outra questão é resumir a luta política à cultura. Porque embora não exista política sem cultura e nem cultura sem política, a preocupação dele é que há uma vertente no movimento que está reduzindo isso à luta política.

 

O termo apropriação cultural pode levantar várias questões. Em primeiro lugar, é da ordem do humano se apropriar da cultura, porque a cultura só existe se a gente se apropria, caso contrário a cultura morre. Determinados símbolos e significados precisam ser apropriados para que eles continuem atuando enquanto significante. Então, não dá pra pensar uma cultura sem apropriação. O próprio termo leva alguns erros analíticos na hora de pensar a cultura. Toda cultura precisa ser apropriada. A questão que o Clóvis Moura traz, mais do que o próprio Frantz Fanon inclusive, são os contextos políticos dessa apropriação. A gente pode se perguntar, por exemplo, quando uma empresa de cerveja financia uma escola de samba e exige que a escola de samba coloque uma maquete da cerveja no meio do desfile a gente está discutindo um contexto em que o capital está se apropriando de elementos culturais em função de elementos que são externos àquele contexto que essa dada cultura foi produzida. Então, a pergunta se dá mais por qual contexto a apropriação se dá, do que pela própria apropriação em si. E, ao olhar o contexto, eu preciso olhar além da cultura. Eu não posso olhar a cultura em si. Eu preciso olhar quais são os jogos políticos, econômicos, sociais, que permeiam essas apropriações. Mas eu não posso perder de vista que a apropriação é sempre mais dinâmica do que as próprias intenções sobre ela. Ainda refletindo sobre uma questão apontada pelo Clóvis Moura, é possível afirmarmos que, por mais que os europeus brasileiros, os eurodescendentes no Brasil, quiseram estigmatizar a cultura negra, ainda sim a cultura negra resiste – mais do que isso – por mais que eles vissem a cultura negra como inferior eles também foram influenciados pela cultura negra. A contribuição do Gilberto Freyre, apesar de todo racismo, elitismo e distorções é dizer que o Brasil é impensável sem a cultura negra. Porque a cultura é tão dinâmica, e tão difícil de se colocar em um cercado, que mesmo na situação colonial o cristianismo foi enegrecido, por exemplo. Por mais que se tentou criar todas as formas de barreira pra isso. Então, isso coloca um desafio muito mais complexo do que só defender a cultura negra atacada. É também entender o quanto a cultura negra infectou essa limpeza branca, o quanto que a cultura negra ocupou o nosso jeito de ser brasileiro, mesmo que não sejamos negros. E nós precisamos falar disso também, porque se eu reduzo a política à cultura, e eu só penso que a cultura negra foi negada, então eu tenho que valorizar a cultura negra, e quem detém a cultura negra é o negro. Assim eu perco de vista que a cultura negra é muito maior que a dimensão política que a luta negra precisa afirmar. Entretanto, olhar para essa dimensão dinâmica da cultura não pode nos fazer ser inocentes, senão caímos no mito da democracia racial, e a gente perde de vista as clivagens políticas e econômicas que ainda deixam o negro de fora. O Clóvis Moura fala disso: todo mundo vai pro carnaval! O Brasil pára ante o carnaval feito nos moldes da cultura negra, mas ainda assim – o Clóvis Moura retorna a poesia do Solano Trindade – “apesar da negra ser a rainha durante quatro dias, no resto do tempo ela vai ser a empregada”. E se a gente for mais longe, olhando algo que o Clóvis Moura já estava denunciando, até esse lugar de rainha a negra está perdendo. Então, de novo, eu acho que o que está em jogo é pensar que não dá para olhar para a política sem a cultura, mas não dá pra reduzir a política à cultura, porque existem uma série de determinações que a perpassam e que precisam ser pensadas neste jogo de apropriação, que é muito mais do que “ah, os brancos agora estão usando turbante”; é muito mais que isso. É realmente entender quais são esses contextos de apropriação e o que pode ser conveniente politicamente num projeto político negro, e o que pode ser uma armadilha nesse projeto político negro. Acho que a questão é mais aí do que se há apropriação ou não, porque um dos dados da humanidade é a apropriação. A humanidade sempre se apropriou, e os gregos se apropriaram não só porque roubaram, eles se apropriaram porque eles foram influenciados pela cultura egípcia, e os egípcios também foram influenciados por todos os outros povos que eles tiveram contato, inclusive com outros povos de fora da África. Então é isso, a apropriação é um dado humano. O Candomblé, esse Candomblé que surge no Brasil, por exemplo, que é uma mistura de várias religiões africanas, também tem elementos islâmicos. Pensar apropriação é muito mais do que só olhar a cultura como algo colado nas pessoas e pensar que quando alguém de fora daquele grupo pega aquilo ele está se apropriando, é muito mais do que isso. A cultura é muito mais que isso e precisamos nos atentar a essa complexidade.

 

 

“Eu acho que um desafio que podemos colocar, se pensarmos de forma mais contemporânea, é fazer com que Fanon seja lido para além dos seus mediadores. Inclusive a proposta do livro Frantz Fanon – Um Revolucionário Particularmente Negro, embora faça também uma mediação, é provocar uma curiosidade em relação a obra desse autor para que as pessoas divirjam do próprio livro e possam trazer outras provocações”.

 

 

OM2ATO – O debate sobre o campesinato e lumpemproletariado proposto por Frantz Fanon ainda tem validade analítica para pensarmos o Sul Global contemporâneo?

DMF: Em primeiro lugar, quando a gente lê Condenados da Terra, há uma aposta de Frantz Fanon no campesinato e no lumpemproletariado pra pensar o sujeito revolucionário num país de terceiro mundo, que era o termo que ele utilizava. Essa aposta vem de uma pergunta dele: “quem é capaz de levar até as últimas conseqüências um processo de transformação numa sociedade desigual?”. E a resposta dele não poderia ser o operário nos termos que o partido comunista estava apostando na época, que é o operário fabril. Na colônia, os operários eram 5%, 10% no máximo, em muitas vezes brancos que estavam em condição de superioridade econômica frente à população negra. Então quem poderia ser? O interessante desta questão não é a resposta que o Fanon dá, porque a resposta dele é o campesinato. O interessante desta questão é a pergunta que ele faz, e que era uma pergunta que não era feita pela esquerda, porque era uma esquerda que se pautava por um modelo – a questão é se o modelo era russo, soviético, chinês ou iugoslavo – e o que ele está dizendo é que a emancipação política não pode vir de um modelo, ela tem que vir de uma observação direta da realidade concretamente vivida, historicamente vivida. Por isso, o Fanon é muito contemporâneo, porque nos coloca várias questões. Numa sociedade como a nossa em que o próprio capitalismo se organizou a ponto de o lugar do operariado, embora ainda tenham elementos fordistas, não é exatamente fordista como foi há cem anos atrás, ou como foi na época do Henry Ford, você tem outras dimensões de exploração de mais valia. Então a pergunta do Fanon não é só para os pretos, é uma pergunta pra própria esquerda que é: “como olhar as contradições de classe em cada contexto específico que a gente estiver olhando?”. Porque se a resposta não vem da própria realidade ela não responde. Acaba sendo uma resposta que não é capaz de olhar para as possibilidades reais e extrair dela as saídas possíveis. Então, a crítica do Fanon, é uma crítica que aponta pra isso. Por isso que eu digo que o mais importante dele não é a resposta, mas sim a pergunta. E eu acho que essa não é uma tarefa só para os negros, é uma tarefa pra qualquer movimento, e é uma tarefa que a gente vai ter que se fazer hoje, por exemplo, olhando pro Brasil que está dando a famosa guinada à direita, e que o movimento negro diz para o negro que vota no Bolsonaro que ele é racista, e o negro diz: “não, ele não é racista”.  Isso vai exigir que a gente olhe pra essa realidade. Essa realidade que o próprio movimento negro não está na favela, mas a igreja está. Então a gente vai ter que se perguntar, nesse contexto que é o nosso, que não é o do Fanon, que não é o do MNU da década de 1970, quais são as possibilidades de caminhos de onde a gente pode extrair alternativas. Porque se eu continuo num modelo, não importa se o modelo é preto ou é branco, eu estou ainda trazendo uma resposta pra uma realidade onde ela não se encaixa e não se encaixará e estará fadada ao fracasso. Portanto, o Fanon é muito contemporâneo. Ao mesmo tempo ele traz questões, que embora sejam da época dele, são muito caras. Por exemplo, um dos erros que o Fanon aponta, não só no movimento de negritude, mas no movimento de libertação nacional, é a não observação da contradição de classe no interior da luta por libertação nacional. Para ele, a dimensão econômica continua lá, embora o colonialismo pressupõe tratar todos os negros como uma coisa só, e a luta anti-colonial pressupõe que o negro se entenda como unidade para além de todas as diferenças. Ao mesmo tempo, se as lutas de libertação ignoram que o interesse do negro burguês – na África pelo menos – não é mesmo do que do negro trabalhador, se a questão de classe perde, também essa burguesia que foi criada pelo próprio colonialismo não vai levar a luta política até as últimas conseqüências, por mais que ela seja anti-branca, por mais que ela declare amores incondicionais ao negro, ela também tem interesses materiais que a impedem de levar a luta anti-colonial até as últimas conseqüências. Então, a não observação da dimensão de classe, para o Fanon, resulta inevitavelmente no neo-colonialismo, porque essa elite que apoiou a independência por não querer mais o branco no poder, essa burguesia colonial africana, para o Fanon, do ponto de vista de classe o que ela busca é se colocar como a nova intermediária, mas não acabar com as contradições que estavam postas. Pro Fanon seria um absurdo dizer que a luta de classes não é uma questão da África, pra ele, a não observação da luta de classes pode levar a catástrofes.

 

Agora, se a gente pensar de um ponto de vista mais amplo, a economia política do ponto de vista da teoria do valor trabalho não é algo explorado pelo Fanon, não havia contexto pra isso, embora ainda assim ele olhe pra determinação material do capitalismo na colônia. Por exemplo, pra falar que, se a revolução não considera essa determinação material da economia inclusive na colônia, a revolução falha. Porque a própria economia foi organizada em função do colonialismo. Aquilo que se planta, aquilo que se colhe, não se colhe em função das necessidades locais, mas se planta e se colhe em função das necessidades da metrópole. Então, a descolonização também pressupõe uma revisão da produção. Porque mesmo que seja um governo independentista, afrocentrado, revolucionário, se ele não reorganiza a produção, a produção ainda continua voltada para os interesses de fora, eu ainda tenho um tipo de organização econômica que transfere o excedente pra fora, ou que não consegue reinvestir o excedente internamente pra um aquecimento econômico, então a gente está falando de teoria do valor trabalho. Não é verdade que o Fanon seria um politicista nestes termos em que o politicismo vai se estabelecer no terceiro mundo como um todo, porque ele está olhando sim, para a teoria do valor, mas é óbvio que ele não vai aprofundar isso porque não havia contexto. Mas a preocupação está colocada em os Condenados da Terra de forma muito explicita, e eu acho que vale a pena voltar para essa preocupação porque ela inclusive aproxima o Fanon de um Florestan Fernandes, quando ele vai discutir a descolonização interrompida lá num circuito fechado, aproxima o Fanon de um José Chasin, quando o Chasin vai discutir a via colonial de entificação  do capitalismo no Brasil em detrimento da via clássica. Então, eu acho que o Fanon é muito mais marxista do que se pensa na hora de se pensar a realidade concreta da colônia, mais marxista do que o próprio partido comunista foi na época em que, ao invés de partir do real pra pensar as possibilidades, partiu de um ideal e não conseguia dialogar com essa realidade que é colonial e que trás inclusive dinâmicas coloniais para a luta de classes.

 

 

“Pensar apropriação é muito mais do que só olhar a cultura como algo colado nas pessoas e pensar que quando alguém de fora daquele grupo pega aquilo ele está se apropriando, é muito mais do que isso. A cultura é muito mais que isso e precisamos nos atentar a essa complexidade”.

 

 

OM2ATO –  Como você já apresentou, a recepção de Fanon no Brasil deu-se primeiramente em favor da “descolonização do Terceiro Mundo” –  a partir das leituras dos livros Os Condenados da Terra – e  mais recentemente em vista da “desalienação negra” a partir da leitura do livro Pele Negra, Máscaras Brancas. A tradução dos outros livros não publicados em língua portuguesa pode auxiliar na compreensão mais unitária da obra de Fanon?

DMF: Algumas coisas que acontecem aqui também refletem nos debates feitos nas décadas de 1960 e 1970 no universo francófono e a partir da década de 1990 nos Estado Unidos. E nesses dois lugares todos os livros estão lá à disposição e ainda assim essa separação do Fanon do Pele Negra, Máscaras Brancas e do Fanon de Os Condenados da Terra se mantém. Então, talvez, essa separação não é só fruto apenas do desconhecimento dos textos, mas de um certo enquadramento que, ou visualizava a práxis como a única contribuição e desconsiderava as outras coisas, ou agora desconsidera a práxis e aposta na subjetividade como única questão. Tem mais relação com as vertentes teóricas que mobilizaram do que com a disponibilidade da obra. Mas ainda assim, a disponibilidade da obra faz toda a diferença na riqueza do debate internamente.

No Brasil, e neste caso não só em relação ao Fanon, há uma grande carência de textos muito importantes que são de conhecimento comum pra quem lê em inglês ou francês, mas que não chegam ao público que não domina essas línguas. Traduzir essa obra seria fundamental. Aliás, o livro A Sociologia de Uma Revolução, é um livro que poderia ser lido num curso de etnografia, de sociologia, não para discutir raça, nem África, mas pra discutir sociologia, porque é de uma profundidade… a abordagem, a forma de fazer pesquisa, enfim, os temas que são trazidos, a relação de política e cultura, relação de gênero no contexto político, a relação entre tradição e modernidade, são questões muito caras e que ofereceriam subsídios para vários debates contemporâneos.

 

Então, só o racismo explica esses livros não serem problematizados. E aí é necessário dizer que o racismo também deixa marca no mercado editorial. Quando a gente pensa o custo de uma tradução e quais as editoras que tem recursos para fazer essa movimentação, a gente pode se perguntar também quais são os textos eleitos para circularem, para serem traduzidos e publicados, quais são os grupos, vertentes teóricas e interesses epistêmicos por de trás de cada escolha. Acho que pensar a invisibilidade dessas obras nos remete a uma discussão sobre quem tem o poder de decidir qual livro é traduzido. Essa é uma pergunta que não é endereçada apenas ao Fanon, mas para vários outros autores, negros e brancos inclusive, e para vários outros debates que são fartamente presentes em outros lugares, mas que no Brasil não está presente.

 

Agora, é lógico que o aumento de negros nas universidades nos últimos anos começa a provocar também uma curiosidade com relação a alguns temas, e algumas editoras, ou o próprio mercado editorial, também tem estado de olho nesse possível mercado, que embora não seja tão grande assim, é possível pensar que jogos são possíveis diante disso, no sentido de cavar espaço nas editoras  pra que algumas obras circulem.

 

Ao mesmo tempo, se estamos atrasados em alguns debates, nós também temos debates no Brasil que só existem aqui. Portanto, também não podemos achar que só lá fora que se produz teoria. Tem coisas aqui que as pessoas vêm de várias partes do mundo para olhar, para ver o Brasil, quer dizer, o Brasil tem uma produção muito frutífera do ponto de vista da produção teórica, mas ao mesmo tempo tem uma série de outras questões que só são acessíveis quando algumas pessoas brasileiras conseguem sair do Brasil e ter acesso a esse mercado internacional. Então é uma questão que a gente precisa encarar.

 

 

 

 

 

 

 

Felipe Choco e Márcio Farias

FELIPE OLIVEIRA CAMPOS (CHOCO) é mestrando no programa de Estudos Culturais – EACH/USP. Graduado em Ciências Sociais no CUFSA, também é educador social há mais de 10 anos. Atualmente trabalha no Museu Afro Brasil. ------- /// -------- MARCIO FARIAS é doutorando em Psicologia Social, é trabalhador do Museu Afro Brasil, professor convidado do Celacc /Usp e Integrante do Instituto Amma Psique e Negritude.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.