setembro de 2016

UM NOVO REINO DE IRMÃS E IRMÃOS

Luciane Ramos Silva e Je Oliveira

 

 

 

 

Este texto foi originalmente publicado na edição especial da
Revista Contemporary And (C&)/O Menelick 2º Ato, em 2016,
com vistas a 32ª edição da Bienal Internacional de Artes de São Paulo.

 

 

 

 


fotos Zaca Caldeira / Maisa Sá
Murilo de Paula / Chaia Dechen

 

 

 

 

 

 

 

Na última década brotaram na cidade de São Paulo produções de pensamento que, a partir da dança e do teatro, confrontam a experiência de ser negra/negro e como isso mobiliza fazeres artísticos nos labirintos da diáspora.

 

São dramaturgias que captam e recriam memórias, interpretando a história a partir de perspectivas que desafiam os modelos legitimados. São artistas que criam na tentativa de redimensionar os valores que foram esfacelados no caminho por tantos deslocamentos, silêncios e desigualdades. Não são clamores, mas estratégias gestadas na arte que fita a mudança.

 

 

CORPOS PRÓPRIOS – ESCRITAS E REIMAGINAÇÕES

 

 

No campo específico da produção de dança, entre as diversas ações envolvidas na busca de enunciados e escutas para o corpo, a abordagem da política através da estética e da poética tem recebido atenção e profundidade. Em um cenário de mudanças nas políticas culturais para a cidade, onde questionamos a ausência das produções de artistas negras e negros na paisagem das criações contemporâneas, criadores movem-se a partir de perspectivas africanizadas, rejeitando os clichês e estigmas criados pelos discursos dominantes e tensionando as falas apaziguadoras, que ignoram a hierarquia racial na história da dança do país.

 

Esses pensamentos de pés enraizados, torsos que desenham espirais, braços e pernas em percursos curvos que viajam distâncias e retomam à unidade, tem transpassado espaços legitimados de poder, ocupando também os ambientes das universidades com teorias, procedimentos e referências que apontam para aquilo que a crítica cultural feminista bell hooks (1952) apresenta como transgressão: empurrar contra fronteiras.

 

Na obra Dikanga Kalunga (2014), da Nave Gris Cia. Cênica, coreografada e interpretada pela bailarina Kanzelumuka, o universo das manifestações tradicionais bantas é mote para uma criação que insere no corpo elementos das relações ancestrais e arquetípicas dessas culturas profundamente presentes na composição sociocultural brasileira. E não se trata de colagem leviana travestida de “releitura”, mas uma apropriação fundamentada de concepções de espaço, tempo e humanidades negras. Elucidando as transversalidades das relações de gênero, raça e classe, o bailarino e ator Kleber Lourenço, na peça Negro de Estimação (2007), imprime no corpo de seus personagens a condição de sujeitos cujos discursos irônicos elucidam os lugares de submissão a eles reservados por serem nordestinos, negros, gays e pobres.

 

Ao retomar e devolver dignidade a corpos e expressões culturais “fora de ordem”, esses artistas colocam a dança em um lugar justo: como área de produção de conhecimento. Nessa encruzilhada, a pesquisa de linguagem é um elemento fundamental. A jovem Cia. Fragmento Urbano, interessada nas possibilidades criativas, técnicas e simbólicas das danças urbanas e brasileiras faz aproximações e cruzamentos em torno de gêneros da dança que acompanham suas paisagens vividas. Oriundo dos espaços periféricos e educado nos cruzamentos da cultura urbana hip hop e das culturas populares nordestinas, o grupo se alimenta da tradição como índice de continuidade e invenção.

 

Ao mobilizarem força criativa a partir dos territórios negros, esses artistas trazem à baila pensamentos do corpo menosprezados pelos espaços hegemônicos e por práticas discursivas que ampliam as possibilidades para entendermos quem somos enquanto brasileiras e brasileiros, diante das tensões e contradições que nos cercam. Negritude não é apenas acessório e, tal qual a dança, não está contida na matéria, mas sim cultivada – em corpo e ancestralidade. Entender o que nos compõe implica em destilar os caminhos e maneiras de perceber nossas unidades e diversidades. Nada mais do que nos movermos criticamente.

 

 

NO PALCO, A HUMANIDADE

 

Voltando a atenção para o teatro feito a partir da experiência social negra, atentamos para algumas características presentes na produção teatral contemporânea dos seguintes grupos: Os Crespos, Capulanas Cia. de Arte Negra e Coletivo Negro, destacando o “empenho civilizador do teatro com preocupações raciais”¹ como elemento norteador para esta reflexão. Entre as poéticas que esses grupos empunham e anunciam, vemos o enfrentamento e construção de possibilidades frente ao racismo e seus efeitos (afetivos, psicológicos e sociais) buscando reverter as invisibilidades e existir para além das vivências subalternizadas. Cada qual, com seu modo de interpelar temas caros à população negra, e não menos entre os artistas, atua em duas grandes esferas: no nível da expressão simbólica, quando criam e elaboram outras formas de representação, e no nível da experiência social, quando performatizam seus temas e problemas, influenciando a realidade e propondo a presença em espaços historicamente afastados do povo negro, como é o teatro no Brasil.

 

Além dos fundamentos éticos e estéticos que alicerçam suas obras, os grupos contam também com a presença volumosa e fiel de um público negro. Parece que o termo “público” não nomeia a amplitude do que ocorre nesse encontro. Essas características e o modo como se dá o acontecimento se assemelha ao que a psicanalista Maria Rita Kehl (1951) identifica na relação estabelecida entre o grupo de rap paulistanos Racionais Mc´s e os manos que o acompanham: irmãos e irmãs talvez seja o termo que melhor cabe para considerar os que compartilham e testemunham as criações. A ideia de irmandade expressa os sentimentos presentes nesses encontros mediados pela arte no estabelecimento de uma outra realidade – a da frátria, reino de irmãs e irmãos – colocando em relação de igualdade aqueles que representam e aqueles que presenciam.

 

A noção de irmandade torna-se ainda mais apropriada quando pensamos na orfandade paterna de muitos negros e negras. Busca-se criar uma relação de cuidado, celebração e educação entre todos que vivenciam o acontecimento teatral proposto pelos grupos.

 

 

 

A Cia. Capulanas, formada por mulheres negras periféricas, no espetáculo Sangoma (2013), dedica-se às questões de saúde da mulher negra, aprofundando pensamentos e desmistificando imaginários como os que fazem crer que mulheres negras suportam mais a dor, gerando tratamentos diferenciados e negligentes em hospitais públicos. Revirando essas percepções estereotipadas sobre o corpo, as artistas recobram o cuidado, o amor e a cura. Em Cartas a Madame Satã (2014), a Cia. Os Crespos discute a homoafetividade entre homens negros, os preconceitos e a sociabilidade cerceada que acompanha essa experiência permeada de afeto. A restituição necessária de dignidade também atravessa o trabalho do Coletivo Negro, que na peça Movimento Número 1: O Silêncio de Depois… (2011), aborda a desterritorialização das populações negras desde a primeira saída da África e o jogo mesquinho da lógica mercadológica, que a seu bel-prazer vende a tudo e a todos travestida de progresso.

 

 

 

 

Fomentar artisticamente a ampliação e o aprofundamento dessas questões, inclusive as subjetivas e afetivas, assim como o enfrentamento pedagógico do racismo e suas implicações, é um dos maiores empenhos dessa geração de artistas. Por outro lado, a população não negra está ausente ou distante dessas construções e esforços concretos. Longe de desenharem um circuito fechado, esses artistas propõem a humanização do conjunto da sociedade por meio do transbordamento de noções muito alargadas de humanidade, mobilizando valores que foram oficialmente silenciados pelos legados complexos da escravidão e do racismo brasileiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LUCIANE RAMOS SILVA é antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural. Doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela UNICAMP. Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua nas áreas de artes da cena, estudos africanos e educação. JÉ OLIVEIRA é ator, dramaturgo e diretor, membro fundado do Coletivo Negro – grupo que desenvolve pesquisa cênico-poético-racial desde 2008 na cidade de São Paulo. Está graduando-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo-USP.

A Revista O Menelick 2º Ato é um projeto editorial de reflexão e valorização da produção cultural e artística da diáspora negra com destaque para o Brasil.