outubro de 2011
DEMOCRACIA MOÇAMBICANA: LUCRÉCIA PACO E O TEATRO COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Christiane Gomes
Quando criança, ela gostava de cantar e dançar as músicas características de sua aldeia, o que era severamente reprimido na época. A língua a ser falada, as músicas a serem cantadas e dançadas deveriam ser as do colonizador português. Estamos no começo dos anos 70, em Moçambique, África. Desde então, muita água passou por baixo dessa ponte. Em 1975, o país conquistou a independência, se libertando do domínio de Portugal. Foi aí que a arte se transformou em ferramenta, usada pelo novo governo socialista, para unificar uma nação que falava 24 línguas diferentes, fora os dialetos. A menina podia, enfim, ser livre para ser o que era.
Mas isso durou pouco. Em 1976, as disputas internas levaram o país a uma sangrenta guerra civil que, além de arrasar o país, deixou mais de 900 mil mortos. O conflito se estendeu até 1992. Foram anos difíceis. Mas a arte seguia sendo instrumento de conscientização e conhecimento para o povo moçambicano. E a menina que gostava de celebrar sua cultura através da dança e da música, escolheu o teatro como forma de ação política e de descoberta da vida que iria seguir.
A história do teatro contemporâneo em Moçambique se mistura com a história de vida de Lucrécia Paco. Em meio à guerra civil, a linguagem teatral se desenvolvia para criar um teatro genuinamente moçambicano. Para isso, Lucrécia foi uma das fundadoras do grupo Mutumbela Gogo, em 1986, primeiro grupo profissional de teatro de Moçambique e que segue em plena atividade até hoje.
Uma das mais conhecidas atrizes moçambicanas, Lucrécia já percorreu mundo afora apresentando seu trabalho. No Brasil, esteve pela primeira vez em 2009, quando a convite do Instituto Itaú Cultural participou do projeto Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito, com a peça Mulher Asfalto. De volta ao país em 2011 para novas apresentações do mesmo espetáculo, Lucrécia, em passagem por São Paulo, recebeu O Menelick 2ºAto para uma troca de idéias. Na conversa, permeada por diferentes sotaques da língua portuguesa, falamos sobre a força social do teatro em Moçambique, suas características, a influência da oralidade e o trabalho desenvolvido em parceria com autores moçambicanos como Mia Couto.
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O Menelick 2ºAto – Como nasceu à artista Lucrécia Paco?
Lucrécia Paco – Sempre gostei muito de acompanhar as festas e os ritos de minha aldeia. Quando entrei para escola, tive um choque muito grande. O que era a minha vida, lá, era proibido. Nesta época meu país ainda não tinha conquistado a independência e o sistema educacional era muito repressivo. A palmatória era usada constantemente e eu apanhava muito por usar o meu verdadeiro nome, ou seja, o nome dado em minha aldeia. Quando o país conquista a independência, em 1975, o novo governo adota o conceito de homem novo; a criação de uma consciência nacional através da cultura. É quando começam a surgir grupos artísticos polivalentes. E eu, que antes tinha sido repreendida por cantar e dançar as minhas canções, também entrei nesse movimento. E foi neste momento que voltei a cultivar minha cultura sem medo. Grupos artísticos se criavam nos bairros e a idéia de unificação do povo moçambicano através da cultura fez com que houvesse um intenso intercâmbio entre as práticas culturais do norte e do sul do país. Daí comecei a cantar, a dançar, a declamar poemas.
Entretanto, logo após a independência tivemos mais uma guerra que durou anos. Voltamos à estaca zero. Nessa fase a gente não cantava, não dançava, a comida era escassa.
OM2ºAto – Houve então um retrocesso. Como você lidou com isso, no momento em que sua liberdade artística estava brotando?
LC – Assistia a muitos filmes soviéticos. Havia uma grande importação de filmes socialistas. De tanto ir ao cinema ver esses filmes, me despertou ainda mais a vontade de ser atriz. Nessa época tinha uns 12 anos e ficava muito entusiasmada com o cinema. A gente, ou melhor, esses movimentos de exaltação da independência, tinham uma necessidade de criar também uma imagem, uma figura de um anti-herói. Esse personagem, que era representado em pequenas esquetes teatrais, se chamava Chico Nhoca. Algo que pode ter uma similaridade no Brasil com o Macunaíma. Então, fazíamos pequenas peças sobre o que era ser moçambicano. Esses grupos, nos anos 80, trabalhavam nas fábricas, nas empresas. Claro que antes disso havia teatro no país, mas era um teatro que não falava da realidade, que não contava as nossas histórias. A primeira vez que tive acesso a um teatro próximo a mim optei por entrar para a vida teatral. Isso foi em 1984, quando Manuela Soeiro me convida para integrar o grupo Mutumbela Gogo, onde estou até hoje.
OM2ºATO – Nós aqui no Brasil temos pouca informação sobre a cena cultural africana. Fale um pouco da realidade do teatro em Moçambique.
LP – Com a independência em Moçambique, o teatro ganhou essa função (que continua tendo até hoje) de fazer a crítica social, de conscientizar o povo. Como já contei, surgem então os grupos nas empresas, nos bairros. Entretanto a Manuela Soeiro tinha a preocupação de que esses grupos tivessem uma continuidade. Como eram amadores, acabavam caindo no esquecimento. O maior desafio então era fazer um teatro profissional. Para isso, criamos uma padaria para sustentar nossa arte. Havia momentos em que, ao mesmo tempo em que estávamos ensaiando uma peça, havia gente trabalhando fazendo pão.
OM2ºATO – Como assim, fazendo pão?
LP – Manuela Soeiro, diretora do Mutumbela Gogo, teve a idéia de montarmos uma padaria, no momento em que vivíamos um contexto de guerra e de muita carência de comida. Daí surgiu essa fusão do pão com o teatro: poder fazer nossa arte de maneira contínua, ao mesmo tempo em que alimentávamos nossos artistas. A padaria foi então construída no balcão do teatro. E era sempre muito bom ensaiar sentindo o cheiro de pão todos os dias. E os padeiros cantavam enquanto amassavam a massa.
OM2ºATO – Voltando ao teatro que você desenvolve no grupo Mutumbela Gogo, conte mais sobre as características desse trabalho.
LP – Nosso teatro não é de escrita, porque a tradição africana é baseada na oralidade. Nosso grupo opta por fazer adaptações de obras, contos, crônicas. Trabalhamos muito com Mia Couto, por exemplo. Buscamos e adotamos um processo de retextualização, passando esses textos escritos, para o teatro. Trabalhamos também com improvisação e, mais tarde, com a dramatização. Vamos continuamente acompanhar os problemas de nosso país. Quando ainda havia guerra, fizemos uma adaptação de Lisístrata que, em seu texto original, conta a história de mulheres que fazem greve de sexo para acabar com a guerra. Mas sempre que nós abordamos um tema, mesmo que ele seja uma adaptação, é preciso que ele toque a sensibilidade do público. Por isso, saímos a campo para pesquisar. Nesse caso, conversamos com as mulheres que trabalhavam nos mercados. As opiniões ficaram divididas, mas no fim a gente viu que foi geral a opinião de que não se fizesse uma greve de sexo. Nossa peça então teve outro final. Fizemos as adaptações necessárias de acordo com a realidade de nosso país, porque estamos contando nossas histórias. Foi um trabalho muito interessante. Chamamos essa peça de Amor Vem e coincidentemente fizemos nos bairros e mercados no momento em que se iniciavam as discussões para os acordos de paz. Na mesma época também houve um grupo de mulheres que, para protestar contra medidas do governo de uma província, decidiram marchar nuas. Claro, não sabemos até que ponto inspiramos essas mulheres ou não, mas foi muito bonito ver que estavam acontecendo coisas, mudanças. Se por um lado a gente vai buscar nossas raízes, nossos gestos, nossa maneira de ser e estar pra fazer um teatro próximo a nós, também temos a liberdade de nos abrir para outras possibilidades.
OM2ATO – Você contou da proximidade que seu grupo teatral tem com Mia Couto e outros escritores nacionais. Como é transpor estes textos literários para o palco?
LP – Estes autores sempre se inspiram em uma determinada realidade e acompanham essa história. Então, a escolha ou não de um autor, de um tema, de um texto, tem muito a ver com isso. A primeira obra de Mia Couto que nós adaptamos era uma forte crítica ao sistema burocrático e à corrupção em Moçambique. Nossos políticos foram ver essa peça e riram muito (era uma sátira) e ali estava uma forma que o Mia tem de falar dos problemas com arte. Outro texto dele, adaptado por mim, foi o Vôo dos Flamingos, que também traz esse tema da corrupção, escândalos, crimes. É preciso dar vida ao livro, tornar visível o que autor quis dizer ali, tornar público.
OM2ATO – O teatro está fortemente ligado à escrita. Ao mesmo tempo, a oralidade é uma característica intrínseca das culturas africanas. Como você vê essa relação?
LP – Nós vamos buscar outras formas de representação, seja baseada na oralidade, em nossas danças, no nosso gestual, na nossa tradição. Também buscamos esses elementos tradicionais. Temos uma dança, o Mapiko que é puro teatro. Nós nos apropriamos dele para usar em cena. Tudo que é linguagem teatral a gente busca. Há um expressar típico de determinadas regiões. Se vamos fazer uma peça com base na improvisação, vamos buscar também destas histórias um ponto de partida. Auscultamos e compomos os personagens. Por exemplo, precisávamos de informação para a montagem de uma peça que fizemos sobre crianças que vivem na rua. Mas não havia texto, nem romance. Então conversamos com as crianças, trabalhamos com elas e partimos da realidade para a cena.
OM2ºATO – Do que viu aqui na área do teatro o que mais te chamou a atenção?
LP – Fiz um intercâmbio com as meninas da Cia As Capulanas. Gostei muito da proposta que vi e essa vivência me deixou bastante inspirada. Tenho um projeto que chama Palco Aberto, que é levar o teatro para lugares onde as pessoas não tem acesso a ele. E o projeto delas o Pé no Quintal, pra mim foi uma importante fonte de inspiração.