setembro de 2018
GESTOS CONTUNDENTES – ARTE, PODER E PLURALIDADE NO FIT: UMA CONVERSA COM A EQUIPE CURATORIAL DA 14ª EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE BELO HORIZONTE
Redação
Detalhe do espetáculo-performance
Looping Bahia Overdub (BA)
foto Patrícia Almeida
Uma proposta curatorial que expande as noções de artes da cena, sobretudo de teatro, e apresenta ampla programação com apresentações, debates, palestras, oficinas e outras formas de mediações culturais, marca a 14a edição de um dos mais proeminentes festivais de teatro do país. Com uma programação abrangente nos conteúdos nacionais e internacionais, grupos e artistas de países da América Latina, Europa e do Continente Africano compartilham repertórios estéticos, poéticos e linguagens durante os 10 dias de programação. O painel de espetáculos nacionais promove uma navegação em territórios mais amplos das geografias brasileiras – Piauí, Tocantins, Rio Grande Do Norte, Bahia, entre outros, além de um conjunto forte focado na cena mineira.
Essa programação também evidencia as diversas encruzilhadas para a proposição da arte enquanto janela para a imaginação.
O alargamento proposto aparece não apenas na pluralidade de discursos, mas nos formatos cênicos, no engajamento com a população e na ativação do espaço público.
Compartilham o leme dessa embarcação três mulheres negras, duas mulheres brancas e um homem negro – pluralidade bastante incomum nos espaços diretivos de grandes festivais. As curadoras Grace Passô, Luciana Romagnolli e Soraya Martins, dialogam com as curadoras assistentes Daniele Ávila Small, Anderson Feliciano e Luciane Ramos-Silva, desenvolvendo uma proposta que intenta “atender urgências históricas e sociais de indivíduos e grupos não neutros, recusando o lugar comum de que exista um ‘sujeito padrão’ que possa servir de exemplo ou determinar a experiência de vida das demais pessoas”.
Se a prática curatorial mostra-se como um lugar de frequentes discursos hegemônicos e relações de poder, a diversidade do próprio grupo de curadoras parece apontar para desconstruções necessárias em um Brasil de supressões e autoritarismo.
Sendo o teatro um constante deslocamento para a construção de si e do mundo, o FIT 2018 pode apontar caminhos possíveis para visibilizar criticamente formas de existência com funduras africanas, indígenas, latinas e de toda a pluralidade que hoje protagoniza as produções contemporâneas espalhadas pelo país ainda ausentes nas pautas que envolvem o teatro brasileiro.
Em entrevista, Luciana Romagnolli, Soraya Martins, Daniele Ávila Small e Anderson Feliciano falam sobre os processos, escolhas e travessias.
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Cena da montagem “Unwanted” (França / Ruanda). foto Guto Muniz
O MENELICK 2º ATO: Quais foram os grandes desafios para colocar em prática um desenho curatorial dessa natureza?
LUCIANA ROMAGNOLLI: Um primeiro grande desafio foi o tempo restrito da curadoria. Buscar trabalhos artísticos que rompam com esses padrões hegemônicos exige tempo de pesquisa, pois nem sempre circulam pelos grandes circuitos. Fizemos o primeiro desenho da curadoria em menos de dois meses, com orçamento apertado para a quantidade de ações que precisávamos cumprir por edital, o que limitou as viagens dentro do Brasil e não nos permitiu realizar viagens internacionais. Somamos a isso o momento político extremo do país, em que o desmonte da cultura (já historicamente subatendida), feito nos últimos dois anos e meio, afetou gravemente a produção cênica.
Bate-papo com Maurício Tizumba (BH). foto Dila Puccini
OM2ATO: Em tempos de avanço de discursos conservadores a arte torna-se um espaço privilegiado para provocar fissuras nas estruturas. Os festivais de grandes proporções e recursos como o FIT, tendem a produzir discursos simpáticos ou adequados às perspectivas hegemônicas e, portanto, brancas. Existe uma crítica direta à branquitude no projeto curatorial?
DANIELE ÁVILA SMALL: A predominância de trabalhos capitaneados por homens e por pessoas brancas (em esmagadora maioria por homens brancos) nos festivais de teatro é um problema a enfrentar. Mas este não é um problema só das mulheres, das pessoas cujos gêneros escapam a esta relação binária, das pessoas negras, indígenas ou não brancas. Este monopólio criativo e de produção – uma outra forma de monocultura – é um problema social, que limita o acesso de todos a uma rica diversidade de produção artística e de conhecimento. É perversa a cultura que diz que é natural que seja assim. Não é natural. É um projeto nitidamente desenhado e posto em prática ao longo de séculos com diversas camadas de violência. E é ainda mais perverso o discurso que se defende alegando que as curadorias devem ser pautadas pela qualidade das obras – como se a associação entre o masculino, a branquitude e essa tal qualidade fosse uma coisa dada. Qualidade pode ser um conceito bem escorregadio, falsamente neutro, falsamente universal, que contribui para perpetuar as perspectivas hegemônicas nas artes. Talvez a crítica à branquitude que pode aparecer na curadoria do projeto Corpos-Dialetos esteja, por exemplo, no gesto de romper com esta inércia de pensamento que toma o contexto hegemônico como o único possível, ou na aposta em uma ampla gama de “qualidades” que não podem ser medidas por uma única régua.
Ludmilla Ramalho, de Minas Gerais, em cena da performance “Fuck her”. foto Guto Muniz
OM2ATO: A curadoria, quando concebida a partir de uma perspectiva coletiva, pode potencializar a perspectiva da multiplicidade, já que coloca lado a lado diferentes formas de ver e sentir. Como foi esse processo?
LUCIANA ROMAGNOLLI: Sem dúvida. A maior riqueza desse processo foram as reuniões com toda equipe de curadoria, cinco mulheres e uma bicha, quatro pessoas negras e duas brancas, três belo-horizontinas, uma curitibana radicada em BH (eu), uma carioca e uma paulistana. Cinco delas artistas, três críticas de teatro, uma bailarina, uma jornalista, etc. Cada uma com uma vivência e um modo de sentir, entender e se posicionar distinto, mesmo quando nos unia o desejo de uma curadoria que ampliasse as presenças de mulheres e pessoas negras que fazem as artes cênicas.
Salloma Salomão, músico, pesquisador, africanista e Doutor em História Social, durante a oficina ‘Negritar – Teatros Orais, Literatura Teatrais e Dramaturgias Negras no Brasil: 2018 -1900’. foto Denílson Cardoso
OM2ATO: Vivemos um momento crucial na produção das artes negras no qual não se discute exclusivamente “o que é arte negra”, mas procura-se visibilizar uma ampla anunciação criativa. Qual o lugar do debate crítico sobre estética e poética nesse contexto?
SORAYA MARTINS: O lugar do debate crítico sobre estética e poética dentro dessa anunciação criativa é central, uma vez que é a partir também desse debate, creio eu, que questionamos e fissuramos essencialismos (de ser negra e negro, de “arte negra”) e nos abrimos para lugares outros na organização do sensível, estabelecendo outros discursos éticos e estéticos e a possibilidade mesma de trazer para esses lugares de debate a partilha do sensível, das fissuras e ressignificações estéticas das nossas (negras) fúrias, melancolias, dores e traumas, que entram na disputa por narrativas e estéticas outras, plurais e sem amarras; por emergência do novo de onde se pode refletir sobre subjetividades, singularidades, quereres, imposições, gênero, questões raciais e sociais, afetos correlatos e também reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum sem ser igual.
Cena da montage “Ceci n’est pas Noire!” (Bélgica, Inglaterra, França). foto Camilla Greenwell
OM2ATO: Como estão posicionadas as questões de gênero? Pautar gênero significa não apenas trazer espetáculos que debatam o tema, mas também olhar criticamente para aqueles trabalhos que frequentemente deixam transparecer masculinidades normativas, por exemplo, vocês concordam?
ANDERSON FELICIANO: Desde o início, nos propusemos ao estimulante desafio de pensar as questões de gênero como uma das norteadoras do pensamento curatorial. Acreditávamos, e ainda acreditamos, que deslocar e posicionar as questões de gênero no mesmo patamar das outras ampliariam nossa noção de realidade e consequentemente nos possibilitaria curar uma programação capaz de dialogar com um número mais significativo de nossa sociedade, restabelecendo assim o papel mais importante de um festival que se propõe ser internacional.
Sim. Concordamos e esse também foi um dos critérios que pautaram nossa curadoria.
Cena de “Libertacao”, do duo Hotel Europa (Portugal e República Checa). foto Andre Amalio
OM2ATO: As ” ações reflexivas”, um dos eixos do Festival, trazem que tipo de profissional e como se estabelece a relação com os trabalhos artísticos apresentados e com o público?
SORAYA MARTINS: As ações reflexivas do Festival trazem profissionais que estão em diálogo crítico e reflexivo com o conceito curatorial. São profissionais que, acima de tudo, tecem/elaboram pensamento-criação que fissura uma lógica contra-hegemônica, trabalham, por exemplo, na direção de ampliar e questionar imaginários identitários, geográficos, de gênero, de classe social; friccionar e reelaborar, constantemente, seus trabalhos artísticos esteticamente, pensando estética na sua pluralidade, em relação e expansão; de expandir a noção de teatro, de teatro brasileiro; e de investir na potência dos corpos, singular e coletivamente. Nesse sentido, os profissionais que compõem as “ações reflexivas” estão em relação direta com os trabalhos escolhidos pela curadoria, que trazem uma resposta ou, pelo menos, uma tentativa de resposta estética que se propõe a dialogar com a realidade do país e ampliar imaginários sociais.
“Looping: Bahia Overdub”, espetáculo-performance apresentada na abertura do FIT 2018. foto Patrícia Almeida
OM2ATO: Como foi o exercício curatorial de seleção de produções que muitas vezes abdicam da própria subjetividade para colocar a sua arte a serviço de uma causa coletiva? Até que ponto essa escolha afeta a construção poética dos grupos?
LUCIANA ROMAGNOLLI: Antes de tudo, não considero que seja possível, nem para artistas, nem para quaisquer sujeitos (cientistas, jornalistas, juízes etc.), de fato, abdicar da própria subjetividade, pois é a partir dela que experimentamos o mundo e atribuímos sentido às coisas. Mas somos sujeitos intersubjetivos, e é esse aspecto da relação do eu com o mundo social (ou do eu com os outros) que sobressai em trabalhos artísticos que se propõem a elaborar formas críticas para as narrativas hegemônicas. Estas que naturalizam a perspectiva branca, patriarcal e heteronormativa como suposta universalidade – o que sustenta, simbolicamente, seus lugares de poder. Nesse sentido, penso que não se trata de colocar a arte a serviço de uma causa, mas, sim, mais fundamentalmente, de fazer arte a partir das muitas vivências que transbordam esses padrões restritivos. Na nossa curadoria, buscamos trabalhos artísticos atravessados por algumas dessas perspectivas, para apresentar uma visão mais ampliada de teatro.
Cena do espetáculo “O Grito do Outro – O Grito Meu!”, da Cia. Espaço Preto. foto Jenfs Martins
OM2ATO: Qual o papel da escrita crítica proposta durante o festival? Contem-nos sobre como isso se dará e qual o objetivo?
DANIELE ÁVILA SMALL: Convidando profissionais para fazer uma cobertura crítica e reflexiva da programação, o FIT Belo Horizonte se alinha a uma prática que tem se mostrado fértil nos festivais de artes cênicas no Brasil. Já faz alguns anos que determinados festivais estão assumindo a responsabilidade sobre a produção de conhecimento e a reflexão crítica sobre as peças que compõem a sua curadoria. Não apenas pela drástica diminuição do espaço da crítica no jornalismo impresso, mas também pela necessidade de estender a visão sobre as peças para além da perspectiva jornalística. Nesta edição do FIT, convidamos profissionais de diferentes cidades: Natal, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, além de Belo Horizonte, que são de gerações, lugares sociais e áreas de conhecimento diversas – como teatro, dança, cinema e história – tendo em vista a pluralidade de questões e pontos de partida das próprias obras. O papel dessa crítica é prolongar a relação dos espectadores com o festival, colaborando para aprofundar o vínculo do público com a produção artística, a fruição estética e com o próprio pensamento crítico, ampliando as possibilidades do olhar sobre a arte.
Luciane Ramos-Silva, Anderson Feliciano, Daniele Ávila Small, Grace Passô, Luciana Romagnolli e Soraya Martins: equipe curatorial da 14ª edição do FIT. foto Ricardo Laf
OM2ATO: Os espaços e sujeitos da arte hegemônica tem afirmado um certo desassossego em relação às políticas de identidade que atravessam o fazer artístico. Se a arte é experiência de vida, será possível desassociar essas políticas do fazer artístico? (compreendendo identidade numa perspectiva ampla, desligada de essencialismos). Porque as políticas de identidade incomodam tanto alguns setores do pensamento sobre arte?
ANDERSON FELICIANO: Não acredito ser possível desassociar “essas políticas do fazer artístico”, entretanto, acredito que cabe ao artista encontrar na elaboração de sua poética um modo de trabalhá-las esteticamente, não abrindo mão da liberdade como condição primeira e inalienável de toda produção artística.
Há algum tempo, tenho me feito essa pergunta. Por que as políticas de identidade incomodam tanto? Ainda não consigo formular uma resposta, mas desconfio que o tal incômodo se dá pela perda de privilégios que resultaria da aceitação da mesma. Reconhecer a extraordinária diversidade de posições subjetivas, experiências sociais e identidades culturais que caracterizam uma perspectiva não essencialista dessas políticas reconfiguraria o mapa das artes, deslocando e fissurando um pensamento colonial que não dá conta, ainda, de compreender que “a parte, o individual, a espécie, o singular não se separam, enquanto diferenças, do todo, do grupo, do gênero, da natureza comum ou universal”.